terça-feira, março 19, 2024

Os bezerros


Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional francesa, foi presidente do respetivo Grupo de Amizade com o nosso país. A sua disponibilidade para tudo quanto fosse do interesse português era permanente e algumas vezes abusei dela para superar alguns obtáculos. Ficámos bastante amigos e muitas vezes almoçámos em Paris. Morreu em 2019, com 77 anos.

Pierre era "maire" de Sotteville-lès-Rouen, uma localidade da Normandia, perto de Rouen. Um dia, convidou-me a visitar essa terra a que se dedicava, nas horas que o parlamento lhe deixava livres. A cumulação de mandatos parlamentares e autárquicos era uma regra antiga na política francesa. 

Ao final da visita à sede do município, Pierre tinha organizado uma receção em minha honra, para a qual convidou as "forças vivas" da localidade e, naturalmente, alguns portugueses ligados ao movimento associativo da nossa comunidade.

Nos anos que vivi em França fiz um esforço para me deslocar às localidades onde havia mais portugueses, visitando as respetivas estruturas associativas. Fiz dezenas dessas visitas e, digo-o com sinceridade, ganhei um imenso respeito pela determinação dessas pessoas de se projetarem na sociedade francesa, afirmando sempre a sua identidade portuguesa.

Durante a receção oferecida por Pierre Bourguignon, aproximou-se de mim um dirigente de uma associação portuguesa de uma localidade próxima de Rouen, informando-me de que, dentro de semanas, essa instituição iria comemorar uma data importante, pelo que me convidava para estar presente numa festa que iam realizar. 

Fiquei de confirmar a minha disponibilidade, a qual, no entanto, acabaria por durar muito pouco. Terminou no preciso instante em que esse nosso compatriota me disse: "E pode estar descansado, senhor embaixador, que não encontrará por lá bezerros". Não percebi o que ele queria dizer com isso, mas ele logo esclareceu: "Bezerros, árabes, maomés, essa gente..." A minha cara deve ter traído o desagrado com que ouvi esse qualificativo de desprezo. Fui rápido a libertar-me do meu interlocutor, do seu convite e do seu preconceito. 

Há quem não saiba que, em alguns setores da nossa comunidade em França, como imagino que possa acontecer em outros países, existe uma atitude de profunda rejeição das comunidades árabes e muçulmanas. Recordo-me de, um dia, ter sido pedida a minha intervenção pelo "maire" de Bayonne, Jean Grenet, curiosamente casado com uma portuguesa, para tentar travar a hostilidade crescente entre uma associação portuguesa e uma estrutura similar da comunidade muçulmana, existente na vizinhança. E vale a pena lembrar que o movimento político em torno da família Le Pen comporta, no seu seio, muitos portugueses residentes em França. Ao que me dizem, esses nossos compatriotas usam esse ódio ou desprezo pelos muçulmanos como uma espécie de demonstração de que são "tão bons franceses como os melhores franceses". Se os franceses que detestam os árabes são os melhores franceses, vou ali e já venho.

Por que escrevo isto hoje? Porque acabo de constatar o bom resultado obtido por um partido da extrema-direita portuguesa, nas eleições legislativas, junto de algumas comunidades portuguesas emigradas. É irónico constatar que uma formação política que tem uma agenda racista, xenófoba e discriminatória, em que uma rejeição primária da imigração assume um lugar bem proeminente, acaba por agradar a quem, por muitos esforços que faça, não deixa de ser visto nas terras onde vive como continuando a ser um estrangeiro.

10 comentários:

aguerreiro disse...

Cada vez percebo menos e tenho imensa dificuldade em destrinçar quem é racista, elitsta, integracionista, multiculturalista de quem não é. Eu acho que toca a todos dependendo do ponto donde se mira.

Anónimo disse...

Augusto Santos Silva também foi emigrante? Onde? No Brasil? No Canadá? Nos States? Não? Então porque é o cabeça de lista pelo círculo fora da Europa? Porque borrego é borrego e come a erva que lhe dão?

Luís Lavoura disse...

a determinação dessas pessoas de se projetarem na sociedade francesa

Segundo me disse uma luso-francesa, os portugueses têm muito boa fama junto dos franceses, por uma razão: porque são a comunidade mais rica de França, a seguir aos judeus.

