sábado, setembro 10, 2022

Um ano sem Jorge Sampaio

 


(Fotografia de João de Vallera)

“The Crown”


A série televisiva “The Crown” tem um imenso e perverso defeito. Ao dar um tom de verosimilhança a cenas que mais não são do que um mero produto de ficção, esses filmes podem levar os espetadores incautos a tomarem por verdadeiro o que mais não é do que uma mera suposição, por muito imaginativa que esta seja, sobre o caráter das pessoas ali retratadas, sobre a plausibilidade das cenas e diálogos apresentados. Para quem não possa ter tido acesso a outras fontes de informação, a rainha Isabel II ou o seu marido, o príncipe Carlos ou Margareth Thatcher, a princesa Ana ou Diana Spencer, são “mesmo assim”, comportaram-se “dessa maneira”, tanto mais que os filmes, para credibilizarem os seus argumentos, colam factos verdadeiros com outros totalmente inventados, à luz da criatividade dos escribas do “script”. E, deste modo, na cabeça de milhões de visualizadores da série, tudo isso passa logo a ser “História”. Por muito bem construída que a série esteja, um seu espetador mais atento deve ter sempre a consciência de que aquilo a que está a assistir não é um documentário e que há um elevadíssimo grau de arbítrio interpretativo - e, às vezes, claramente preconceituoso - no modo como a família real britânica e outras figuras surgem caricaturadas. No sentido positivo ou negativo, note-se.

(Há dois anos escrevi isto aqui. Repito-o agora.)

sexta-feira, setembro 09, 2022

“A Arte da Guerra”


O legado de Gorbachov, a nova primeira-ministra britânica e périplo de Erdogan pelos Balcãs, são os temas de “A Arte da Guerra” desta semana, o podcast em que converso com o jornalista António Freitas de Sousa, para o “Jornal Económico”. Pode ver aqui.

quinta-feira, setembro 08, 2022

Isabel II e as mãos de Paredes


Carlos Paredes tinha acabado de tocar para Isabel II, acompanhado por Luisa Amaro, naquela noite de 1993, antes do jantar no Guildhall, em Londres. Esse era um dos pontos do programa da visita de Estado que Mário Soares então fazia ao Reino Unido.

Um grupo selecionado de entre os convidados para o jantar tinha tido o privilegio de acompanhar a rainha e Soares, numa sala mais privada, para esse curto espetáculo. Haviam sido uns minutos extraordinários, com a genialidade de Paredes a emergir nos sons que saíam da sua guitarra. Anos antes, em 1985, a rainha já tinha ouvido Paredes, pela primeira vez, na visita de Estado que fez a Portugal.

Acabada a música, toda a a gente se levantou, rainha incluída. Esta aproximou-se então de Carlos Paredes, para o felicitar. E pediu-lhe: “May I see your hands?”. Pegou nas mãos do guitarrista, olhou-lhe os dedos, e disse: “Extraordinary!”

Soares saiu com a rainha e a corte dos convidados. Eu fui cumprimentar Carlos Paredes, comentando com ele o inusitado gesto da rainha. E foi então que ouvi o compositor e genial intérprete a revelar aquela que era a sua proverbial modéstia: "O amigo acha que eu estive bem? É que não estava bem nos meus dias..."

Não tenho procuração

Não tenho procuração de Marcelo Rebelo de Sousa para o defender, a propósito das críticas de que foi objeto, por virtude de ter surgido ao lado de Jair Bolsonaro, na vergonhosa cena que foi a instrumentalização da cerimónia do dia da independência do Brasil, um ato que decorreu sem a dignidade protocolar que minimamente se impunha.

O chefe do Estado português foi convidado pelas autoridades brasileiras para representar o nosso país na ocasião em que se celebram 200 anos desde a data em que o Brasil se emancipou da tutela portuguesa, pelas mãos de um soberano que, anos depois, atravessaria o Atlântico para, por aqui, pôr cobro ao Antigo Regime e instaurar aquela que era a modernidade institucional de então.

Não foi o cidadão brasileiro Jair Bolsonaro quem convidou o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa. Foi o Estado brasileiro que formulou o convite ao chefe do Estado português para estar presente nesta data histórica, não apenas para o Brasil, mas também para Portugal.

Mas, dirão alguns, a chefia da nação brasileira é hoje titulada por uma figura que, um pouco por todo o mundo, é vista como não estando à altura do cargo que ocupa. Milhões de brasileiros sentem-se humilhados por serem representados por uma personalidade daquele jaez (embora muitos outros milhões pensem de maneira diferente, noto). Ao ir ao Brasil nesta ocasião, o presidente português acabou por ser cúmplice objetivo da utilização oportunista que Jair Bolsonaro fez do ato do 7 de setembro, nomeadamente em relação às eleições presidenciais, que terão lugar dentro de menos de um mês. Marcelo Rebelo de Sousa não devia ter-se sujeitado a este vexame.

Vamos ser realistas. Portugal, desde 7 de setembro de 1822, deixou de escolher quem governa o Brasil. Para quem não saiba, lembro que os portugueses costumam ser ainda vistos, por muitos brasileiros, como os culpados por muito daquilo que corre mal no seu país. 200 anos depois! Mas, por favor!, façam-nos a justiça de reconhecer que não fomos nós quem escolheu Bolsonaro para ser presidente do Brasil! Alguém foi, mas não fomos nós!

Era só o que faltava que um Estado multisecular como Portugal, apenas pelo facto do Brasil ser chefiado por quem conjunturalmente é, deixasse de estar presente num momento tão significativo para a história de ambos os países. Era só o que faltava que o presidente português cometesse o erro histórico de deixar que as relações luso-brasileiras, com todas as consequências nos momentos históricos comuns, como que devessem ser “suspensas” só pelo facto do Brasil ter o presidente que tem (e que, volto a lembrar, foi escolhido pelos brasileiros).

Não só não critico minimamente Marcelo Rebelo de Sousa por ter ido ao Brasil nesta ocasião, como estou solidário com o notável e óbvio esforço que fez, pelo interesse e prestígio do país que representa, para suportar aquela cerimónia, aquela companhia e aquela conjuntura.

Sei que está “na moda” criticar Marcelo Rebelo de Sousa, nomeadamente em alguns dos seus comportamentos. Às vezes, aqui entre nós, confesso que também o faço. Contudo, há uma coisa de que ninguém, repito, ninguém pode acusá-lo: de falta de sentido de Estado, na sua postura internacional.

Como profissional de relações externas, com algumas décadas de traquejo, quero deixar muito claro que tenho uma confiança plena, absoluta, no modo como Marcelo Rebelo de Sousa nos representa no estrangeiro, na forma como ele interpreta a responsabilidade de falar e agir em nome de Portugal. Como agora fez no Brasil.

Luís Figo


Uma noite, há pouco mais de vinte anos, à saída de um jantar em Teerão, num lugar que fora um velho caravanserai, um adolescente inquiriu de onde é que vinha o grupo em que eu estava. À minha resposta, abriu um imenso sorriso e disse: “Portugal? Figo!!!”.

O mundo teve quatro nomes quando, em matéria de futebol, se falava de Portugal. De início, foi Eusébio. Depois, foi Figo. Hoje, continua a ser Ronaldo. No banco, com um sucesso ímpar, José Mourinho.

Tenho uma imensa simpatia pela figura de Eusébio, grande admiração, como fã de bom futebol que sou, por Luís Figo, acho que Cristiano Ronaldo é o expoente máximo do profissionalismo e da genialidade. Por Mourinho, fala o seu palmarés.

Luís Figo foi a primeira internacionalização de um futebolista português de primeira grandeza. Acompanhei o seu sucesso no Barcelona, segui e aplaudi os seus êxitos no Real de Madrid, assisti a muitos jogos quase só pelo prazer de o ver jogar. Uma bola nos pés de Luís Figo dava-me imensa confiança de que a jogada poderia vir a ter sucesso. Mais do que Eusébio, mesmo mais que Ronaldo - embora esse esteja bem acima de todos os outros.

Fiquei curioso com a saída de Figo do Barcelona para o seu maior rival. Apesar disso, o assunto não me interessou o suficiente para ler sobre ele. E como não olho para um jornal desportivo desde os meus 20 anos…

Ontem, reparei que a Netflix tinha um filme sobre Luís Figo. Durante uma hora e quarenta, assisti a testemunhos cruzados de todas as personagens envolvidas nessa famosa transferência, desde logo, e longamente, do próprio Luis Figo. A anotei pormenores desses dias e dessa verdadeira saga.

