quarta-feira, maio 24, 2023

Outra coisa


Acabei a aula na universidade, meti-me no carro pelo trânsito infernal da tarde de Lisboa, consegui um lugar no estacionamento, aproveitei uma aberta no meu barbeiro no Grémio ("estavas com um cabelame de lado que precisava de uma aparadela", tinha-me dito alguém que me viu na CNN) e, com calma, entre turistas que olhavam aquele espécimen fardado de casaco e gravata, subi o Chiado até à Brasileira. 

Entrei, passavam já uns bons minutos das seis e meia, a sala estava à pinha. Ao fundo, havia uma senhora a falar ao microfone. Graças à gentileza de uma cliente, consegui o último lugar de todo o espaço, na sua mesa. Com a sede dos afogueados, pedi uma imperial e, olhando a opção da minha companheira de pouso, e sem mais imaginação, mandei vir um "éclair" de chocolate (tardes não são dias e a minha glicose anda controlada). Ela sorriu, por eu lhe seguir o bom gosto.

A pessoa que, lá ao fundo, falava, dizia coisas sobre Natália Correia. Estranhei, mas só um bocadinho. Por entre as cabeças, tentei descortinar o inconfundível cabelo da Catarina Carvalho, que me convidara para a sessão. Sem êxito. De um dos autores do livro cujo lançamento ali me levava, o José Ferreira Fernandes, nem rasto. Quase não parecia ali haver nenhum homem! Era um mar de mulheres! Atentei então melhor no que era dito pela senhora que usava da palavra: falava sobre os motivos da sua decisão de escrever uma biografia sobre Natália Correia! 

Ó diabo! Agarrei no iPad, escrevi no tio Google "Ferreira Fernandes" e "Brasileira", na última semana, e lá estava, claro como a água: o lançamento do livro era na Brasileira, às seis e meia da tarde, na quarta-feira... dia 31 de maio, daqui a uma semana!

Acabei a cerveja e o "éclair", pedi a conta à empregada e desculpa à senhora do lado, e saí de fininho. Não é que me não interesse uma biografia da Natália Correia! Antes pelo contrário! Mas, hoje, eu ia ali por outra coisa. E uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. 

ps - a Catarina e o Zé que me desculpem se, lá para o fim do mês, não estiver na Brasileira. Já estive!

10 comentários:

Flor disse...

Estive a ver na NET o interior do Grémio Literário e é um autêntico palácio.

Já não vou à Brasileira há algum tempo e nunca me sentei ao lado do Pessoa. Fica para a próxima.:) Acompanhar um éclair de chocolate com uma cerveja... não. Para mim um sumo de laranja.

Se nos falta o tio Google.... É melhor nem pensar nisso:)

manuel campos disse...


Flor

Sentar ao lado do Pessoa só lá para as tantas da manhã, que ele está sempre acordado.
Descia com frequência a Rua Garrett às mais variadas horas do dia e o Pessoa tinha sempre alguém "ao colo" para a foto.
De resto aquela zona é uma bagunça a qualquer hora do dia, por isso agora só vou à Baixa quando não tenho mesmo outro remédio, como foi o caso na passada 2ª feira.

Na 2ª feira de manhã a minha mulher disse-me "tens que cortar o cabelo".
Nestes casos isto implica que a frase devia terminar com "hoje" ou mesmo "já", mas ela sabe que eu percebi logo e não diz mais nada.
Para ter a última palavra no assunto respondi o que respondo sempre: "Sim".
E lá fui cortar o cabelo.

Flor disse...

Manuel Campos e se eu pedir licença ao Pessoa ele não me deixa sentar? :)

manuel campos disse...


Flor

Se pedir licença não só deixa com visível entusiasmo como, muito pelo contrário, não a deixa ir embora.
É que mais ninguém alguma vez em tempo algum teve esse cuidado de lhe pedir licença para se sentar.

A estátua foi inaugurada a 13 de junho de 1988, no centenário do nascimento de Fernando Pessoa, por Mário Soares então Presidente da República.
Isto quer dizer que sou do tempo em que não estava lá a estátua (e se fosse só desse tempo já não era mau, mas de facto sou de mais tempos, por vezes até de outros tempos, vale-me ter consciência perfeita disso mesmo).

Ora isto foi mal combinado porque eu hoje passei ao pé dele, podia ter-lhe dado uma palavrinha de velho amigo, dizer-lhe que a Flor lá ía visitá-lo, tirá-lo por um instante daquele permanente “desassossego” em que está, logo ele que tão bem escreveu sobre um permanente “desassossego” que era bem diferente nele deste em que o mergulharam agora.

Pois passei, logo eu que tinha aqui dito há dias que nunca mais em tempo algum e outras gabarolices do género.
Mas passei, teve que ser, shame on me.

Uma Baixa ainda pior que a de 2ª feira passada, se possível, habitada pelas mais estranhas gentes, vindas dos mais estranhos sítios, vestidas das mais estranhas formas e que não “olhavam aquele espécimen fardado de casaco e gravata” pois eu ía de blusão de marca, camisa de marca, calças de marca, sapatos de marca e chapéu de marca mas tudo marcas que decerto se encontram em todas as “Feira do Relógio” do mundo em contrafacções de elevada qualidade e não menor distinção.
Ora, como se sabe, os gostos são o que são e há muita gente por esse mundo fora a comprar (por exemplo) sapatos de excelente couro a imitar na perfeição o plástico.

manuel campos disse...