Carlos disse...

Caro Embaixador

A natureza humana tem destas coisas … perante situações que desafiam a tranquilidade e as certezas adquiridas estimula o que há de melhor e de pior na espécie humana. É reconhecido que entre os mais entusiastas apoiantes do Brexit estavam muitos emigrantes das antigas colónias britânicas, eles mesmos vítimas de alguma xenofobia. Eu que passei alguns anos no Luxemburgo lembro-me das reportagens que mostravam nas portas de muitos está evidentes de restauração a mensagem “proibida a entrada a cães …e portugueses” isto para não falar das excursões punitivas organizadas aos fins de semana com o apoio da extrema direita alemã para maltratar os incautos emigrantes que apanhavam no caminho - um “desporto” tornado popular no período após a reunificação alemã

Um fenómeno que equaciona a ideia - nós sofremos muito por isso temos que fazê-los sofrer o mesmo para não pensarem que é tudo boa vida. As praxes universitárias reproduzem um mesmo conceito do que eles chama rito iniciatico

Que o Ventura diga sobre os emigrantes que “devem descontar para a segurança social” mas só podem usufruir dos benefícios após 5 anos é expressão duma falta de humanidade e duma visão do mundo alicerçada na exploração dos emigrantes - enfim uma pessoa indigna e os que o apoiam não podem vir com a conversa de serem pessoas de bem!

Luís Lavoura disse...

Carlos,

entre os mais entusiastas apoiantes do Brexit estavam muitos emigrantes das antigas colónias britânicas

Faz sentido, porque de facto o Brexit foi bastante bom para as antigas colónias britânicas: muitas pessoas dessas antigas colónias passaram a ocupar no Reino Unido postos de trabalho (e de estudo) que anteriormente eram ocupados por imigrantes (e estudantes) europeus.

De facto, o que se está a passar com o Brexit é que muitos europeus saem do Reino Unido e são substituídos nele por indianos, paquistaneses, ugandeses e outro pessoal das antigas colónias britânicas.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A capacidade de tomada de perspetiva é uma coisa tão bela, mas que falta a tanta gente.

Às vezes o velho ditado "não peças a quem pediu e não sirvas a quem serviu" cumpre-se na perfeição.

A imagem ilustrativa deveria constar nos livros escolares.

Joaquim de Freitas disse...


Eu vi-a, a tabuleta, espetada na relva dos jardins das concessões estrangeiras de Shangai, dos anos 30… Encontra-se agora num museu da cidade. Para não esquecer!

O estatuto social dos cães evoluiu, entretanto, pois que desde 2020 é proibido comê-los. Como os gatos…

Eu vi-a, a tabuleta, espetada na relva dos jardins das concessões estrangeiras de Shangai, dos anos 30…contra-se agora num museu da cidade. Para não esquecer!

O estatuto social dos cães evoluiu, entretanto, pois que desde 2020 é proibido comê-los. Como os gatos…

Os portugueses, como todos os emigrantes, têm as etiquetas que os nacionais e não só, lhes dão, estereótipos por vezes estúpidos!

Os portugueses são peludos! A minha calvície demonstra o contrário! Os portugueses são pequenos! Com o meu 1,84 peço meças! Eles só comem bacalhau." Olha, não conhecem o seu preço!

As mulheres portuguesas são empregadas domésticas ou porteiras. Nos anos 60,que podiam as pobres analfabetas fazer doutro, para ajudar a manter “la maison”? Mas é verdade que quando um amigo me diz, por falta de correcção, que tem “une bonne portugaise” não me dá prazer nenhum. Prefiro dar o exemplo da minha prima, médica na Dinamarca e o meu sobrinho engenheiro na bio massa na Suécia.

Os portugueses são canalizadores ou pedreiros". Menos verdade hoje que nunca. Conheço muitas firmas de serviços criadas por portugueses.

E conheço grandes responsáveis de empresas prestigiosas. E mesmo sem pretender comparar-me ao nosso compatriota Tavares, patrão de PSA, dirigi uma firma de alta tecnologia de 300 colaboradores. E conheço muitos da mesma dimensão. E empreguei muitos portugueses de muito bom nível técnico, equivalentes e por vezes melhores que os franceses.