Não quero dizer mais do que isto: Luís Figo não sai nada bem dessa história, relatada no que me pareceu ser um trabalho equilibrado e “fair”. Tenho muita pena.

quarta-feira, setembro 07, 2022

Coração ao alto


Foi necessário ter vivido, em 2008, como embaixador português, o tempo das comemorações dos 200 anos da chegada da corte ao Brasil, para me aperceber da filigrana diplomática que sempre constitui, para o nosso país, o manejo das datas históricas que nos são comuns com uma antiga colónia que teve um dos mais atípicos processos de independência da História mundial.

Constituiu então uma bela lição observar o modo como a narrativa brasileira então tratou, em múltiplas ocasiões, uma figura como dom João VI, tentando equilibrar uma intravável apetência para a caricatura ridicularizante da corte lusitana, que ali tropicalizara os seus bizarros costumes europeus, com a constatação, que a verdade dos factos tornava impossível de contornar, de que acabou por ser essa estada da monarquia lisboeta, exilada pela ambição napoleónica, que deu corpo e acelerou a expressão da nacionalidade brasileira.

Das instituições à cultura, o Brasil sabe bem que a presença da corte foi muito mais do que as coxinhas de frango que o rei adorava, foi bem além das aventuras lúbricas dos príncipes, ou da espanhola que ornara o soberano pelas alcovas ou da rainha louca que acabou por se apagar por ali e, dessa forma, transformou o príncipe que chegara em 1808 no rei que iria um dia regressar às origens. Um pouco “à contre-coeur”, o Brasil sabe que tem obrigação de acarinhar, embora sempre muito lá no fundo, a memória desse rei dolente, um homem que afinal tinha uma sabedoria manhosa, a que o novo país talvez deva alguma coisa mais do que ainda hoje se permite confessar.

Alguns amigos brasileiros - e tenho muitos - não gostam de ouvir-me dizer que a lusofobia é a doença infantil da brasilidade. Mas é. E até é muito natural que assim seja, se olharmos a História com algum realismo.

Uma independência faz-se sempre contra algo ou contra alguém de quem se é dependia. Por vezes, como sucedeu em algumas colónias africanas de Portugal, foi necessária uma luta armada, ela própria eivada de longas e penosas contradições entre os protagonistas, algumas prolongadas até aos dias de hoje, com vista a forçar a mão a um poder colonial relutante em resignar-se às leis da História.

Ora não foi esse o caso do Brasil. Ali, foi o filho do rei português que acabou por corporizar o desejo do novo país de definir e seguir o seu próprio destino, deixando de ser uma muleta económica de um poder europeu decadente, já então quase só inchado de glórias de um tempo que já se fora.

Uns novos “Estados unidos” estavam ali a nascer. Mas não tinham lutado contra Lisboa. Uma nova classe, onde curiosamente estava o dedo letrado de Coimbra, afirmava uma vigorosa vontade nacional e, nesse discurso, era quase imperativo o surgimento de alguma “vingança” contra o antigo poder.

A tal lusofobia, que chegou a ter expressões muito fortes no século XIX, contra os que se quiseram prolongar na máquina do novo Estado, seria mais tarde corporizada na anedota “do português”, castigando o antigo poder através daqueles que ainda dele provinham, na procura do sustento. Era, no termo de contas, uma expressão, afinal benigna, desse inevitável contraste, a substituição, retórica e risonha, da luta armada que nunca teve lugar. Era a farsa, em lugar da tragédia.

É neste contexto que a posição de Portugal, como estranho parceiro nestas comemorações do bicentenário da independência do Brasil, se torna quase fascinante, como objeto diplomático.

Onde estamos, nesses festejos? A nossa posição, porque fomos simpaticamente convidados a participar - e não era imperativo que o fôssemos, vale a pena notar -, é quase a de um observador histórico, não encontrando eu outro qualificativo mais adequado.

Convocados para o exercício, revelamos, como país, silenciosa e discretamente, uma íntima satisfação por sermos chamados ao ato. O gesto brasileiro, em si mesmo, afaga o nosso ego de antiga potência declinante e, no fim de contas, como que dá razão póstuma ao rei que soube gizar um “phasing-out” inteligente, com uma gestão familiar da sua saída de cena.

Que acabe por ser uma relíquia morta, algo macabra, com diferente simbolismo para cada lado, o coração de dom Pedro - que é “primeiro” para uns e “quarto” para outros -, a ser elevado ao alto destas comemorações é algo que não deixa de ter alguma coisa de tocante. Como, afinal, o é a eterna relação luso-brasileira.

(Artigo publicado no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

“A Cidade Imaginária”


Deixei escapar a data! Em 4 de setembro do ano passado (Caramba! Já me parecia ter sido há muito mais tempo!), lancei, em Vila Real, o livro “A Cidade Imaginária - Duas ou Três Coisas sobre Vila Real” , com a chancela da respetiva Biblioteca Municipal. Na ocasião, bem concorrida, numa bela noite de Verão, fez a apresentação o diretor da biblioteca, Vitor Nogueira. 

O livro, com quase 500 páginas, recolhe cerca de duas centenas de textos publicados no meu blogue “Duas ou Três Coisas”, que têm em comum algumas referências à cidade onde nasci e onde vivi até 1966. São historietas leves, referências familiares ou de figuras que cruzei, memórias afetivas escritas ao correr da tecla, desde 2009.

As centenas de exemplares da publicação esgotaram em algumas semanas. Quem quiser ler o texto do livro, pode fazê-lo livremente através do blogue “… Ou Quatro Coisas”, clicando aqui.

terça-feira, setembro 06, 2022

Adriano Moreira


Uma inteligência serena é a definição que me ocorre sobre Adriano Moreira, neste dia em que comemora uma centena de anos de vida vivida com grande elegância.

Papa

Teve graça ouvir o papa Francisco dizer, na CNN Portugal, que o próximo papa poderia chamar-se João XXIV. Diz muito do atual chefe da igreja católica vê-lo citar o nome de alguém que, um dia, abriu as janelas do Vaticano. Por que será que não disse João Paulo III ou Bento XVII?

Brasil

A menos de um mês para a primeira volta das eleições presidenciais brasileiras (2 de outubro), Lula estabiliza a liderança (44%) face a um declinante Bolsonaro (31%), mas o cenário da sua vitória nessa mesma primeira volta parece cada vez menos provável. 

(A segunda volta só tem lugar 28 dias depois! E a posse do vencedor apenas acontece no dia 1° de janeiro de 2023.)

Ciro Gomes, com naturalidade, fixa o terceiro lugar, sem, pelo menos por ora, conseguir chegar aos dois dígitos (8%). A consciência de que, mais uma vez por culpa de Lula (mas, na realidade, muito por culpa própria), o seu velho sonho presidencial se esfuma, leva-o a um discurso que apenas favorece Bolsonaro.

Surpresa positiva na contenda, Simone Tebet, com discurso articulado, é vítima clara da bipolarização, matando assim (com 4%) as esperanças de uma “terceira via”. Pensar que as lideranças oficiais de partidos como o MDB e o PSDB vão ficar ligadas a um resultado deste tipo mostra bem como o Brasil mudou.

Albion

Liz Truss, a nova PM britânica, emana do mesmo caldo de cultura que deu o Brexit. O grupo parlamentar não a queria como líder, pelo que ela resulta de um eleitorado feito de medos e mitos. As expetativas são tão baixas que tudo o que fizer de bom será saudado como se fosse ótimo.

Angola

Tenho fundadas esperanças de que o bom senso acabe por prevalecer em Angola. Ainda não é desta que a Unita será poder mas, se tiver juízo e se o MPLA não tiver sabedoria, isso pode vir a acontecer. Escusado, em absoluto, foi a afirmação da força militar. Não havia necessidade…

segunda-feira, setembro 05, 2022

Bom, eles lá sabem…

Imagino que não deva ser fácil aos partidos da oposição acomodarem-se à ideia de que, irremediavelmente, vão ficar nesse mesmo lugar nos próximos quatro anos, em face da maioria absoluta existente. Mas não sei se será muito inteligente optarem por um discurso de bota-abaixo, numa noite em que o país teve notícias de que gostou. Por outro lado, no caso do PSD, ao afirmar que o governo está, no fundo, a tomar medidas que ele próprio preconizava, não deveria congratular-se com essas decisões? 

domingo, setembro 04, 2022

É assim

Não recordo ter-me acontecido antes. Vivo no crescente incómodo de me sentir acompanhado, em alguns sentimentos que o caso ucraniano me suscita, por gente cujas ideias abertamente detesto e que estão nos antípodas de tudo aquilo que eu penso.

sábado, setembro 03, 2022

Na Plaka


Final dos anos 70. Novembro. Tinha chegado a Atenas, ido de Benghazi, na Líbia. (Dois dias depois, ainda por lá estava, caiu uma chuva ”que deus a dava”, com inundações e mortos na cidade). 

