Nos dias de hoje, a globalização parece estar, se não sob fogo, pelo menos sob forte suspeita. Não era esse o ambiente nos anos 90. Por essa altura, o credo liberal imperava pelo mundo. Na União Europeia, que vivia sob a obsessão do estabelecimento de acordos de livre comércio com todas as regiões do planeta, estava a ser cada vez mais difícil a um país como Portugal evitar que setores relevantes da sua produção industrial, alguns de baixa tecnologia e de natureza similar aos de alguns Estados que pretendiam livre acesso ao mercado europeu, fossem oferecidos como moeda de troca para as aberturas, noutros setores bem mais rentáveis, que as grandes economias europeias pretendiam obter em geografias economicamente muito promissoras. Quem tem alguma memória das "guerras" para a defesa dos nossos têxteis percebe melhor do que estou a falar.
Quando, em 1995, cheguei à chefia da secretaria de Estado dos Assuntos Europeus, sabia bem que tinha pela frente, nesse domínio comercial multilateral, uma tarefa muito difícil. E, tal como tinha ocorrido ao meu antecessor na pasta, Vitor Martins, durante toda a década anterior, não podia fazer muito mais do que tentar ir ganhando tempo, enquanto os setores sobreviventes do nosso tecido industrial se fossem preparando para o embate pleno.
Na Comissão Europeia, a pasta do comércio internacional estava, por esses dias, entregue ao britânico Leon Brittan, que olhava para os nossos problemas com uma imensa sobranceria, deduzindo que facilmente prescindiríamos das nossas salvaguardas em troco de cheques. Tive com ele e contra o seu cinismo, "accrochages" como nunca tive com nenhum outro membro da Comissão Europeia, nesses cinco anos e meio de funções. Até cheguei a sair a meio de uma reunião no seu gabinete...
Confirmei a insensibilidade de Brittan, logo em 1996, em Singapura, na primeira reunião ministerial da então nova Organização Mundial de Comércio (OMC). Da conversa tensa que ali tivemos, quando se preparava a "oferta" da parte europeia, deduzi que o jogo ia ser muito duro. E foi-o, durante os dois anos seguintes, embora o tivéssemos conseguido empatar, em temas vitais, até à segunda reunião ministerial, realizada em Genebra, em 1998.
No ano seguinte, com a mudança da Comissão, Brittan saiu do cargo. Foi substituído por Pascal Lamy, um antigo chefe de gabinete de Jacques Delors. Em Portugal, houve quem embandeirasse em arco: era um socialista, de uma nacionalidade à partida mais sensível à defesa dos interesses nacionais. Lembro-me que estive sempre mais cético do que todos quantos trabalhavam comigo. Um Comissário, naquela área, é apenas um representante de interesses e esses não mudavam, no essencial, com a alteração da Comissão.
Fui recebido por Pascal Lamy, em Bruxelas, logo após a sua posse. Dessa primeira conversa deduzi que estava comprado irremediavelmente pela agenda liberal, seguramente induzida pela continuidade da máquina da Comissão. Ao contrário de Brittan, Lamy era uma figura simpática. Mas foi-me logo pedindo "compreensão" para a necessidade da nova Comissão poder ter "mãos livres", com um mandato "aberto" para negociar uma posição forte na terceira reunião ministerial da OMC em Seattle, que teria lugar em dezembro desse ano. Essa "compreensão" era, claro!, a redução da nossa "lista negativa", isto é, dos nossos produtos mais sensíveis, que pretendíamos excluir das concessões.
Uma semana depois, ainda em Bruxelas, na estreia de Lamy como comissário na reunião com os representantes dos governos, decidi fazer um "número", atrasando, face a uma furiosa presidência finlandesa, a aprovação do mandato para Seattle, até que algumas das nossas pretensões fossem atendidas. Era um óbvio "bluff": o nosso país não podia comprometer a posição europeia numa negociação daquela magnitude, apenas por virtude de uns atoalhados, cordas e coisas congéneres. Mas quis sublinhar a continuada delicadeza política que o dossiê têxtil continuava a ter para nós, no plano interno. Lembro-me de ter ficado praticamente sozinho, de ter sofrido algumas pressões, mas lá conseguimos, em jeito de compensação, alguma derradeira concessão. No final, Lamy, perante todos os meus colegas, foi-me avisando: em Seattle, durante a reunião ministerial da OMC, em que a maioria de nós iria estar presente, não era de excluir que aquele mandato, tido como "pouco ambicioso" (para acomodar as preocupações dos "nossos amigos portugueses", como fez questão de sublinhar), tivesse de "evoluir". E contava que eu aí pudesse "estar mandatado" para ser mais "flexível".
Seattle acabou por ser o que foi. A cidade transformou-se rapidamente num caos, as ruas encheram-se de manifestantes, muitos pacíficos outros bem violentos, a polícia não tinha mãos a medir, as reuniões da OMC foram suspensas, não houve hipótese de ali se firmar o menor acordo. Numa improvisada reunião de coordenação comunitária, a nível de membros do governo, realizada num hotel próximo de um teatro sitiado onde tinha sido boicotada, por manifestantes, a sessão inaugural, devo confessar que me deu algum gozo ver o ar de desespero de Pascal Lamy, ao não ter espaço político para exercer o seu magistério liberal no seio da União Europeia, naquele que ele desejaria que viesse a ser o primeiro êxito nas suas novas funções. Com um ar falsamente compungido, lembro-me de ter pedido a palavra para dizer que, pelo menos, a União Europeia saía dali com a consciência tranquila de que não seria por virtude do caráter "pouco ambicioso" da sua "oferta" que a OMC não iria ter um qualquer acordo. Acho que Lamy percebeu o gozo com que eu dizia aquilo.
