Ao final da tarde de quarta-feira, na Gulbenkian, ouvi o escritor Giuliano de Empoli fazer uma apresentação do seu badalado livro "O Mago do Kremlin" (já agora, vale bem a pena lê-lo!). Dá pelo nome de Vadim a personagem ficcional que, na trama, surge como o conselheiro de Putin.
E isso trouxe-me à memória um outro Vadim, também russo, que, em outros e distantes tempos, cruzei na vida diplomática.
Foi no início dos anos 80 do século passado, em Luanda. A Guerra Fria estava no seu esplendor. Angola era uma das suas frentes ativas. Soviéticos e cubanos, com muita gente de vários países socialistas do Leste europeu, acolitavam o governo angolano na sua luta política e, em especial, na guerra civil contra as tropas da UNITA.
Portugal era então visto, por Luanda, como um país com uma atitude algo hostil, por permitir a livre movimentação em Lisboa dos adversários do regime do MPLA. Na narrativa local, o nosso país surgia como aparentemente solidário com o satã americano que, ao lado dos sul-africanos, era objeto prioritário da diabolização da propaganda oficial. Não era muito fácil, naqueles tempos, ser por ali diplomata português, como era o meu caso. Mas tinha alguma graça.
Um dia, o nosso embaixador, António Pinto da França, deu-nos conta de ter sido aproximado, numa receção oficial, por um diplomata da União Soviética. Não era uma abordagem com conteúdo substantivo, como o seria se feita pelo embaixador de Moscovo, seu contraparte, hipótese que teria um inevitável significado político e que conviria interpretar de imediato. Naquele caso, fora apenas um funcionário de "ranking" intermédio.
A troca de palavras, disse-nos o nosso embaixador, tinha sido o mais social possível, sobre generalidades, sol e praia. E era mesmo da praia do Mussulo que tinham falado. O diplomata soviético iria, como que por acaso, coincidir connosco, no domingo seguinte, nessa praia. Aí dispúnhamos de uma minúscula casa de apoio - modernizada pelo bolso dos diplomatas portugueses - onde, regularmente, nos reuníamos com amigos. E o embaixador convidou o diplomata soviético para ir lá beber um copo, trazendo a sua família.
O António Pinto da França era assim, desconcertante e "fora da caixa", com conhecimentos improváveis, transmitindo naturalidade a coisas que outros poderiam ler de forma menos linear. Trabalhar com ele era um constante e divertido "happening"! Que saudades!
E lá veio o soviético, que por acaso era russo, com a mulher e dois filhos pequenos. Chamava-se Vadim Mortin. Revelou-se um tipo divertido e expansivo. Falava um português macarrónico, como acontecia com muita gente desse mundo "de Leste", que pululava à volta dos países "do Sul", que Moscovo procurava cultivar, num proselitismo estratégico muito óbvio, na compita bipolar com Washington.
Nenhum de nós tinha dúvidas de que o Vadim estava longe de ser um diplomata típico. As principais embaixadas dos países do "socialismo real" tinham, quase sempre, umas figuras soltas, que não faziam parte do topo da sua lista diplomática mas que, curiosamente, se movimentavam com inusitada facilidade junto dos colegas estrangeiros e das entidades locais. Pertenciam, como era óbvio, aos respetivos serviços de informação. Só isso justificava que, em flagrante contraste com os restantes colegas, tivessem uma grande liberdade para este tipo de contactos. Conheci alguns. Vadim era, claramente, um de eles.
Eu era então o mais novo diplomata da nossa embaixada, embora já a caminho de uma década de profissão. Lembro-me de ter provocado o Vadim, desde o primeiro momento em que nos conhecemos, com os relatos anedóticos das minhas, não muito distantes no tempo, incursões turísticas pelo mundo do centro e leste europeu, nomeadamente pela sua União Soviética. Ao ter-lhe contado episódios, alguns caricatos, de viagens que fizera por Berlim-Leste, Praga, Budapeste, Moscovo, Leninegrado (o nome de São Petersburgo não tinha ainda chegado) e até pela então ucraniana Crimeia, vi surgir nele uma imensa curiosidade. Como, à época, eu cultivava uma volumosa coleção de livros sobre serviços secretos (que hoje repousa, para quem nisso estiver interessado, na Biblioteca Municipal de Vila Real), tinha matéria para falar de alguns pormenores que deixaram o tal Vadim perplexo.
Acho que ele deve ter-se perguntado: será que este tipo disfarça mas, lá mo fundo, é próximo de "nós"? Ou é das secretas "deles"? Como, na altura, ele soube que parte importante do meu trabalho na embaixada era o acompanhamento das movimentações militares no território angolano, o soviético tomou-me rapidamente como interlocutor.
O Vadim bebia muito, como ficou evidente nessa como em várias ocasiões posteriores. E tentava que os outros bebessem com ele, com o óbvio objetivo de os fazer baixar a guarda. Como acontece com este género de profissionais das informações, apenas vivia para reportar, praticamente não dava opiniões nem observava factos, só fazia perguntas. Tentava apurar o que sabíamos e, sem surpresas, que fontes tínhamos. Criar-lhe falsas pistas passou a ser um exercício divertido. As patranhas que lhe impingi!
Com o tempo, e perante a obsessiva repetição das conversas, que se convertiam em enfadonhos inquéritos da sua parte, creio que todos nós, lá na embaixada, a começar no embaixador Pinto da França e a acabar em mim, nos fomos cansando do Vadim, o "nosso" soviético de estimação. Ele terá percebido isso, a nossa retração crescente e, se bem me lembro, foi deixando de aparecer, talvez concluindo que nada de interessante dali levava. E terá deduzido, e bem, que, de "vermelhos", nós só tínhamos lá por casa os rótulos da Stolichnaya, a bela vodka russa.
Há poucas horas, ao final da quinta-feira, regressei à Gulbenkian. Desta vez, para ouvir a 11ª sinfonia de Shostakovitch. Tão russo como a Stolichnaya. Chegado a casa, mandando às malvas as sanções de Bruxelas, bebi um cálice daquela excelente vodka, à memória do passado e de saudação ao futuro. Nazdarovya!
8 comentários:
Cheers!
E depois houve também o realizador francês Roger Vadim :)
pululava
nessa praia tínhamos disponível uma minúscula casa de apoio [...] o embaixador tinha convidado o diplomata soviético para ir lá beber um copo, trazendo a sua família
Hmmm. A casa era minúscula, mas cabiam nela diversos diplomatas portugueses mais o russo e a sua família. A casa não seria tão minúscula assim...
mandando às malvas as sanções de Bruxelas, bebi um cálice daquela excelente vodka
As sanções de Bruxelas são, na prática, medidas protecionistas destinadas a aumentar a quota de mercado das vodkas finlandesas e suecas, que são inferiores em qualidade-preço à vodka russa.
Ao fim e ao cabo, trata-se de utilizar argumentos de (pseudo-)segurança para proteger indústrias europeias decadentes e com fraca relação qualidade-preço.
Não se escreve " pululava"?
O Luís Lavoura tem de ser apresentado ao Dr. Catroga...
Fernando Neves
O Lavoura nunca deve ter ido à praia
Nazdarovya.
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