Nesse tempo, eu ainda reservava hotéis quando chegava aos aeroportos. Erro que há muito não cometo. Aquele que me indicaram estava num degrau antes de ser uma espelunca. 

O dia tinha sido longo. Saí para jantar. Sozinho. De mapa na mão, porque, nas coisas de lazer, sempre fui muito organizado. Tinha percebido que, na Atenas turística desse tempo, era de regra ir jantar à Plaka. A Plaka estava, para Atenas, como o Bairro Alto passou a estar para Lisboa, uns anos mais tarde. Sem fados mas, igualmente, comendo-se sustentadamente mal. 

(Está bem, já sei! Tenho de descontar o “Pap’Açorda” e o “ Casanostra” . E também o “Bota Alta”, a “Primavera do Jerónimo”, o “Farta-Brutos”, o “Antigo Primeiro de Maio” e o “Baralto”. Está bem! Pronto! Ressalvo ainda a “Adega das Mercês”, o “Último Tango”, a “Tasca do Manel” e o “Alfaia”. Fico-me por aqui, porque se me fenece a memória…)

Sentei-me num restaurante, numa praça, e pedi uma “moussaka”. Era tudo o que me lembrava de comida grega, desde um lugar sofrível com esse rótulo, a que tinha ido, meses antes, em Londres, com a Fernanda e o Bartolomeu Cid dos Santos, perto de Tottenham Court Road. Ou de um “soit-disant” grego que existiu ali perto dos pastéis de Belém (alguém ainda se lembra?). 

E para beber? “Quer vinho grego?”, perguntou o fâmulo, de mangas arregaçadas. Disse que sim, com a timidez inconsciente dos néscios. Veio meia garrafa de branco. Provei e chamei o empregado: “Não está bom!”. Não era que estivesse “bouchonné”, mas tinha um cheiro e um gosto estranho, amargo, desagradável. Sem protestos, chegou nova garrafa. Provei. Tinha exatamente o mesmo sabor. À vista da repetição do meu esgar, o homem - igual a nós, porque os gregos são a nossa cara chapada - olhava, divertido: “Já tinha provado ‘retsina’ antes?“, perguntou, num inglês macarrónico. Eu só vagamente tinha ouvido falar dessa tal “retsina”, uma palavra cuja similitude com resina, pela prova, ali aprendi, de vez, estar longe de ser casual. Na altura, senti o meu cosmopolitismo a esvair-se. “É que o sabor da ‘retsina’ é esse mesmo!”, disse ele. Com os anos, percebi que a “retsina”, afinal, pode ”ir bem” com alguns pratos gregos.

Já não sei com que é que acompanhei a “moussaka”. Imagino que tivesse sido cerveja, que é aquilo a que recorro sempre, em situações limite. 

(“Piva”, era o que eu pedia, em russo, várias vezes ao dia, nos intervalos da vodka, nas três semanas em que percorri os países da Ásia Central, pelas fronteiras da China, do Afeganistão e do Irão. E, até hoje, a minha Gama GT e os trigliceridos continuam normais, dizem).

E a “moussaka” lá marchou, “tant bien que mal”. No final, pedi um café. “Greek coffee?”, perguntou o rapaz. Disse que sim. Sou pouco dado a derivas “native”, mas, depois da experiência da “retsina”, não custava nada dar uma de Lévy-Strauss. Quando a mistela chegou, com uma imunda borra no fundo, reagi: “Mas isto é café turco!”

O que eu fui dizer! Qualificar, na Grécia, alguma coisa que eles tenham por boa como turca, é equivalente a dizer aos de Lever que a barragem ali ao lado é de Crestuma. O tipo abespinhou-se e, em grego, creio que disse coisas que, imagino, devem ter procurado ofender a minha mãe, lá por Vila Real. Emborquei a bebida até ao pó, paguei e desandei, “de fininho”. 

Andei e jantei pela Plaka, depois disso, um par de vezes, mas sempre à distância do local daquela primeira noite. Vinte e tal anos depois, com Joseph Stiglitz, e as nossas respetivas, depois de uma semana de debates, em Creta. num “think tank”, fomos os quatro jantar à Plaka. E não é que o economista, num impulso, deu ares de se decidir pelo mesmo restaurante daquela minha primeira experiência!? Ao que eu, com uma imensa autoridade gastronómica, expliquei: “Aí não se come bem!”. O Joe, que só iria ser prémio Nobel da Economia meses depois (se eu tivesse desconfiado, tinha pago o jantar, para pôr essa “franqueza” premonitória no currículo), deve ter pensado: “Este tipo conhece imenso os restaurantes, aqui em Atenas”. Na verdade, eu só estava a tentar evitar encontrar-me com o empregado a quem, nesse final dos anos 70, não tinha deixado a menor gorgeta, coisa que, na Grécia, só não é um “casus belli” porque a expressão é latina…

Por que é que me lembrei agora disto? Porque, ao passar os olhos por uma desarrumada estante, aqui em casa, há minutos, deparei com o “Globalization and its Discontents”, de Joseph Stiglitz, em cujo pré-lançamento estive, em Nova Iorque, na fabulosa casa da sua sogra, no Upper West Side. E agora, intimamente, pergunto-me: será que alguma vez li o livro até ao fim? Tive um súbito frémito de vergonha, mas já passou!

Não sou de modas!

Sei que se diz assim. Mas, quando ouço ”procedimento concursal”, aparece-me logo urticária. Mais do que o prurido dérmico que surge quando ouço “hodierno“, “alavancar”, ”empoderamento”, “resiliência”, “novas ferramentas”, “as geografias” e, claro, “experienciar”.

“Spectator”

Hoje, deu-me para comprar o “Spectator”. E lembrei- me de Boris Johnson. Pense-se o que dele se pensar, há uma diferença abissal entre Johnson e a futura primeira-ministra britânica, além da ridícula bravata jingoísta que os une. Truss nunca será diretora do “Spectator”.

Zaporizhia

Há muitos anos, seguindo a lógica corrente nos romances policiais, os franceses davam um conselho sábio para a descoberta do autor do delito: "Cherchez la femme!". Nos ataques a Zaporizhia, sigam essa mesma linha, perguntem-se a quem eles aproveitam. Claro que pode não convir...

Wiriamu

Devemos estar bem atentos às reações internas à declaração de António Costa sobre Wiriamu. A separação moral das águas faz-se por aqui.

sexta-feira, setembro 02, 2022

Voltei à feira


Há pouco, comprei mais quatro livros, na feira. Dois sobre a Pide (para compensar a miserável capa de um jornal de hoje, gente com evidentes saudades da dita), um sobre as nossas relações com a “pérfida Albion” e ainda outro com crónicas de Fernando Sabino. Depois de jantar, vou ter de passar pela FNAC das Amoreiras. É que me disseram que estão lá a vender tempo, em saldo. E, embora possa parecer que não, ando com imensa falta dele. Como tenho cartão FNAC, ainda ganho algum desconto. Isto, com a idade, é só vantagens, acreditem! Se quiserem.

quinta-feira, setembro 01, 2022

Onde é o fogo?


Em Vila Real, na minha meninice, as duas corporações de bombeiros voluntários mantinham (manterão ainda?) uma forte rivalidade entre si. 

Eu era “pelos” bombeiros “de cima”, cujo quartel ficava bastante perto de minha casa, mas, por uma qualquer razão, em dias sem escola, imagino que naqueles verões infernais, passava algum tempo a tagarelar ao fresco no dos “de baixo”, por onde andava muito o meu amigo João Leite Gomes, vizinho dali. Os quartéis, valha a verdade, não ficavam longe um do outro. Na Vila Real desse tempo, aliás, tudo ficava perto. 

Imagino que os dourados e o exotismo da maquinaria de combate aos incêndios devessem seduzir os meus oito ou nove anos, recordando-me bem de que nunca me aproximava das ambulâncias, que sempre me suscitavam maus presságios.

