sexta-feira, maio 12, 2023

Capicuas


Os miúdos de hoje saberão o que é uma capicua? Se não sabem, vão ao Google, não é? Alguns talvez saibam, mas imagino que muito poucos, nos tempos que correm, acharão a menor graça ao surgimento, num bilhete qualquer, de um número que se pode ler, identicamente, da frente para trás ou vice-versa. Há prazeres inocentes que o tempo fez desaparecer. Isso não é bom nem é mau, apenas revela que vivemos um tempo diferente de outros tempos.

Passando há pouco junto aos outros Prazeres, o largo em frente ao cemitério, olhei o prédio onde viveram uns familiares que já se foram há muito, há mais de meio século. Um casal. Ele era uma figura suave e sorridente; ela era uma mulher "de fibra", nem sempre fácil, palavra às vezes cortante. Completavam-se lindamente, como muitas vezes sucede.

A grande paixão dele (para além de Salazar) era o Benfica. Fazia parte de quantos acompanhavam a equipa pelo mundo, tendo estado presente em momentos idos da glória internacional do clube. A minha condição de sportinguista desgostava-o. Eu era irónico nas conversas mas, sendo ele futebolisticamente "doente" e muito mais velho, optava por não ir muito longe nas minhas provocações, tanto mais que era uma pessoa sempre muito simpática para comigo. Numa visita minha a Lisboa, em fins de 1965, levou-me à Luz ver um "derby" com o Sporting. Para seu azar, o Benfica perdeu 2-4. Recordo a minha forçada contenção, no meio de uma bancada homogeneamente "lampiónica". E, estando perto do relvado, guardei para sempre na memória auditiva o ruído dos remates de Lourenço, autor dos nossos quatro golos.

A razão por que hoje falo desse meu primo é pelo facto de me recordar que ele tinha uma imensa e curiosa coleção de capicuas, em bilhetes de elétrico. Nas suas deslocações diárias, ao longo de décadas, no 28, entre os Prazeres e o seu emprego na rua da Conceição, entretinha-se a coletar esses números de dupla leitura, não sei se por arranjo com o cobrador ou por cumplicidade de "fellow-travellers". Que terá acontecido à coleção? Sem descendentes, alguém terá um dia deitado ao lixo, num instante, o que tantos anos tinha demorado a juntar. A única "vingança" é a certeza do prazer que o primo Augusto teve, por muito tempo, na recolha daqueles bilhetes muito especiais, a maioria, recordo, no valor de sete tostões, que era quanto custava o elétrico de sua casa para o emprego - e vice-versa, como as capicuas.

Mas a que propósito vem hoje esta história das capicuas? perguntar-se-á, com legitimidade, o eventual leitor. É muito simples: ao olhar para este blogue, dei-me conta de que, desde que este espaço foi criado, em 2009, publiquei aqui 11111 posts - onze mil cento e onze textos ou fotografias. Achei graça. É que eu sou do tempo das capicuas. E esta é das boas.

19 comentários:

manuel campos disse...


Também sempre gostei de capicuas ainda que agora quase só dê com elas quando vejo as horas num mostrador digital qualquer.

Portanto a próxima capicua a oferecer-nos é daqui a 1010 textos ou fotografias.

Cá fico à espera.

Flor disse...

Agora mesmo veio-me á memória o Quarteto 1111.
Nunca dei muita atenção às capicúas nem às coleções no entanto achei graça às capicúas dos bilhetes de Eléctrico que eu penso seria o 28.

7ze disse...

Se reparou, quer dizer que se refere ao post anterior, curiosamente publicado dia 11 do corrente. Aceite, caro Senhor Embaixador, os respeitosos cumprimentos.

mário matos e lemos disse...

Estimado embaixador

Creio que se engana na tarifa do bilhete de eléctrico. Se bem me lembro, custava oito tostões e dava para duas paragens zona.

Melhores cumprimentos

Mário Matos e Lemos

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Houve uma época em que o meu pai andava com a mania das capicuas, via-as em todo o lado.

Maria João disse...

Os referidos momentos gloriosos não são 'idos', são 'ficados'. Pois não está o Senhor Embaixador a referir-se-lhes?

Anónimo disse...

Agora há a tendência para esquecer a palavra capicua e dizer palindroma. Pelo menos nas publicações de Matemática. Influências do inglês?
É como nas receitas médicas. Recentemente notei que estão a usar (na ADSE, por exemplo) prescrição em vez de receita.
Zeca

Luís Lavoura disse...

Eu vejo uma capicua de cada vez que olho para o meu cartão de cidadão: o número dele, com sete algarismos, é uma capicua.

Luís Lavoura disse...

