quarta-feira, maio 27, 2020

A dispensa do jornalismo


Os governos, todos os governos, pela natureza das coisas, querem dar de si próprios e da sua ação uma imagem favorável. E tentam que os cidadãos acreditem na narrativa que projetam. Em democracia, as oposições funcionam como contraponto às versões oficiosas. Mas é, muitas vezes, graças a intrusividade da imprensa, que se especializou em explorar os escaninhos do dissenso e a não se deixar encantar pelas versões únicas que se fica a saber, mais cedo ou mais tarde, que as coisas nem sempre são aquilo que nos foi apresentado.

Para isso, surgem versões dos factos, o diz-que-disse, os relatos parciais. É essa a riqueza do trabalho dos jornalistas, esses “impacientes da História”, como lhes chamou Jean Lacouture, para bem caraterizar a sua função antecipadora dos juízos definitivos, com o recuo do tempo.

Contudo, às vezes, vezes que são raras, a realidade dispensa o jornalismo. Há factos que são tão evidentes que não necessitam de mediadores de leitura.

Vem isto a propósito do vídeo que revelou a reunião do presidente brasileiro com os seus ministros e alguns convidados do inner circle. Embora estivesse a ser gravada, aquela reunião não estava destinada a vir a ser conhecida pelo grande público - e muito menos o seria depois do que ali foi dito, em especial da forma com o foi. Era uma reunião de pura coordenação política – e daí decorre a sua “riqueza”.

Naquelas escassas horas, todo o brasileiro ficou a conhecer a “cultura de balneário” do team Bolsonaro. Foi muito interessante perceber que o Brasil tem no topo do Estado uma figura que entende que o voto conjuntural que recebeu o ungiu de uma autoridade quase sem limites, só prejudicada, no seu exercício, pelo empecilho não resolvido de outros poderes, como o legislativo e o judicial.

Ouvir (e ver) o que ali disseram ministros como o da Educação, num arroubo filo-fascista não contraditado por ninguém, do Ambiente, com afirmações para além da decência básica para o exercício de um cargo público, da Economia, cheio da consciência de ser o derradeiro fiador de Bolsonaro perante o empresariado, com as certezas da “mão invisível” a orientar-lhe as escassas dúvidas éticas – tudo isso constituiu um espetáculo memorável. E, nessas horas, foi imperdível a cara do militar vice-presidente, com um auto-controlo no fácies que era um verdadeiro livro aberto.

São raros os momentos como este, em que História, por um acaso, se fez no instante, sem esperar pelo amadurecimento do tempo. Tudo ali ficou imensamente claro, para sempre.

5 comentários:

Luís Lavoura disse...

Embora estivesse a ser gravada, aquela reunião não estava destinada a vir a ser conhecida pelo grande público

Perguntas: quem gravou a reunião, e com que intuitos? E como é que a gravação acabou sendo divulgada, se não era a isso que se destinava? Foi divulgada de forma legal ou ilegal? Foi desviada ou roubada?

Jaime Santos disse...

Eu diria que a dispensa do jornalismo se deve sobretudo à dispensa da vergonha. Bolsonaro e os seus diferentes irmãos ideológicos estão-se nas tintas para as regras e fazem gáudio disso. Em certos aspectos, são perfeitamente transparentes.

A política tradicional caracteriza-se sempre por um certo exercício de hipocrisia, defende-se uma coisa e pratica-se outra, até porque essa política é sempre a arte do possível. Mas o que essa hipocrisia revela é a existência de vergonha e a vergonha é um profundo moderador da acção. O jornalismo faz o resto ao descobrir o manto diáfano da mentira e revelar a mais nua verdade (num mundo perfeito, claro!).

Quem não tem vergonha pode actuar sem limites, chegando a pôr em causa a autoridade de instâncias de moderação, como a imprensa ou os tribunais. É a essência do populismo de todas as cores. O líder representa o seu povo contra as elites, seja lá o que isso for.

Mas o povo está longe de ser um bloco monolítico e um Governo não representa mais do que a maioria de turno que é, como deve ser em democracia, volúvel. Só quando o Governo Bolsonaro cair de podre é que o Brasil pode almejar a um regresso a (alguma) normalidade...

Dizia-se amiúde que os votantes nos novos populistas não apreciavam particularmente o estilo abrasivo destes, mas apostavam na sua capacidade disruptiva. Pois bem, no contexto actual da pandemia, that is disruption for you...

Francisco Seixas da Costa disse...

A Luís Lavoura. Esteve desatento. A reunião foi conhecida por decisão judicial

Anónimo disse...

Dir-se-ia que a diferença entre esse "Concelho de MInistros" no Brazil e muitos outros por ese mundo fora, foi o tom. A latente peleja política em si mesma acontece nas mais variadas geografias.
Exceptuam-se regimes com em cujas semelhantes reuniões têm participantes criteriosamentes selecionados, como será por exemplo o caso da República Popular da China, a da Coreia do Norte ou mesmo por aí em insuspeitos oásis de felicidade democrática.

Jaime Santos disse...

Caro anónimo das 15:16, os participantes nesta reunião foram criteriosamente selecionados, houve até quem defendesse instrumentos que não destoariam dos utilizados na RPC ou na Coreia do Norte (isto é, que os adversários políticos deveriam ser mandados para a cadeia), excepto porventura no que diz respeito à sofisticação da linguagem (ou falta dela), os orientais são afinal peritos no recurso aos eufemismos...

O critério do selecionador é que não é grande coisa, note-se...

Mas poderá dizer em que País em concreto está a pensar quando se refere aos insuspeitos oásis de felicidade democrática? Fiquei curioso...

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