À época, os bombeiros “de baixo” tinham a mais inconcebível das geografias: ficavam a meio da estreita Rua Direita, a artéria que, nesse tempo, era o eixo comercial da cidade. 

Para fazer sair os carros de bombeiros daquele quartel, de um local onde hoje está um café, era preciso proceder a complexas manobras, que seguramente atrasavam o socorro, obrigando a uma tarefa insana por parte do motorista e quarteleiro, o Magalhães, que, creio, vivia com a família no andar sobre o quartel. Tudo era por ali: o comandante dos bombeiros, o senhor Neto, vivia quase em frente e recordo que tinha um carro com uma cor vermelha, num mimetismo óbvio com as viatura da corporação. 

O Magalhães era um homem grande, muito simpático, que me dava a confiança de ter comigo algumas conversas, sei lá bem sobre quê, quando eu por ali me “aquartelava”, nessas tardes de férias numa cidade onde nada de jeito havia para fazer. Conhecia a minha família e presumo que eu não lhe atrapalhasse o serviço de “afinação” das viaturas e da limpeza dos “amarelos”. Tinha o Magalhães por “um amigo”.

Um dia, vinha eu com os meus pais ao longo da Rua Direita, imagino que num final de tarde, quando a sirene dos bombeiros alertou para um incêndio. A rua entrou em polvorosa, com os comerciantes a acorrerem às portas das lojas. Ao aproximarmo-nos do quartel dos bombeiros “de baixo”, a agitação aumentava. Ao volante do garrido carro de combate a fogos, que tinha bancos exteriores para os “voluntários”, que tinham saído a correr dos empregos e iam saltando para a viatura, depois de recolherem os capacetes com dourados a reluzir, lá vimos, afogueado, o Magalhães, tentando efetuar a complexa manobra de saída do quartel.

Durante décadas, o meu pai contava e recontava, entre risos de chacota, a historieta de que eu, no meio da tormentosa manobra que o Magalhães tinha em curso, com a barulheira do motor do carro de bombeiros em fundo, inconsciente da confusão que invadia todo o momento, terei lançado, do passeio, em direção ao condutor, um berro de catraio: “Magalhães! Ó Magalhães! Onde é o fogo?”. Não consta que o Magalhães tivesse respondido…

Porque é que me lembrei disto hoje? Porque acabo de sair da Presidência da República onde, exercendo a minha dupla qualidade de vila-realense e de membro do Conselho das Ordens honoríficas, fui testemunhar, ao final desta tarde, com imenso gosto, a entrega de uma comenda aos nossos fantásticos bombeiros “de baixo”, os voluntários da Cruz Branca, cujo magnífico trabalho merece um amplo reconhecimento de todos nós.

Ainda estive tentado a explicar ao presidente da República a bipolaridade bombeiral da minha terra. Mas desisti. Era difícil descrever que os “de baixo” já mudaram entretanto de quartel duas vezes e que o atual fica numa equidistância de dois restaurantes da “Bila” onde eu, um dia, o vou convidar para jantar, já que ele não almoça. 

De uma coisa tenho eu a certeza: Marcelo Rebelo de Sousa, que sabe tudo, não sabe quem foi o Magalhães, esse meu antigo amigo dos bombeiros “de baixo”, onde hoje mantenho alguns outros bons amigos. E que a comenda que a corporação hoje recebeu das suas mãos, pelos muitos anos da sua bela história, também acaba por ser dedicada ao meu amigo Magalhães, que já há muito terá saído do fogo da vida.

Perda de gás

O entusiasmo “va-t’en-guerre”, que conquistou os corações de uma Europa onde não chegou o cheiro da metralha, vai diluir-se muito com as primeiras faturas “gordas” da energia. Putin seria o destinatário natural dessa raiva, mas os governos nacionais estão mais à mão.

quarta-feira, agosto 31, 2022

A Arte da Guerra


Esta semana, falo com António Freitas de Sousa, no podcast “A Arte da Guerra”, Jornal Económico, sobre as eleições em Angola, a campanha presidencial no Brasil e tensão nos Estados Unidos, centrada na figura de Donald Trump. 

Pode ver aqui.

Vento leste

Na sua reação à morte de Mikhaïl Gorbachev, o PCP revela a superior qualidade de ser um partido que nunca nos surpreende.

Mesas de agosto - “Casas do Bragal” (Coimbra)


Coimbra, para mim, foi sempre um mistério em matéria de restauração recomendável - e deixo estas linhas expostas às balas de reação dos conimbricenses fanáticos. Por anos, e porque a abundante Bairrada era já ali perto, passávamos adiante. Nos tempos em que a sina rodoviária nos encafuava obrigatoriamente na EN 1, às vezes com longas filas para atravessar a cidade, um tio ensinou-me o “Pinto d’Ouro”, um clássico desaparecido há muito (os últimos anos foram de trágico declínio), à entrada da ponte. Do outro lado do Mondego, havia um restaurante simpático, cujo nome me escapa, logo à saída da Portagem, nos primeiros metros a caminho da estrada da Beira. Se com pressa, ia-se a uma espécie de snack-bar, cujo nome também esqueci, em frente à Auto-Industrial. Com mais tempo, numa de típico, fazia-se uma surtida ao Zé Manel, mas eu nunca fui muito de ossos. E que mais? A sério, havia o restaurante das piscinas e ainda há, mais p’ró fino e carote, mas muito bom, o “Arcadas da Capela”, na Quinta das Lágrimas. E uma ou outra coisa, como o restaurante do museu Machado de Castro, uma boa experiência. Mas tenho de me informar melhor sobre a atual oferta restaurativa em Coimbra.

Há já bastantes anos, tendo afazeres em Coimbra, telefonei a um oráculo de estimação, que sabe imenso sobre isto, perguntando por dicas. Foi ele quem me falou do “Casas do Bragal”, uma reconstrução como ideia, nas cercanias de Coimbra, de um restaurante que já tinha existido na Beira. Creio que ainda não tinha experimentado a casa, mas tinha boas referências, pelo que até lhe era útil uma “cobaia”. E lá fui. O “lá” é mais fácil de dizer do que de chegar. Não me vou pôr aqui com explicações. Metam o GPS ou telefonem, pedindo indicações. Fica a 10 minutos de carro do centro de Coimbra, embora esta seja uma cidade em que o conceito de centro é mais que discutível. 

O importante é que, em Coimbra, me “viciei” na cozinha da Manuela Cerca, com a sala sob o comando do Eugénio Martins. Um espaço interessantíssimo, numa moradia de bairro, em que os pratos são pedidos enquanto nos refastelamos com um gin numa zona de sofás, rodeados de livros e revistas, só partindo para a mesa mais tarde, quando por lá já estão as seis entradas e as vitualhas centrais se aprestam a chegar. A carta vai variando. Peçam ao Eugénio sugestões de vinhos: já me fez descobrir coisas interessantes. As sobremesas estão num lugar onde sempre vou petiscar várias doçarias, para crédito da minha taxa de glicémia. Os preços, bem, os preços estão na conta de um restaurante de qualidade.

Na noite de sexta-feira, enquanto me concentrava sobre o que ia dizer ao encontro do Bloco de Esquerda, na manhã seguinte, como orador exterior convidado para falar sobre um tema de política internacional, decidi ir recarregar as minhas baterias burguesas ao “Casas do Bragal”. 

Mikhaïl Gorbachev


Morreu ontem Mikhaïl Gorbachev, aos 91 anos. Foi o “notário” do fim da União Soviética, da sua implosão em 15 entidades nacionais diferentes, depois de ter sido secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e último presidente do país que fora criado pela Revolução de 1917. 

Como acontece com algumas figuras que são apanhadas na charneira da História, Gorbachev (ou Gorbachov, como é vulgar, entre nós, variar a grafia dos nomes russos) acabou por titular o encerramento de um período, ficando colado à abertura de outro, sem nele se firmar. 

Gorbachev repousa, irremediavelmente, nessa mesma História, como uma pessoa mal-amada no seu país. Mas, ao invés, passou a ser uma vedeta no mundo ocidental, por duas razões conjugadas. A primeira, por ter permitido a transição suave, sem violência, para esse mesmo espaço, das antigas “democracias populares” do Centro e Leste europeus, bem como a reunificação da Alemanha. O ocidente também nunca lhe negou uma imensa gratidão pelo facto da sua prática, como governante, ter culminado na dissolução da União Soviética, que era o seu maior adversário. Gorbachev assinou, na prática, a ata de derrota da URSS no fim da Guerra Fria. Verdade seja que, a não ser ele, outro o teria feito, no culminar do clamoroso falhanço do modelo.