Zeca,
oa "falsos amigos" retirados do inglês estão atualmente por todo o lado. Por exemplo, no futebol fala-se de número de "assistências" que um jogador fez. Ora, em português "assistir" quer dizer "estar presente em, observar". Em inglês "to assist" tem um significado totalmente diferente, quer dizer "ajudar".
É lamentável que hoje em dia muitas pessoas saibam o inglês tão bem que até o confundem com o português.

7ze disse...

Parece-me que já está gasta, mas não resisto a publicar a seguinte capícua: "Socorram-me, subi no onibus em Marrocos."

Anónimo disse...

E esta:

Dê cá para quê levá-lo Rosa
De capa Raquel é valorosa

A sequência de letras, não considerando acentos nem hífens, é a mesma mas as frases são diferentes. Não é "palindroma" mas tem piada.
Zeca

Maria João disse...

@7ze

Excelente! Desconhecia.

MJ

manuel campos disse...


Já que estamos nessa então vamos lá a isso dos palindromos:

1. O galo ama o lago
2. A base do teto desaba
3. A cara rajada da jararaca
4. O trote torto
5. A rua Laura
6. Ato idiota
7. Arara rara
8. A dama admirou o rim da amada
9. Adias a data da saída
10. A miss é péssima
11. Acuda cadela da Leda caduca
12. Aí, Lima falou: “Olá, família”
13. Ajudem Edu, já!
14. Anotaram a data da maratona
15. A pateta ama até tapa
16. E até o Papa poeta é
17. Laço bacana para panaca boçal
18. Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos
19. Missa é assim
20. A gorda ama a droga

Por fim, a palavra que identifica as pessoas que têm aversão aos palíndromos é, como seria de esperar, um palíndromo: Aibofobia.




manuel campos disse...


"Que terá acontecido à coleção?"

No OLX estão lá umas colecções de capicuas a 20€, bilhetes da Carris de 50 e 80 centavos.
Serão alguns desses?

manuel campos disse...


Suponhamos que estamos a falar de bilhetes de 1965 e actualizemos o valor segundo o Índice de preços no consumidor no site do INE (Início/Produtos/IPC - Atualização de Valores).
O valor de 50 centavos corresponde a 0.21€ a preços de 2022 e o de 80 centavos a 0.34€ a preços de 2022.
Claro que eu também sei actualizar os valores do vencimento médio à época e compará-lo com o equivalente de 2022, bem como analisar a evolução das estruturas de custos, mas não deixa de ser um exercício interessante.

Anónimo disse...

Os anglo-saxónicos utilizam muito "radar" como significado de capicua.

manuel campos disse...


Correndo o risco, que não é pequeno, de haver por aqui quem exclame que “Lá vem aquele com mais palíndromos ainda, já não se aguenta”, não resisto a trazer aqui dois que, estes sim, são mesmo a sério, não é para qualquer um chegar a este nível (só para gente “apanhadinha”):
- LUZA ROCELINA, A NAMORADA DO MANUEL, LEU NA MODA DA ROMANA: ANIL É COR AZUL
- O ROMANO ACATA AMORES A DAMAS AMADAS E ROMA ATACA O NAMORO

E ainda dois para gentes românticas, um mais fácil de alcançar que o outro:
- A DIVA EM ARGEL ALEGRA-ME A VIDA
- ROMA É AMOR

Entretanto alguém tem um familiar levado da breca:
- SAIRAM O TIO E OITO MARIAS

E também há por aí um “gourmet” posto de castigo:
- SECO DE RAIVA COLOCO NO COLO CAVIAR E DOCES


PS- Vou lavar o carro que ontem esteve oito horas parado no local errado,
não é um palíndromo mas é uma chatice.

Luís Cultivo disse...

Ao contrário do que alguém comentou:

as·sis·tir - Conjugar
(latim assisto, -ere, colocar-se junto de, parar junto de, estar de pé, estar presente)
verbo transitivo
1. Estar presente; ser testemunha ou espectador. = PRESENCIAR
2. Estar presente para auxiliar ou acompanhar. = AJUDAR, SOCORRER
3. Cooperar, auxiliar.
4. Patrocinar.

"assistir", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/assistir [consultado em 15-05-2023].

manuel campos disse...


O Luís Cultivo tem toda a razão.

Só não tem numa coisa, não foi um "alguém" que comentou, esse "alguém" tem nome e chama-se Luís Lavoura.

Ora eu até sou quem mais vezes vem aqui "embirrar" com o Luís Lavoura e tenho intenção de assim continuar cada vez que ele se puser a jeito (e ele fará o mesmo comigo sempre que entender) mas para mim não é "alguém", é o Luís Lavoura.


A brigada do Júlio de Matos ataca de novo

Pronto! Lá começaram os maluquinhos do costume a criar uma teoria da conspiração sobre a coincidência temporal nos acidentes aéreos de hoje....