segunda-feira, maio 18, 2020

O passado ficou lá


Há uns meses, lá por Vila Real, numa arrumação de férias, surgiu, creio que de dentro de uma mala, um maço de cartas, atado com fita. Aberta uma delas, constatei que ali se juntava correspondência entre o meu pai e a minha mãe.

Como o namoro entre ambos teve lugar, durante pouco mais de um ano, em Vila Real, onde ambos então viviam, presumi que a correspondência fosse da época em que o meu pai, durante um tempo que também não terá sido muito longo, esteve destacado a trabalhar em Monção. Nesse período, a minha mãe tinha continuado a viver em casa dos seus pais, em Vila Real. Por isso, as cartas trocadas entre ambos foram já depois de casados. Imagino mesmo que, em algumas delas, se falará da gravidez que deu origem a quem escreve este texto.

Escrevi “imagino” porque não consegui passar das primeiras linhas da carta que abri. Como filho único, senti que continuar nessa leitura era pura bisbilhotice, era um abuso de intimidade, a cujo luxo me não podia dar.

E não imaginam como eu gostaria de poder conhecer o que os meus pais diziam sobre as família de ambos, de ler notas de como viam o seu futuro, podendo agora confrontá-lo com o que, de facto, ele acabou por ser, de perceber como era afinal a sua vida comum nesse final dos anos 40, do que então pensavam e os preocupava, das dificuldades que eventualmente enfrentavam, enfim, do seu mútuo olhar sobre o seu mundo. Como eu nasci estando o meu pai ainda em Monção, e como a minha mãe escrevia bastante bem, imagino que deva haver belas descrições, embora enviezadas pela afetividade, sobre o seu “rebento”. Como é que eu “seria”, na visão da minha mãe?

Tenho uma grande curiosidade, mas, apesar disso, não vou ler as cartas. Os meus pais já morreram há bastante tempo. Não preciso de “aprender” mais nada sobre eles. O passado ficou lá.

7 comentários:

Maria Isabel disse...

Acho de um enorme respeito, não abrir as cartas.Os meus pais não sei o que fizeram das cartas deles, mas a minha avó contava que um dia com o meu avô decidiram queimar tudo, dizendo que o que lá estava escrito só a eles dizia respeito.
Se eu encontrasse as dos meus pais faria o mesmo. Não lia.
Maria Isabel

Luís Lavoura disse...

O meu pai também guardava toda a correspondência. Quando ele morreu, encontrei maços de cartas trocadas entre ele e o meu avô, e a minha mãe. Mas não tiva paciência para ler mais que uns excertos. Deitei tudo fora. Seria muito penoso estar a reviver todas aquelas vidas.
O passado deve ser eliminado, porque só nos torna tristes e saudosos. Só devemos viver no presente.

Anónimo disse...

E as cartas foram para lixo, imagino?

Anónimo disse...

Não podia discordar mais do Luís Lavoura.
O passado não nos torna só tristes e saudosos. Há memórias que nos tornam felizes.
Que o digam os Sportinguistas, como viveriam sem o passado....?

Anónimo disse...

Também discordo do Senhor Embaixador. Quem sabe se tais cartas não davam um belíssimo retrato da época desses anos e especialmente do triste e apagado sossego salazarista.
Não há muito tempo Romero de Magalhães, meu colega de liceu, professor na Univerdidade de Coimbra e Secretário de Estado da Educação de Guterres, filho do professor Joaquim de Magalhâes do Liceu de Faro e "Secretário" do Poeta Popular António Aleixo,publicou as cartas do pai e resultou um excelente livro de memórias.
O nosso eterno candidato a Nobel também fez coisa semelhante com as cartas enviadas da guerra em Angola para a mulher que, claro, foram muito elogiadas e até já deu um filme.
Qual o valor sentimental e auto-estima de Portugal e dos portugueses sem as crónicas de Fernão Lopes, o poema de Camões, a epopeia dos Descobrimentos e Viagem de Magalhâes, a vitória na Restauração e o 25 Abril, os legados dos nossos antepassados poetas e escritores?
De todo concordo em não se querer saber o passado dos seus e voltar a aprender e saber melhor com eles aquilo que hoje é.
jose neves

Francisco Seixas da Costa disse...

O facto de Jose Neves não concordar não altera a minha decisão sobre a destruiiçao das cartas

dor em baixa disse...

Max Brod ficou depositário dos escritos de Kafka por ser o seu melhor amigo. Kafka pediu-lhe que destruísse tudo quando morresse. Brod prometeu-lhe e não cumpriu. É por isso que hoje dispomos da obra de Kafka.

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