Recordo ter lido algures que, nos ultimos anos, Gorbachev era uma figura que, na Rússia, merecia apenas 14% de apreciações positivas. Critico de Putin, como já o tinha sido de Yeltsin, Gorbachev, se acaso a sua voz tivesse sido ouvida, seria, com toda a certeza, um opositor da invasão da Ucrânia. Vai ter assim alguma graça observar como a Rússia oficial reagirá à sua morte.

Ainda antes de ter andado nas bocas do mundo, Gorbachev veio um dia a Portugal, a um congresso do PCP, creio que no Porto. Era então uma das figuras possíveis para sucessão de Chernenko. Recordo que nenhum dos nossos “kremlinólogos” o apontou como o homem seguinte. Mas, das fotografias que os jornais trouxeram, fixei-lhe a cara.

Um dia, já em Março de 2000, António Guterres convidou-me para um almoço com Gorbatchev, na residência oficial, em S. Bento. Estava também o ministro da Defesa, Júlio Castro Caldas e, claro, o intérprete de Gorbachev.

Gorbachev estava em Lisboa creio que para uma conferência. Acabei por jantar de novo com ele, talvez no dia seguinte, dessa vez também com uma sua filha, no forte de S. Julião da Barra, a convite de Castro Caldas, com umas largas dezenas de convidados. Não guardo a menor memória de coisas ditas nesse jantar - e eu tenho boa memória.

Mas recordo o tal almoço, para o qual, confesso, entrei com uma elevada expetativa. Na realidade, tratando-se de uma figura que atravessara um período riquíssimo da vida internacional, que protagonizara o fim do mundo soviético, que vivera a trágica convulsão interna dessa desagregação, que fora interlocutor estratégico privilegiado dos Estados Unidos e de personagens como Thatcher, Kohl ou Mitterrand - por todas essas e por outras razões mais, esperava ir ter um almoço memorável. Nunca comparei notas com António Guterres e Júlio Castro Caldas sobre esse repasto, mas devo dizer que saí dele um tanto desiludido com a figura que o justificou.

Mikhaïl Gorbatchev não deixava de ser uma personalidade interessante, mas, quando o avalio à luz daquelas horas em que o ouvi, está muito longe de ser uma figura fascinante. Falou imenso, mas deu-me a sensação de ter criado e ensaiado um discurso feito à medida daquilo que os seus interlocutores dele esperariam, auto-justificativo, muito óbvio, com ideias que, como dizia o outro, quando eram originais não eram boas e que quando eram boas não eram originais. Mais tarde, ao ler alguns textos seus, voltei a não encontrar razões para mudar de opinião.

Dito isto, que fique bem claro: Mikhaïl Gorbatchev é uma das figuras que ficará na história contemporânea, olhado contudo com mais ou menos apreço, consoante as geografias de onde essa sua imagem é observada.

terça-feira, agosto 30, 2022

Respeito e gratidão


Tenho um imenso respeito por Marta Temido, pela coragem, dedicação e competência que revelou durante um dos períodos mais complexos da saúde pública em Portugal. Deixo-lhe expresso, como cidadão português, o meu profundo agradecimento.

segunda-feira, agosto 29, 2022

O sorriso do Duarte

Agosto de 1975. Palácio das Necessidades. Eu, acabado de tomar posse como diplomata, mas ainda nos últimos dias de tropa, com farta bigodeira e cabelo “Verão quente”, de camisola de gola alta, teimando em não usar gravata. Ele, impecável no seu blazer azul, imagino que com o lencinho a pingar do bolso, calça clara, já diplomata “por uma pinta”.

- “Tás” bom?! Já não nos víamos há muito tempo? Que é feito de ti?

- Desculpe. Deve estar a confundir-me com o meu irmão, com o Tó. 

Era isso. Ele era o Duarte Ramalho Ortigão. Eu tinha sido colega de ano e de curso do irmão, António Ramalho Ortigão. Ambos eram muito parecidos.

Passou, entretanto, década e meia. A vida profissional, como é de regra, deu-nos destinos diferentes. Mas, a partir de 1990, por mais de quatro anos, haveríamos de coincidir em Londres, ele como cônsul-geral, eu como ministro-conselheiro da embaixada.

Quantas belas noitadas, em família e com amigos, nós então tivemos! Restaurantes (eu, já então, “pesquisador” de locais bizarros), idas aos cavalos a Ascot, às regatas de Henley, às receções de Buckingham.

Em uma dessas receções, a princesa Diana aproximou-se da delegação portuguesa e, vendo pingar dos pescoços, meu e do Duarte, que estávamos impantes nas nossas casacas, a insígnia da Cruz de Cristo, sopesou com a mão, atrevida, a insígnia do Duarte (e não a minha, vá-se lá saber o porquê da discriminação!), e inquiriu junto do embaixador António Vaz Pereira, que chefiava o nosso grupo: "Ambassador, you don't have it?". Vaz Pereira, que tinha ao peito outras condecorações bem importantes, mas não tinha a Cruz de Cristo, respondeu, diplomático: "I'm working for it, Your Highness!".

Nesses anos de Londres, ambos construímos então uma bela amizade, com ele e com a Binha, feita de expedições familiares a Portobello Road (eu baldava-me bastante e fazia-me “representar”, valha a verdade, porque aproveitava essas manhãs de sábado para pôr em dia o sono das noites da semana), onde ele era o maior “expert” em antiguidades e descobridor de velharias que valiam a pena.

O Duarte era extrema “boa onda”, era muito boa pessoa. Tinha um riso saudável, uma gargalhada muito franca. Mantinha um ambiente familiar de imenso equilíbrio, com uma prole de que, ele e a Binha, cuidavam ao pormenor, numa harmonia que todos admirávamos.

Entre algumas outras ocasiões, lembro-me de um agradável jantar ao ar livre, no Pireu, numa viagem nossa a Atenas, creio que idos de Nova Iorque, ao tempo em que ele era embaixador na Grécia. Nunca esqueci, também, que, em 2009, à nossa chegada a Paris, estando ele a horas de sair de embaixador na Unesco, insistiu em oferecer-nos um jantar de boas-vindas. Entre nós, a conversa fluia sempre, bem disposta, como se nos tivéssemos deixado na véspera. 

Num dos períodos mais complexos da pandemia, telefonei a saber da sua saúde, que tinha ecos de ter atravessado momentos complexos. Estava com um excelente espírito, falámos em organizar uma jantarada, “quando sairmos desta”. 

Afinal, já não vai ser possível. Há pouco, disseram-me que o Duarte saiu ontem de cena, vítima dessa tal pandemia que, afinal, continua a andar por aí.

Deixo um beijo de imenso pesar à Binha e ao filhos, bem como um abraço ao Tó. Não vamos poder contar com o sorriso bom do Duarte. Cada vez mais, esta vida anda pela hora da morte.

Os leitores deste blogue são uns privilegiados!

Mais uma mensagem do maluquinho anónimo (exceto pelo facilmente identificado IP, que já seguiu para a PJ, mas apenas pelo caráter insultuoso) do blogue pró-moscovita. Que delícia!

“Podes censurar à vontade Seixas da Costa, meu grande ordinário, que eu estou a mandar os links do blogue, um por um, para todos os teus leitores. Está tudo a receber a verdade suprema. You lose, I win!!! Fuck you!!!!!!!!!!!”

Brasil

Debate presidencial. Um desastre para um Bolsonaro descontrolado e misógino. Menos bom para Lula, que não começou mal mas acabou crispado e defensivo. Tebet marcou pontos, pelo discurso articulado, no eleitorado “terceira via”, que pode ser tentado a abster-se. Ciro confirmou-se “the best president we’ll never have”. Dúvida: que importância irá ter este debate no sentido final de voto?

domingo, agosto 28, 2022

Refletir sobre a Ucrânia


Acompanhados por um interessado e interventivo auditório, com “casa cheia”, discuti ontem com Luís Fazenda, em Coimbra, as expetativas para uma paz na Ucrânia.

Tratou-se de um debate integrado numa iniciativa muito alargada de reflexão, de adesão aberta, organizada pelo Bloco de Esquerda. Na ocasião, recordei que, há uns anos, havia sido desafiado por João Semedo para participar numa realização idêntica, convite que então não pude aceitar. 

