Os miúdos de hoje saberão o que é uma capicua? Se não sabem, vão ao Google, não é? Alguns talvez saibam, mas imagino que muito poucos, nos tempos que correm, acharão a menor graça ao surgimento, num bilhete qualquer, de um número que se pode ler, identicamente, da frente para trás ou vice-versa. Há prazeres inocentes que o tempo fez desaparecer. Isso não é bom nem é mau, apenas revela que vivemos um tempo diferente de outros tempos.
Passando há pouco junto aos outros Prazeres, o largo em frente ao cemitério, olhei o prédio onde viveram uns familiares que já se foram há muito, há mais de meio século. Um casal. Ele era uma figura suave e sorridente; ela era uma mulher "de fibra", nem sempre fácil, palavra às vezes cortante. Completavam-se lindamente, como muitas vezes sucede.
A grande paixão dele (para além de Salazar) era o Benfica. Fazia parte de quantos acompanhavam a equipa pelo mundo, tendo estado presente em momentos idos da glória internacional do clube. A minha condição de sportinguista desgostava-o. Eu era irónico nas conversas mas, sendo ele futebolisticamente "doente" e muito mais velho, optava por não ir muito longe nas minhas provocações, tanto mais que era uma pessoa sempre muito simpática para comigo. Numa visita minha a Lisboa, em fins de 1965, levou-me à Luz ver um "derby" com o Sporting. Para seu azar, o Benfica perdeu 2-4. Recordo a minha forçada contenção, no meio de uma bancada homogeneamente "lampiónica". E, estando perto do relvado, guardei para sempre na memória auditiva o ruído dos remates de Lourenço, autor dos nossos quatro golos.
A razão por que hoje falo desse meu primo é pelo facto de me recordar que ele tinha uma imensa e curiosa coleção de capicuas, em bilhetes de elétrico. Nas suas deslocações diárias, ao longo de décadas, no 28, entre os Prazeres e o seu emprego na rua da Conceição, entretinha-se a coletar esses números de dupla leitura, não sei se por arranjo com o cobrador ou por cumplicidade de "fellow-travellers". Que terá acontecido à coleção? Sem descendentes, alguém terá um dia deitado ao lixo, num instante, o que tantos anos tinha demorado a juntar. A única "vingança" é a certeza do prazer que o primo Augusto teve, por muito tempo, na recolha daqueles bilhetes muito especiais, a maioria, recordo, no valor de sete tostões, que era quanto custava o elétrico de sua casa para o emprego - e vice-versa, como as capicuas.
Mas a que propósito vem hoje esta história das capicuas? perguntar-se-á, com legitimidade, o eventual leitor. É muito simples: ao olhar para este blogue, dei-me conta de que, desde que este espaço foi criado, em 2009, publiquei aqui 11111 posts - onze mil cento e onze textos ou fotografias. Achei graça. É que eu sou do tempo das capicuas. E esta é das boas.
19 comentários:
Também sempre gostei de capicuas ainda que agora quase só dê com elas quando vejo as horas num mostrador digital qualquer.
Portanto a próxima capicua a oferecer-nos é daqui a 1010 textos ou fotografias.
Cá fico à espera.
Agora mesmo veio-me á memória o Quarteto 1111.
Nunca dei muita atenção às capicúas nem às coleções no entanto achei graça às capicúas dos bilhetes de Eléctrico que eu penso seria o 28.
Se reparou, quer dizer que se refere ao post anterior, curiosamente publicado dia 11 do corrente. Aceite, caro Senhor Embaixador, os respeitosos cumprimentos.
Estimado embaixador
Creio que se engana na tarifa do bilhete de eléctrico. Se bem me lembro, custava oito tostões e dava para duas paragens zona.
Melhores cumprimentos
Mário Matos e Lemos
Houve uma época em que o meu pai andava com a mania das capicuas, via-as em todo o lado.
Os referidos momentos gloriosos não são 'idos', são 'ficados'. Pois não está o Senhor Embaixador a referir-se-lhes?
Agora há a tendência para esquecer a palavra capicua e dizer palindroma. Pelo menos nas publicações de Matemática. Influências do inglês?
É como nas receitas médicas. Recentemente notei que estão a usar (na ADSE, por exemplo) prescrição em vez de receita.
Zeca
Eu vejo uma capicua de cada vez que olho para o meu cartão de cidadão: o número dele, com sete algarismos, é uma capicua.