Seattle falhou, clamorosamente, lançando, por muito tempo, uma pausa na negociação comercial multilateral à escala global. Pascal Lamy, anos depois, viria a chefiar a OMC, por um período de oito anos. O saldo desse período não terá sido brilhante, mas não fiquei com a ideia de lhe caberem culpas negociais no cartório.
Ontem, na Culturgest, estive a ouvir Pascal Lamy a falar da Europa, num dueto com Vitor Bento. Já o tinha cruzado em outras duas ocasiões, uma em Paris, outra em Roma, desde esses dias tensos de 1999, passados entre Bruxelas e Seattle.
Senti-o agora um homem muito bem preparado, conhecedor e bastante realista. E, sempre, um europeísta convicto, na senda da figura que tem como seu referente, o notável Jacques Delors. Curiosamente, ontem, depois de todos estes anos, vi-me a concordar com a grande maioria daquilo que Lamy disse. Talvez porque, agora, estivesse a abordar coisas verdadeiramente essenciais para todos nós.
4 comentários:
“Um Comissário é apenas um representante de interesses e esses não mudam, no essencial, com a alteração da Comissão”.
Eis uma questão interessante. Saber que interesses, que não mudam, defende a Comissão. Provavelmente, hoje, a Sr.ª Vonderlien, o Sr. Borell e os demais Comissários estão ao serviço de quem lhe define o plano de ação (interesses). Que interesses serão esses e beneficiam quem?
“Um Comissário, naquela área, é apenas um representante de interesses e esses não mudavam, no essencial, com a alteração da Comissão.”
Pego nisto e vou por aí fora, como de costume.
Gostei mesmo muito de ler este seu texto porque eu, ao mais modesto nível de gestor de empresas privadas, passei por muito disto tudo que aqui conta, todos os que tinham a responsabilidade de lutar para que postos de trabalho não acabassem nem vencimentos ao fim do mês deixassem de ser pagos sabem muito bem do que fala, não ouviram dizer vagamente, não leram uma coisas aqui e ali, viveram intensamente (e por vezes dificilmente) esses tempos e não tinham tempo para vagas dissertações politico-filosóficas nem para cegueiras ideológicas.
Não estava num sector tão sensível como foi por essa altura o dos têxteis e nem sequer directamente ligado a uma área sensível, mas o grupo empresarial estava e, por aqueles tempos, tudo era sensível (ou poderia vir a ser) para um país pequeno e que pouco contava (e conta) quando chegamos a certos tipos de entendimentos globais, as coisas são o que são e só em cabeças muito ingénuas ou megalómanas podem deixar de ser assim.
Pragmatismo é a razão de ser para quem anda nestas andanças, se uma decisão ajudar a resolver 80% dos problemas em determinada conjuntura é uma excelente decisão, é a ouvir os “poetas do 100%” que eu vejo logo quem nunca teve que tomar uma decisão, por mais fácil que fosse, em toda a sua vida.
Ora por essa altura, e como já aqui contei, eu tinha algo a ver, ainda que um pouco vagamente, com Bruxelas e a Comissão (não me vou repetir).
Sendo um “outsider inside” mais que um “insider outside”, falava com muita gente, lia muita coisa e, não sabendo se e quando acabaria algo por sobrar para mim, procurei sempre estar um pouco mais à frente e ír instituindo as possíveis medidas preventivas.
Assim, tenho ainda uma vasta biblioteca relativa a esses tempos, ainda há pouco tempo encontrei no meu sótão algure toda a documentação na altura produzida pelos competentes serviços da “holding”, que íam permitindo a todos os quadros do grupo estarem actualizados sem terem que andar à procura dos livros certos que nem sempre se sabia quais seriam (tempos em que o 1º andar da Livraria Portugal na Rua do Carmo era o sítio certo).
De facto, como em todas as muito grandes e muito burocratizadas instituições, o poder real está na mão dos Directores-Gerais, dos que se vão perpetuando de uma forma ou de outra dentro da estrutura, que vêm de trás e tudo conhecem e que lá ficarão e tudo influenciarão.
Nos anos 90 as Direcções-Gerais estavam muito dependentes de italianos e franceses, com os consequentes bons resultados que esses países obtiveram em termos de definições e decisões no que respeitava a políticas comuns (em especial a França), por cá era uma festa quando um português era nomeado.
E nos anos 90, que é o que está aqui em causa, as administrações de algumas grandes empresas no nosso país “ne faisaient que passer” de 3 em 3 anos e eram muitas vezes reféns dos níveis logo abaixo, aquilo a que sempre me referi como sendo “regimes empresariais de coronéis”, eles próprios influenciando a escolha ou a demissão dos seus superiores “de jure”, era uma situação muito semelhante, quem a viveu bem o sabe.
Já agora.
A Itália teve 68 governos nos últimos 78 anos, o que dá uma média de quase 15 meses por governo, transformando mesmo as tomadas de posse numa espécie de tradição quase anual por lá.
Como muitas vezes esteve por uns bons tempos sem governo, é fácil de perceber que se mantém uma potência graças à sua "escola" de Directores-Gerais, transversais aos partidos e mantendo o barco.
E foi essa "escola" que terão levado nesses tempos para Bruxelas.
Acrescento ao comentário de Manuel Campos que há alguns anos a Bélgica esteve sem governo por mais de um ano, mas, nem a Bélgica nem a Itália, foram menos bem « governadas » quando não tinham governo. Isto só é possível quando os directores gerais são independentes dos políticos, como é o caso nesses dois países (e em muitos outros na Europa). É óbvio que isso nunca funcionaria em Portugal, onde os directores gerais têm tendência a mudar com as mudanças de governo…
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