Desta vez, tive muito gosto em participar num exercício onde, durante hora e meia, foi possível trocar ideias, com serenidade, sem radicalismos nem preconceitos, sobre aquele que é o tema mais candente da vida internacional dos nossos dias. 

Promover o cruzamento de perspetivas, com gente vinda de outras “freguesias” políticas, revela uma salutar capacidade de diálogo do partido dirigido por Catarina Martins. E parabéns também ao meu amigo José Manuel Pureza, pela organização do evento na “sua” Coimbra.

“Contrapoder”


Fui ontem convidado a fazer “uma perninha” no “Contrapoder” da CNN. Teve graça.

Feira


Ontem, percorri metade da feira do livro. Gastei €12,50. Será que faço a feira, este ano, por €25? Estou com uma contenção tal que nem me reconheço…

Visto ontem

 


sábado, agosto 27, 2022

Mesas de agosto - “Vela Latina” (Lisboa)


Vou confessar uma coisa: durante anos, quase sempre que alguém do PSD combinava comigo um almoço, para tratar de uma questão de natureza política, tinha quase a certeza de que o restaurante sugerido seria o “Vela Latina”. O pessoal do CDS sugeria sempre coisas clássicas e centrais, às vezes clubes; os do PCP optavam por locais mais espartanos e discretos, na outra banda ou em bairros periféricos; os do Bloco eram lugares de ambiente leve mas “trendy”, com preços razoáveis; os do PS? Comem onde calha, mas sempre bem! Um dia, e no estado em que anda a academia, ainda veremos alguém fazer um doutoramento de sociologia política em torno das preferências de raíz gastronómica dos quadros políticos. Contem comigo como fonte!

O “Vela Latina”, que fica nas proximidades da Torre de Belém, tem a superior vantagem de sempre se poder estacionar o carro, usando os seus lugares privativos. Ora eu, como assumido comodista de alto coturno, faço parte de quantos, sendo tal possível, estacionam mesmo em frente à porta dos locais onde pretendem comer.

Numa certa altura, o restaurante acomodou-se, se assim se pode dizer: não evoluía, a comida era de qualidade mas não entusiasmante, o serviço era cuidado e sempre atento, mas dava ares de começar a ser uma casa “cansada”. Ia-se lá por comodismo, na lógica: “Onde vamos comer? Sei lá! Olha! Talvez ao “Vela Latina”. É fácil de estacionar…”

Depois, um dia, tudo mudou. O “Vela Latina” renovou-se. Melhorou a lista, atualizou os vinhos, reviu o mobiliário, arejou a varanda (e até parece que criou uma dimensão asiática, na antiga sala de espera. Mas essa não é a minha praia, porque, tal como dizia, com óbvio exagero, um velho amigo, há semanas desaparecido, “em matéria de restaurantes étnicos, eu não passo dos alentejanos!”). O serviço - que ali foi sempre muito simpático, note-se! - mantém-se com grande qualidade: informado e atento. E, o que é mais importante, está-se a comer muito bem.

Preço? Forte mas adequado ao conjunto do que nos proporcionam. Eu gosto, cada vez mais, do “Vela Latina”. E continuo a ver por lá amigos do PSD! Os que têm bom gosto, claro! 

Tebet

Tebet, candidata de "algum" MDB, reivindicou-se de Ulisses, Pedro Simon, Jarbas Vasconcelos (quase que ia dizendo Barbalho...), mas evitou Sarney, Temer e, claro, Garotinho, Cabral, Quércia, etc. Há um MDB para todos os gostos e desgostos.

sexta-feira, agosto 26, 2022

Angola

Em Angola, diz-se que quem beber água do Bengo, o rio da periferia de Luanda, fica ligado àquela terra e nunca mais a esquece. Eu terei “bebido” água do Bengo, sem, de facto, nunca o ter feito, nem sequer me lembrar de por onde exatamente passa o rio.

Gosto muito de Angola, gosto daquela gente, com sorrisos de alegria, mesmo quando não têm razão para a terem. Desde os anos em que por lá vivi, sempre senti, com os angolanos, em qualquer parte do mundo onde os encontre, uma cumplicidade natural. Guardo, para sempre, muito bons amigos angolanos.

Entre 1961 e 1974, o povo angolano viveu sob guerra colonial. Entre 1975 e 2002, atravessou uma guerra civil, como quase meio milhão de mortos. Angola está em paz nas últimas duas décadas, transitando de uma ditadura para um sistema político de democracia reconhecidamente imperfeita. É um país que, sendo embora muito rico, está cheio de gente pobre, sob um modelo de distribuição de riqueza que vai ter de alterar-se.

Ontem, houve eleições em Angola. Tal como acontece desde a independência, o MPLA vai continuar no poder. Mas a Unita está a aproximar-se, a passos largos. Assim, ou o MPLA consegue corresponder, com mais rapidez e eficácia, aos anseios da população, em especial da mais jovem, ou a alternância acabará por processar-se, já num próximo ciclo. Em paz, como os angolanos merecem e como esperam os amigos de Angola. Como eu serei, sempre.

Lugar aos novos

Cada vez mais, vejo emergir uma nova e promissora categoria de comentadores: a dos que comentam os comentadores da guerra na Ucrânia.

Lula

A entrevista ao Jornal Nacional da “Globo”, às primeiras horas de hoje, correu bastante bem a Lula. Ao optarem por não revisitar as acusações de que Lula foi alvo, respeitando assim as decisões da justiça, os jornalistas facilitaram-lhe a vida, embora o próprio Lula tivesse insistido em puxar a terreiro o tema, quiçá demasiado para quem dele só teria interesse em se afastar.

O grande problema de Lula, mas que não deverá ser suficiente para o fazer perder esta eleição, é que há uma parte muito substancial do Brasil que o rejeita, justa ou injustamente. Mais: há largos setores que, no passado, aceitaram colá-lo artificialmente ao pior do Lavajato, com a cumplicidade de Sérgio Moro, apenas para que ele não fosse candidato.

Nesta entrevista, Lula conseguiu iludir, com a maestria retórica que lhe é reconhecida, o tema incómodo do seu persistente silêncio - mesmo de uma aberta cumplicidade ideológica de setores do PT - face à prática de algumas ditaduras, como a cubana ou a venezuelana. Também o elogio que fez ao ”novo” MST, podendo ser agregador das suas tropas, não deve ter caído muito bem no eleitorado moderado que o seu vice, Geraldo Alckmin, procura captar.

O Lula de 2022, embora ele próprio procure iludir(-se com) isso, está muito longe do Lula de 2002. A magia de então passou, a “trouvaille” da “Carta ao Povo Brasileiro” já não teria hoje o mesmo apelo, Lula atravessou anos muito traumáticos, que inevitavelmente terá interiorizado. O “reset” é impossível, houve pontes que ficaram definitivamente queimadas.

Tudo indica que Lula pode ganhar as próximas eleições. Porque está longe de ser um radical e vive muito preocupado em garantir um lugar simpático na História do Brasil, irá fazer um mandato positivo. Mas tudo vai ser muito diferente do passado, e ele sabe-o. Em especial, o Congresso já não é o que era e o “seu” PMDB colaborante (Sarney, Calheiros) já lá vai. Além de que o mundo mudou. Mas, face ao presente, o Brasil e esse mesmo mundo ficarão imensamente melhor com Lula no Planalto.

quinta-feira, agosto 25, 2022

Colaboração

Ora aqui está uma bela novidade. Um comentário anónimo, que tentaram colocar num post, anuncia: “Em breve o blogue “tal” vai publicar umas revelações sobre ti Seixas da Costa. Vais ser exposto como o colaborador da CIA que és meu grande “coiso”!”

Claro que não revelo o nome do blogue, nem, naturalmente, o insulto grosso que me foi dirigido. Mas informo o comentador que, como daqui a duas semanas, de facto, tenho de ir em trabalho aos Estados Unidos, aproveitarei para tentar levantar o meu “ordenado”. Não há fama sem proveito! 

Ele há cada patusco!

“A Arte da Guerra”


Esta semana, no ”A Arte da Guerra”, o podcast do ”Jornal Económico” sobre política internacional, falo com o jornalista António Freitas de Sousa dos seis meses de guerra na Ucrânia, das tensões entre a Sérvia e o Kosovo e das eleições em Angola. Pode ver e ouvir clicando aqui.

quarta-feira, agosto 24, 2022

Em português

As pessoas, em Portugal, parece não se darem conta do ridículo que é falarem do ”presidente Dos Santos”, como se fosse natural utilizar-se uma expressão copiada claramente da fórmula francesa.

