quarta-feira, julho 26, 2023

A honra perdida de Kevin Spacey


Foi em setembro de 2016, em Kiev, na Ucrânia. Eu estava por lá num encontro sobre relações internacionais. Foi anunciado que, durante o jantar de encerramento, haveria um convidado surpresa.

Estava-se a poucos dias das eleições americanas. No écran da sala surgiu a fotografia de Hillary Clinton. A sala rejubilou. Ela era a candidata que, à época, dava mais garantias de conduzir os EUA, e com eles o mundo ocidental, numa atitude anti-Moscovo - ideia que mobilizava por ali muita gente. Mas Hillary, naturalmente, não se deslocara à Ucrânia.

Surgiu então a foto de Donald Trump. Embora entre os convidados americanos naquele jantar se contassem figuras conservadoras como Robert Gates, John Bolton, Karl Rove ou Newt Gingrich, a sala foi bem menos efusiva, “to say the least”. Aquele era já o tempo do “namoro” entre Trump e Putin e os ucranianos temiam que a sua eventual eleição redundasse num imenso desastre para os seus interesses.

O organizador do encontro, um milionário ucraniano (ou oligarca, como quiserem), disse-nos que, infelizmente, não pudera garantir a presença na conferência de nenhum dos candidatos às eleições americanas. Mas anunciou que tinha um “presidente” substituto à altura. E entrou na sala Kevin Spacey.

Foi uma bela surpresa. O “presidente” da famosa série televisiva “House of Cards”, “Frank Underwood”, fez uma intervenção magnífica, inteligente e informada, sobre relação entre a ficção e a política, dando-nos, com eloquência, a sua visão desse mundo e conseguindo transmitir àquele momento de encerramento uma dignidade e uma qualidade muito elevada. Spacey não era um ator normal; era um intelectual culto e muito elaborado, bem acima da média.

Lembrei-me muito desse jantar, nos anos seguintes, quando vi o nome de Spacey mergulhado, de forma degradante, numa vaga de acusações sobre atos de assédio sexual. Nestes sete anos, Spacey teve a sua honra manchada, a sua carreira arruinada, a sua imagem pública pela lama. 

Entretanto, a justiça americana, e agora a britânica, concluíram pela sua completa inocência e pela falta de fundamento das acusações que sobre ele impendiam. Imagino que possa mesmo vir a ser ressarcido, mas nada apagará o que se passou, tanto mais que, para sempre, haverá uns palermas que dirão, entre dentes, "não há fumo sem fogo..."

9 comentários:

António Nunes disse...

Infelizmente, temos visto outros casos idênticos.
Primeiro, humilhar e destruir. Depois, logo se verá.
Desde um francês em Nova Iorque, até a um promissor político português, entre muitos outros, é fácil acicatar a opinião público contra aquilo que se quer demonizar. O contrário também é verdadeiro: endeusar gente sem escrúpulos, mas convenientes, política e financeiramente.
Tenho pena que o moralismo acéfalo (não se podendo acabar com a chatice da Democracia), no século XXI, continue a fazer tantas vítimas.

Flor disse...

"Nestes sete anos, Spacey teve a sua honra manchada, a sua carreira arruinada, a sua imagem pública pela lama." Infelizmente "da má fama não se livra" Ficou com a vida arruinada. É revoltante!

Lúcio Ferro disse...

Excelente post. Realmente, são tempos perigosos estes em que vivemos. Um bom dia Senhor Emabaixador.

Francisco F disse...

Agora só falta vir o Pacheco Pereira explicar-nos que esta caça às bruxas é culpa da radicalização trazida pela extrema direita...

Mas, indo além da sempiterna desculpabilização da comunicação social e do seu papel na degradação da sociedade, há que lembrar que convém não ter dois pesos e duas medidas: não se pode achar que um estúdio pôr de parte um ator acusado de algo é "feio" e que "despedir" um deputado nas mesmas condições já é sinal de transparência e bom senso. No fim, temos sempre o mesmo princípio: as pessoas são acusadas, não são culpadas. E, no princípio, também temos a mesma preocupação com não queimar as mãos com a batata quente.

Os estúdios despedem atores porque não querem má publicidade e perda de receitas.
Os partidos despedem deputados e governantes, porque não querem má publicidade e perda de votos.

Convém é haver coerência.

J Carvalho disse...

É mais uma vítima do "moralismo acéfalo", a somar a tantas e tantas outras. Mas de onde vem o "moralismo acefalo" que domina o espaço público dos nossos dias?

Unknown disse...

Parece que terá sido ilibado em relação a alguns crimes por falta de provas. Para ser franco, as acusações eram tantas que me custa a acreditar totalmente na inocência do homem. Nesse sentido, sinto-me um bocado "palerma".

Luís Lavoura disse...

Francisco F, excelente comparação.
De facto, cá em Portugal não é preciso alguém ser considerado culpado pelo tribunal, nem sequer ser acusado pelo Ministério Público; basta ser constituído arguido para a sua carreira política ficar destruída.

Nuno Figueiredo disse...

7.

Anónimo disse...

Se se conseguirem muitas acusações contra uma pessoa é de concluir que ele é culpado. Provas para quê? Pruridos inúteis.
Zeca

Isto é verdade?