Não apareceu ninguém a perguntar se as peúgas e as cuecas também eram de marca?
Estranho!

manuel campos disse...


Ao jantar descrevi a minha mulher com pormenor as sensações estranhas por que passei esta semana nas minhas idas à Baixa, a de hoje ainda mais estranha do que a anterior, talvez porque eu fosse com atenção a outros pormenores.
Acontece que sou um muito razoável conhecedor da Baixa, como já terei contado, naqueles anos que mediaram entre a minha reforma e a pandemia tive por hábito ír até lá tomar o pequeno-almoço praticamente todos os dias, dar uma voltita e então ír à minha vida, já não tinha horários mais ou menos rígidos a cumprir.
Ora se na 2ª feira a minha preocupação máxima era cortar o cabelo sob pena de ser objecto de sérias sevícias conjugais, hoje ía com um espírito bem mais diletante e, portanto, mais observador.
O que mais me impressionou foi não encontrar quase nenhuns portugueses.
Não exagero: quase nenhuns.

Andei por lá entre o meio-dia e as quatro da tarde com meia-hora para almoçar, bastante mal por acaso, ninguém me manda improvisar.
Não tendo lugar no meu habitual “slow food” e recusando-me a entrar num “fast food” acabei por julgar mal o aspecto e acertei em cheio num “bad food” do melhor que há.
A comida era tão má que só sobrevivi a golpes de tinto, que não era tão mau como ao resto, não ter sido caro não me consola nada, o meu problema é sempre o binómio preço/qualidade e não apenas um dos seus termos (*).

Não me lembro de me ter cruzado, em mais de 3 horas em que andei por lá a dar algumas voltas, com quase ninguém a falar português, com excepção de bastantes brasileiros (tanto turistas como agora trabalhadores-residentes).
Mas português daqui só na FNAC e no restaurante, do lado dos que serviam, do lado dos que comiam éramos 3 ou 4.
Na FNAC, entre a uma e as duas da tarde, não vi nunca mais que 10 pessoas naquele imenso espaço que é o da livraria, jogos e discos, mas esses ao menos eram portugueses (se eram clientes ou só curiosos não sei, não me pus junto às caixas de pagamento).

O turismo que está a aguentar o país via as “Exportações” não é decerto o que anda pela Baixa e pelos bairros históricos (vivo num destes últimos), eu sei qual é mas esse “não se vê na rua”, excepto quando passa em carros alugados com motorista e vidros fumados.
Ora a revitalização que a Baixa teve como consequência do turismo via hotéis e AL não irá impedir o fim de uma importante parte do comércio local.
Os lisboetas deixaram de lá ir e não vão voltar, às novas gerações ir à Baixa não diz nada, muito menos às horas de fazer compras.
Os turistas que lá andam não compram nada nas lojas, quem duvide só tem que lá ir dar uma volta e ir espreitando para dentro de todas as lojas pelas quais passar.
Por outro lado os “Serviços” como escritórios de advogados, bancos comerciais, etc, etc estão todos a fugir de lá, o que ainda reduz mais o número de naturais que, por força dos seus horários apertados, acabavam por comprar muita coisa por ali .

A leitura do texto de Luis Pedro Nunes na última Revista do Expresso é muito educativa, em especial para todos os que por problemas de saúde, distancia física ou puro desinteresse não vão nem têm intenção de lá ir (nem aos bairros antigos).

(*) Não estou como na famosa ironia do Woody Allen de que “a comida era péssima, o que nos valia era que as doses eram grandes”.

Flor disse...

Manuel Campos

O Chiado é uma zona que eu gosto muito. Desde pequena que eu passava por ali com a minha mãe. Eu acompanhava-a nas compras e íamos quase sempre lanchar á Ferrari. Não me lembro de ter visto o espaço onde "sentaram" o Pessoa apesar de estar frente ao "Paris em Lisboa".-

manuel campos disse...


Flor

Guarde essa imagem da Baixa de Lisboa.
Há várias situações na vida em que temos que preservar a última imagem boa com que ficámos de alguém que amámos ou de algum sítio de que gostámos muito, a imagem que nos acompanhará o resto da vida.

caramelo disse...

Eu entrei uma vez na Brasileira e fiquei amedrontado com todo o rócócó e solenidade. E aquelas cadeiras e mesas... Aconteceu-me o mesmo no Majestic do Porto. Das duas, uma: ou vou ao café, ou vou à igreja. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa ;). O mesmo já não me aconteceu no Café de Flore, em Paris, um luxo confortável. Parisienses, é o que é.

Flor disse...

Sr. Embaixador, tenho que dizer isto, é só um fait-divers: Assim que vi esta fotografia lembrei-me logo do que teria acontecido se um carteirista do 28 se lembrasse de ir ali tomar uma bica? :) :)

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