Política externa

É perfeitamente correta, não podendo mesmo ser outra, a decisão do presidente português de se deslocar, quer às comemorações do bicentenário da independência do Brasil, quer às cerimónias fúnebres de José Eduardo dos Santos, em Angola. As coisas óbvias não têm de ser explicadas.

Coração

Quem critica a decisão de aceder ao pedido oficial brasileiro para deslocação do coração de dom Pedro para as comemorações do bicentenário da independência do Brasil revela que não tem a menor noção dos interesses externos do Estado português.

Rui Moreira esteve muito bem ao corresponder positivamente ao pedido brasileiro.

terça-feira, agosto 23, 2022

Manhã

 


Brasil

Bolsonaro foi cuidadoso quanto pôde na entrevista dada à Globo, mas o “fact-checking” não lhe será favorável. Isso, porém, é irrelevante para quem, de qualquer forma, sempre votaria nele. A Globo, que foi dura no seu interrogatório, vai ter de sê-lo também com Lula.

segunda-feira, agosto 22, 2022

Arrumem a cabeça!

Depois da visível fúria de Putin, pelo atentado contra a filha do ideólogo russo de extrema-direita, deve ir uma grande confusão na cabeça de muitos: Putin é “comuna” e da extrema-esquerda ou é “facho” e de extrema-direita? Próximo do PCP e do Chega ao mesmo tempo? Decidam-se!

Graça em Campo de Ourique

Deparar com o nome de Kaganovitch pintado numa parede de Campo de Ourique é das minhas surpresas deste Verão. O cosmopolitismo político de Lisboa vai de vento em popa, soprado pela guerra a Leste e pelo esforço de alguns de tentar meter tudo no mesmo saco. Pelo ridículo, isto não deixa de ter alguma graça!

Dom Pedro quantos?


Agora que o coração de dom Pedro vai sair da Lapa (não do meu bairro, em Lisboa, mas da Irmandade da Lapa, no Porto) para estar no bicentenário do Brasil, lembrei-me de uma velha anedota, que creio que já aqui contei.

Em 1972, o presidente português, Américo Tomaz, nos 150 anos da independência do Brasil, deslocou-se aí de barco, numa viagem que ficou famosa, para oferecer, em nome de Portugal, os restos mortais de dom Pedro, embora o seu coração ficasse, para sempre, na “invicta cidade”.

A acidez crítica da "vox populi" não desperdiçou a ocasião para dar uma bicada no “venerando chefe de Estado” ou “supremo magistrado da nação” - uma nação então sob ditadura, convém nunca esquecer, porque isso absolve e legitima toda a ironia.

Foi assim inventado um diálogo, que teria ocorrido, a meio do Atlântico, entre a mulher do presidente, dona Gertrudes Tomaz, e o marido.

Perguntava a senhora: "Ó Américo, por que razão é que nós, em Portugal, dizemos dom Pedro IV e os brasileiros lhe chamam dom Pedro I?".

O almirante, a quem a lenda pública atribuía (injusta ou justamente, a olhar alguns dos seus inenarráveis discursos) alguma simplicidade mental, terá respondido: "Ó mulher, então tu não sabes?! É por causa dos fusos horários, que são diferentes..."

domingo, agosto 21, 2022

Mesas de agosto - “São Gião” (Moreira de Cónegos)


Posso imaginar que, para algumas pessoas, seja uma ousadia eu dizer, sem papas na língua, que este é o melhor restaurante de Portugal. Seja! Essa é a minha opinião e, para quem aqui me acompanha, isso não é nenhuma novidade. Passei por lá ontem. A carta tem coisas novas, desde as entradas (mas repeti os clássicos figos recheados com foie gras) até às sobremesas (nunca tinha provado tonka!), passando por alguns pratos (o bacalhau salteado com espinafres e gambas estava que nem lhes digo!). Imaginação, criatividade e um uso muito competente dos produtos da terra, com os cogumelos regularmente à mão daquela cozinha. Como a ocasião impunha comemorar (só se vive uma vez!), saiu um Crasto reserva, por forma a ter um suporte líquido à altura dos sólidos que iam vindo para a mesa. Brindou-se também à memória de uma grande amiga brasileira, que adorava aquele local. Um dia não são dias! O João Nunes, na ausência momentânea do pai Pedro, fez-nos as honras da casa. Faço notar, além de tudo, que o serviço de mesa do São Gião é impecável, com a delicadeza nortenha a marcar um profissionalismo sem falhas. 20 valores! Onde fica o São Gião? Em Moreira de Cónegos, a dois passos de Guimarães, ao lado do estádio do Moreirense (que ontem deu 3-0 ao Torreense, resultado infelizmente logo copiado, com imensa falta de imaginação, ali perto). Ainda bem que Moreira de Cónegos é longe de Lisboa! Se o São Gião ficasse em Moscavide, eu já estava arruinado! Porque alguns perguntam: e o preço? Adequado, é o que posso dizer.

Coincidências

Até que enfim que acordo uma manhã e constato que estou basicamente de acordo com o teor de um artigo de Teresa de Sousa, como no “Público” de hoje.

Durante décadas, estive muitas vezes em sintonia com o que Teresa de Sousa escrevia, em especial sobre questões europeias. Mas a verdade é que isso já não acontecia há uns meses. 

Infelizmente, creio que esta minha convergência pontual com Teresa de Sousa vai ser sol de muito pouca dura. É a vida!

Realidade


Este título da página 3 do “Público” espelha uma realidade que a cada dia constato, quando estou em frente ao espelho.

sábado, agosto 20, 2022

É a vida?

Sou adepto de um clube que tem um treinador tão bom, tão bom rapaz, que, para alguns, parece fazer esquecer os resultados que a equipa vai tendo.

Mesas de agosto - “Restaurante da Pousada” (Santa Maria do Bouro)


Há bastantes anos que conheço o local, que deve ser, muito provavelmente, o mais majestoso espaço de restauração comercial do país. Trata-se da sala de refeições da Pousada de Santa Maria do Bouro. Pousei agora lá, por uns dias, "para descanso do pessoal”. E todas as noites ali jantei, sempre muito bem. A carta foi renovada e está mais consistente e equilibrada. Os “amuse-bouche”, para meu gosto, podiam ter uma apresentação mais elegante. Também a carta de vinhos ganharia em ser revista. Agora que a pandemia se foi, regressaram as sobremesas à mesa central de pedra, o que foi uma excelente notícia (exceto para a minha glicose)! Última nota: o pessoal é extraordinário de simpatia!

Lusofonias

A ida do corpo de José Eduardo dos Santos para Angola e a excursão transatlântica do coração de dom Pedro são ocasiões preciosas para explicar que, em rigor, se deve sempre dizer “trasladação”, deixando que o “trans” tenha outras aplicações mais adequadas.

A Crimeia e a Ucrânia


A Crimeia faz parte da Ucrânia. Assim o diz, de forma inequívoca, o Direito Internacional. Em 1991, quando ficaram definidas as fronteiras dos 15 países que constituíam a antiga União Soviética, nenhuma dúvida parece ter subsistido, mesmo para Moscovo, de que a Crimeia integrava a soberania da nova Ucrânia. Prova indireta desse reconhecimento é o facto de a cidade de Sebastopol, onde está sedeada a frota russa no Mar Negro, bem como a sua região adjacente, terem sido “alugadas” pela Ucrânia à Rússia, que, até 2014, pagava uma “renda” por essa presença. Só se é “inquilino” de uma propriedade alheia.

Em 2014, na imediata sequência dos conflitos internos ocorridos na Ucrânia, com a secessão de zonas russófonas do Donbass e dos novos equilíbrios que resultaram no governo central em Kiev - onde um indiscutível golpe de Estado, muito estimulado pelo ocidente, afastou um presidente pró-russo que antes havia sido legitimamente eleito - a Rússia avançou para a ocupação da Crimeia. Imagino que alguns possam argumentar com algumas “technicalities”, para contestar a factualidade do que acabo de afirmar, mas esta é a realidade política incontroversa para a generalidade da comunidade internacional.

