segunda-feira, maio 01, 2023

O meu primeiro 1° de Maio


Vivi o meu primeiro “Primeiro de maio” na segunda metade dos anos 60. Em sítios esconsos da faculdade apareceram colados uns papéis acastanhados com a expressão “Todos ao Rossio no 1º de maio”, ou uma coisa assim. Creio que também havia a indicação de uma determinada hora. 

Com alguns amigos, muito por curiosidade, lá fui. Era um ambiente tenso, cheio de gente que se movia sem destino, olhando uns para os outros, alguns trocando sorrisos cúmplices. Vi-me a tentar perceber quem seriam os “pides” e os PSP à paisana, que sabíamos abundarem. 

Passaram uns bons minutos sobre a hora anunciada. De súbito, num dos cantos da praça, junto à estação, a caminho dos Restauradores, surgiu um burburinho qualquer, berros e gente a correr. Nos segundos seguintes, detrás no Teatro Nacional, saiu a polícia de choque, parte dela atrás da turbamulta que se agitara, a restante a “limpar” o largo de S. Domingos, em cuja esquina eu estava no momento. Do lado da “Casa da Sorte” criara-se uma outra onda de agitação, que caminhava na minha direção. 

A Ginjinha foi o meu local de refúgio. “Meu”? Devíamos ser aí uns vinte, alguns encavalitados sobre o mármore húmido do balcão, sem coragem de pedir “uma com elas”, porque agora é que iam ser “elas”! 

Por detrás do balcão, os da casa não ousavam exigir consumo mínimo, tentando olhar o largo por cima de nós… Por maior naturalidade que tentássemos dar ao nosso ar, estar ali era uma coisa estranha. De repente, sair da Ginjinha tornou-se imperativo. 

Num instante, vi-me separado dos meus amigos, empurrado a caminho da praça da Figueira. Tentei não correr. Não cheguei à praça. Um bando de PSP de bastão, plantado na estratégica esquina traseira da Suíça, não estimulava continuar por esse caminho. Pensei entrar no “Braz & Braz”, mas as portas tinham-se fechado. Voltar para trás era impensável, entrar na ruela à esquerda, a caminho do Hotel Mundial, era arriscado. Por alguma razão essa artéria estava deserta. 

Olhei à volta. O largo de S. Domingos estava pejado de uma boa dezena de polícias. Que podia fazer? Vi uma porta aberta, entrei num prédio e comecei a subir a escada, embora com a angustiante sensação de que estava a ficar cada vez mais encurralado. Ainda me perguntei: “Mas que tenho eu a temer? Não faço parte de nenhum grupo político, não tenho comigo mais do que uma pasta com sebentas”. Mas logo me dei conta de que a racionalidade da situação era de difícil perceção por parte de um cívico de bastão de borracha preto com que viesse a cruzar-me. 

No primeiro andar, ao cimo da escada, abriu-se uma porta. Tive um baque. Era um homem dos seus cinquenta anos (provavelmente era mais novo, mas para mim tinha já alguma idade), com ar de escriturário ou coisa parecida. Ao olhar a ansiedade da minha cara, deve ter percebido tudo. “Venha para aqui. Deixe passar algum tempo. Isto depois acalma”, disse, sem um sorriso, com um olhar neutro. Entrei, grato. 

Era um escritório, creio que de um despachante, mas já não estou seguro. Ainda devo ter balbuciado algumas palavras, mas rapidamente me dei conta de que o ambiente não estava para grandes conversas. Alguns iam, de quando em vez, por um corredor longo, até à janela num compartimento que dava para o Rossio. Achei que o meu estatuto de “asilado” não me dava o direito a partilhar esse “voyeurisme”, pelo que me mantive sentado na cadeira que me tinham oferecido (nos dias de hoje, estaria a consultar o iPhone, pela certa). 

Não sei quanto tempo passou, pareceu-me muito, mas deve ter sido pouco mais de um quarto de hora. O meu hospedeiro, que manifestamente tinha um ascendente na sala, a qual, aliás, dava ares de estar prestes a encerrar, disse-me, a certa altura: “Acho que já pode ir. As coisas acalmaram”. Agradeci e vi os outros ocupantes do escritório olharem para mim, com o que me pareceu ser uma completa indiferença. Ou seria outra coisa, não sei. Não houve sequer um sorriso, embora eu quisesse crer que era uma silenciosa cumplicidade. Porventura triste e resignada. 

A rua, de facto, estava livre. Já só se viam uns PSP em farda normal, de cor cinza. Cheguei ao Martim Moniz onde apanhei o elétrico até ao Chile e, depois, o “dez” para os Olivais. Terei contado a “aventura” em casa? Não sei. Tinha vindo para Lisboa para estudar, não para estas guerras.

(Hoje, apeteceu-me publicar aqui um texto que, há dois anos, editei em "A Mensagem de Lisboa")

7 comentários:

Sérgio Nunes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Flor disse...

Se é só para observar é sempre melhor estar a um nível mais alto e por trás das vidraças "não vá o diabo teçe-las". Aposto que se o Sr. Embaixador alguma vez entra com toda a calma na Ginginha, lembrar-se-á desse tempo.

Flor disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Bela crónica!

manuel campos disse...


Mais uma muito bem escrita e descrita "história de vida".
Por esses tempos tive mais sorte, o café era grande, tinha tantas mesas e cadeiras ali à mão que não dava grande jeito lá entrar alguém a perseguir alguém, entre corridas no meio da mobília e eventual utilização da mobília como arma de arremesso era arriscado e um desperdício de tempo e energia nas táticas do capitão Maltez, aquele sujeito que estava à sua frente ali na fila das instalações da TAP no Marquês, aquelas onde toda a gente se dirigia de Mini.
Mas só na nossa mais tenra juventude e ingenuidade acreditávamos que, naquelas situações, houvesse uma silenciosa cumplicidade, porventura triste e resignada, a silenciosa reprovação não se distingue muito da outra a olho nu.
Na altura já duvidava bastante, agora tenho (quase) a certeza, mas lá está o “quase”, a gente nunca quer acreditar “tudo”.

afcm disse...

Boas e belas memórias.
Também toma notas, suponho ( na altura, claro, não em computador...).
Ou são apenas "memória" pura ? Se assim for, invejo-o. É obra.

Francisco Seixas da Costa disse...

afcm. Não guardo um papel, nem uma nota.

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