Zeca,
oa "falsos amigos" retirados do inglês estão atualmente por todo o lado. Por exemplo, no futebol fala-se de número de "assistências" que um jogador fez. Ora, em português "assistir" quer dizer "estar presente em, observar". Em inglês "to assist" tem um significado totalmente diferente, quer dizer "ajudar".
É lamentável que hoje em dia muitas pessoas saibam o inglês tão bem que até o confundem com o português.
Parece-me que já está gasta, mas não resisto a publicar a seguinte capícua: "Socorram-me, subi no onibus em Marrocos."
E esta:
Dê cá para quê levá-lo Rosa
De capa Raquel é valorosa
A sequência de letras, não considerando acentos nem hífens, é a mesma mas as frases são diferentes. Não é "palindroma" mas tem piada.
Zeca
@7ze
Excelente! Desconhecia.
MJ
Já que estamos nessa então vamos lá a isso dos palindromos:
1. O galo ama o lago
2. A base do teto desaba
3. A cara rajada da jararaca
4. O trote torto
5. A rua Laura
6. Ato idiota
7. Arara rara
8. A dama admirou o rim da amada
9. Adias a data da saída
10. A miss é péssima
11. Acuda cadela da Leda caduca
12. Aí, Lima falou: “Olá, família”
13. Ajudem Edu, já!
14. Anotaram a data da maratona
15. A pateta ama até tapa
16. E até o Papa poeta é
17. Laço bacana para panaca boçal
18. Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos
19. Missa é assim
20. A gorda ama a droga
Por fim, a palavra que identifica as pessoas que têm aversão aos palíndromos é, como seria de esperar, um palíndromo: Aibofobia.
"Que terá acontecido à coleção?"
No OLX estão lá umas colecções de capicuas a 20€, bilhetes da Carris de 50 e 80 centavos.
Serão alguns desses?
Suponhamos que estamos a falar de bilhetes de 1965 e actualizemos o valor segundo o Índice de preços no consumidor no site do INE (Início/Produtos/IPC - Atualização de Valores).
O valor de 50 centavos corresponde a 0.21€ a preços de 2022 e o de 80 centavos a 0.34€ a preços de 2022.
Claro que eu também sei actualizar os valores do vencimento médio à época e compará-lo com o equivalente de 2022, bem como analisar a evolução das estruturas de custos, mas não deixa de ser um exercício interessante.
Os anglo-saxónicos utilizam muito "radar" como significado de capicua.
Correndo o risco, que não é pequeno, de haver por aqui quem exclame que “Lá vem aquele com mais palíndromos ainda, já não se aguenta”, não resisto a trazer aqui dois que, estes sim, são mesmo a sério, não é para qualquer um chegar a este nível (só para gente “apanhadinha”):
- LUZA ROCELINA, A NAMORADA DO MANUEL, LEU NA MODA DA ROMANA: ANIL É COR AZUL
- O ROMANO ACATA AMORES A DAMAS AMADAS E ROMA ATACA O NAMORO
E ainda dois para gentes românticas, um mais fácil de alcançar que o outro:
- A DIVA EM ARGEL ALEGRA-ME A VIDA
- ROMA É AMOR
Entretanto alguém tem um familiar levado da breca:
- SAIRAM O TIO E OITO MARIAS
E também há por aí um “gourmet” posto de castigo:
- SECO DE RAIVA COLOCO NO COLO CAVIAR E DOCES
PS- Vou lavar o carro que ontem esteve oito horas parado no local errado,
não é um palíndromo mas é uma chatice.
Ao contrário do que alguém comentou:
as·sis·tir - Conjugar
(latim assisto, -ere, colocar-se junto de, parar junto de, estar de pé, estar presente)
verbo transitivo
1. Estar presente; ser testemunha ou espectador. = PRESENCIAR
2. Estar presente para auxiliar ou acompanhar. = AJUDAR, SOCORRER
3. Cooperar, auxiliar.
4. Patrocinar.
"assistir", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/assistir [consultado em 15-05-2023].
O Luís Cultivo tem toda a razão.
Só não tem numa coisa, não foi um "alguém" que comentou, esse "alguém" tem nome e chama-se Luís Lavoura.
Ora eu até sou quem mais vezes vem aqui "embirrar" com o Luís Lavoura e tenho intenção de assim continuar cada vez que ele se puser a jeito (e ele fará o mesmo comigo sempre que entender) mas para mim não é "alguém", é o Luís Lavoura.
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