O que me preocupa mais para Portugal hoje, é o êxodo dos jovens, bem formados à custa dos portugueses, que continuam a deixar Portugal. Não hà duvida que quando um PM português incitava à emigração, o resultado só podia ser este. Contrário ao espírito do 25 de Abril.


manuel campos disse...


Pois quem não anda de autocarro nem almoça na primeira tasca que encontra quando lhe dá a fome não conhece o país onde vive.
Ainda hoje, dia de folga de outras "corridas", andei de autocarro, de Metro e almocei (bastante bem) onde calhou, a grande vantagem de ser um (quase) total anónimo é essa, ainda que na mesa ao lado se dissesse mal de um advogado muito meu amigo (o que não lhe reportarei, apenas queriam que ele fizesse o que eles queriam apesar de alguma ilegalidade que detectei no tema, o costume, as pessoas falam demais e demasiado alto).

Nestas visões políticas não o sigo nem a outros cujas opiniões muito prezo por aqui, mas respeito-as ao ponto de nunca as contrariar.
E se respeito todas são mesmo todas, não há excepções, portanto também respeito de igual modo a de "um português em cada cinco" que votou Chega, alguns que eu conheço e não têm nada de parvos nem de reaccionários (palavra que já enjoa, porque dá para os dois lados, como é evidente), outros que não conheço e que me estarão a pagar a pensão de velhice ao abrigo da solidariedade intergeracional contida na lei sabendo, como sabem os meus filhos de 53 e 54 anos e eu também sei, que quando chegar a vez deles terão - em termos relativos - 50% a 60% do que eu tenho.
Vão lá ver a pirâmide etária portuguesa que se transformou numa bola de rugby, não é preciso ser um génio para entender o que isto vai ser dentro de 20 anos mas, como tenho dito, problema meu que tenho filhos e netos e me ralo apesar de saber que já não vou estar cá (espero bem, a fazer o quê?).

Também por isso tenho escrito menos, não posso andar de novo todas as semanas como acompanhante a caminho da instituição ali para Belém onde ninguém vai por causa de uma gripe e aqui a trocar visões idealistas da vida, não convenço ninguém, ninguém me convence e "j'ai d'autres chats à fouetter" (que o PAN não me leia).
Lá volto sempre ao mesmo: o chão de uns é o tecto dos outros, o que para uns é um drama terrível para outros é o dia-a-dia desde há muito.

Isso não retira uma linha ao que ontem aqui disse e agora repito:
“É também isto que torna o "Duas ou três coisas" um sítio cada vez mais único.”
E de onde só me vou embora corrido a pontapé pelo dono da casa ou pela vida.

Na passada sexta-feira, lá no estacionamento da tal instituição que não trata gripes mas onde não vai toda a gente, parei o meu “espada” com 22 anos e com 71 mil kms feitos nesse dia, um luxo porque tenho outro com 7 anos e 77 mil kms feitos ontem (para o dia-a-dia), entre um Maserati Levante novo (preços entre 146 e 296 mil euros) e um Bentley Bentayga novo (preços entre 260 e 340 mil euros).
E se para mim, que tenho folga e filhos - e até netos - quase tão bem na vida como eu isto já não é muito normal, imagine-se para o desgraçado que está no desemprego e tem família para sustentar que os vê passar na rua.
Não me parece difícil de entender o que se passa por toda esta Europa que vê chegar o fim de "qualquer coisa" e não percebeu ainda "o quê".


marsupilami disse...

«quando um amigo me diz, por falta de correcção, que tem “une bonne portugaise”»

Quando me dizem isso, respondo que é uma curiosa coincidência pois o meu avô teve uma amante francesa. Foi

Joaquim de Freitas disse...

Pois é "marsupilami"! O meu pobre avô também teve uma amante, mas espanhola! Que o levou para o cemitério...Chamava-se "Gripe"..Dommage!

"Quem quer regueifas?"

Sou de um tempo em que, à beira da estrada antiga entre o Porto e Vila Real, havia umas senhoras a vender regueifas. Aquele pão também era p...