Convém notar que nada de particular se tinha passado naquele território que justificasse essa ocupação. Contrariamente às acusações de discriminação das populações russófilas no Donbass, não havia nota de idêntico procedimento, por parte de Kiev, na Crimeia. Tratou-se, manifestamente, de um gesto oportunista, de aproveitamento da fragilização do novo governo de Kiev, por virtude da secessão de territórios do Donbass, também ela um movimento estimulado por Moscovo, como hoje está bem claro.

De imediato, a Rússia organizou na Crimeia um referendo, com contornos de legitimidade mais do que duvidosa, na sequência do qual o território declarou a sua independência face à Ucrânia. Em seguida, a “independente” Ucrânia pediu a adesão à Federação Russa, que aceitou esse “pedido”, passando a integrá-la. Mais “fácil” não podia ser.

A operação foi tão escandalosa que raríssimos foram os países que reconheceram o “golpe de mão” russo sobre a Crimeia. Basta lembrar, e isso não deixa de ser significativo, que Estados como a China ou a Turquia nunca aceitaram essa anexação.

A maioria do ocidente reagiu fortemente à anexação russa da Crimeia. Moscovo foi, por esse motivo, objeto de sanções unilaterais - dos EUA, da União Europeia e de alguns Estados “like-minded”. Essas sanções permanecem em vigor até hoje. A Rússia, também por esse motivo, foi afastada do G8.

As sanções ocidentais foram a resposta ao “golpe de mão” russo na Crimeia. Nenhuma ação ou apoio militar à Ucrânia foi previsto no quadro dessa reação ocidental. Já se perceberá por que sublinho isto.

Passaram, entretanto, oito anos. Em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu militarmente Ucrânia, claramente com o objetivo de derrubar o governo em Kiev e, como “second best” face à constatação do seu fracasso em conseguir esse objetivo, decidiu ocupar partes do seu território, ao que tudo indica para sua futura integração na Federação Russa, baseado em “referendos” como mesmo grau de legitimidade como aquele que, em 2014, organizou na Crimeia.

Os EUA, a UE e outros “like-minded” decidiram reagir, impondo um forte pacote de sanções à Rússia e, desta vez, apoiando, financeira e militarmente, a resposta do governo de Kiev a esta flagrante agressão à sua soberania. Mas gostava de sublinhar: esses países condenaram a agressão militar russa face ao território que a Ucrânia possuía nessa data, isto é, aquele que derivava das fronteiras de 1991, já sem a Crimeia nem as regiões do Donbass que se haviam cindido em 2014.

Os países ocidentais - é preciso dizer isto com clareza - não se mobilizaram (nenhuma sua declaração o diz) para apoiar militarmente a Ucrânia numa ação de recuperação dos territórios que o país tinha perdido em 2014, mas apenas para assegurar a sua soberania sobre o “statu quo ante”, o que Kiev detinha sib controlo no dia 24 de fevereiro de 2022. Relembro que a reação desses países no tocante à tomada da Crimeia pela Rússia, já se tinha objetivado no pacote de sanções de 2014/2015. E tinha-se ficado por aí.

Há, assim, agora, uma constatação e uma pergunta legítimas.

A constatação é a de que a ajuda militar dada pelo ocidente à Ucrânia, nos últimos seis meses, e a que aí vier no futuro, pode e deve ser utilizada por Kiev para a defesa das suas fronteiras “de facto” em 25 de fevereiro de 2022, bem como para a recuperação dos territórios que a Federação Russa, contra o Direito Internacional, tiver ocupado a partir dessa data.

A pergunta é se essa essa ajuda pode ser utilizada por Kiev para a recuperação de territórios já perdidos em 2014 para a Rússia, como a Crimeia, ou para estruturas institucionais na sua dependência político-militar (como manifestamente o são as “repúblicas” de Donetsk e Lugansk, que praticamente só a Federação Russa reconhece). É que, para essa ocupação ilegítima de territórios, a resposta já haviam sido as sanções de 2014/2015.

Do mesmo modo, coloca-se a questão sobre se Kiev pode utilizar esse material militar para atingir posições em território russo. Lembremo-nos que esse foi já um debate havido no seio da administração americana - sobre se se davam à Ucrânia meios defensivos ou também ofensivos.

Terá esta questão importância, numa guerra onde as zonas cinzentas são imensas? Acho que tem. O empenhamento dos países amigos do governo de Kiev, em termos de cedência de material militar, não pode fazer-se sem que esses países tenham clara consciência dos contextos operacionais em que esses meios irão ser usados.

Termino repetindo o que disse no início deste texto: a Crimeia, e da mesma forma todo o Donbass, continuam a ser, indiscutivelmente, à luz do Direito Internacional, parte integrante da soberania da Ucrânia.

sexta-feira, agosto 19, 2022

Mesas de agosto - “Victor - São João de Rei”


Há anos que não falho uma ida ao “Victor”, em São João do Rei, perto da Póvoa do Lanhoso. Vou pelo bacalhau, claro!, porque essa é a escolha certa por ali. Grelhado. Não conheço melhor lugar para o saborear, com um alvarinho de qualidade a acompanhar. Do mesmo bicho norueguês, acho sempre adequado começar por uns bolinhos, feitos com ovos da casa, que tornam bem amarela a massa. A gulodice fez também com que não evitasse o leite creme queimado na ocasião. O meu amigo Victor Peixoto, que passou a fronteira dos 80 com imenso garbo e não menor estaleca, continua bem ativo da sala. Enfim, foi o que pode chamar-se um almoço sem espinhas…

Havemos de ir a Viana…



… mas só para o ano, como fazemos há muito, por esta altura, para as festas da Senhora da Agonia. Este ano, por coisas da vida, vamos falhar a mordomia, a festa do traje, o cortejo, as procissões, os fogos e os bombos na praça. Ainda por cima, no ano em que a lavradeira que surge no cartaz das festas está vestida com as cores de Geraz: o verde. E o verde, claro, é o que é!

quinta-feira, agosto 18, 2022

Puritanismo saloio

Há uma senhora, de 36 anos, que chegou a primeira-ministra da Finlândia. Num vídeo privado, feito claramente por gente que não merecia a confiança que lhe foi concedida, vê-se a senhora a dançar, com amigas e amigos, num ambiente festivo de copos e boa disposição. Houve um “leak” do vídeo e a primeira-ministra finlandesa é agora acusada de comportamento indecente, pouco conforme com o ambiente de restrições e efeitos de guerra que os dias trazem ao seu país.

Só porque tem o cargo de primeira-ministra, a senhora não pode ter a sua vida privada, fora das horas das funções oficiais? Queriam que andasse, de-saia-e-casaco, com os joelhos cobertos e ar seráfico, em chás de tupperware?

Está tudo maluco, não está?

“A Arte da Guerra”


Ucrânia, Rushdie/Irão e a saga de Trump são os temas de “A Arte da Guerra”, o podcast do “Jornal Económico” em que converso com o jornalista António Freitas de Sousa. 

Pode ver aqui.

António Marques Bessa (1949-2022)

 

Entrámos para o ISCSP (a sigla, à época, tinha um “U” no final), no mesmo dia do segundo semestre de 1968. Ambos nos encontrámos então criticos do governo de Marcelo Caetano, que tinha acabado de ser empossado. Mas havia uma “pequena” diferença: António Marques Bessa entendia que Caetano era um perigoso liberal (quando ser liberal dava bom nome, visto da esquerda), enquanto eu andava pelas águas de outros mares políticos bem distantes. Durante os anos que se seguiram, mantivemos e agravámos as nossas divergências, muitas vezes publicamente, mas preservámos sempre uma grande cordialidade no relacionamento. Por atitude pessoal, mas em especial por virtude do seu radicalismo ideológico, que expressava de forma tonitruante e sem margem para qualquer compromisso, o António permaneceu, nesses anos, nos corredores do ISCSPU, como uma figura quase isolada, salvo a companhia da Ana Maria, a sua namorada de então. Era um homem culto, de leituras extremas, saudoso do salazarismo que o regime ia, apesar de tudo, enterrando. Com naturalidade, vi-o depois fazer carreira académica, publicar livros e, aqui ou ali, artigos em folhas de extrema-direita, com opiniões consonantes com esse seu alinhamento. Perdemo-nos bastante de vista pelas décadas em que andei por fora, mas, das escassas vezes em que nos encontrámos, trocávamos abraços sem reticências. O último, recordo, numa ocasião bem simpática, foi numa universidade brasileira. Acabo de saber que morreu ontem.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...