quinta-feira, setembro 01, 2022

Onde é o fogo?


Em Vila Real, na minha meninice, as duas corporações de bombeiros voluntários mantinham (manterão ainda?) uma forte rivalidade entre si. 

Eu era “pelos” bombeiros “de cima”, cujo quartel ficava bastante perto de minha casa, mas, por uma qualquer razão, em dias sem escola, imagino que naqueles verões infernais, passava algum tempo a tagarelar ao fresco no dos “de baixo”, por onde andava muito o meu amigo João Leite Gomes, vizinho dali. Os quartéis, valha a verdade, não ficavam longe um do outro. Na Vila Real desse tempo, aliás, tudo ficava perto. 

Imagino que os dourados e o exotismo da maquinaria de combate aos incêndios devessem seduzir os meus oito ou nove anos, recordando-me bem de que nunca me aproximava das ambulâncias, que sempre me suscitavam maus presságios.

À época, os bombeiros “de baixo” tinham a mais inconcebível das geografias: ficavam a meio da estreita Rua Direita, a artéria que, nesse tempo, era o eixo comercial da cidade. 

Para fazer sair os carros de bombeiros daquele quartel, de um local onde hoje está um café, era preciso proceder a complexas manobras, que seguramente atrasavam o socorro, obrigando a uma tarefa insana por parte do motorista e quarteleiro, o Magalhães, que, creio, vivia com a família no andar sobre o quartel. Tudo era por ali: o comandante dos bombeiros, o senhor Neto, vivia quase em frente e recordo que tinha um carro com uma cor vermelha, num mimetismo óbvio com as viatura da corporação. 

O Magalhães era um homem grande, muito simpático, que me dava a confiança de ter comigo algumas conversas, sei lá bem sobre quê, quando eu por ali me “aquartelava”, nessas tardes de férias numa cidade onde nada de jeito havia para fazer. Conhecia a minha família e presumo que eu não lhe atrapalhasse o serviço de “afinação” das viaturas e da limpeza dos “amarelos”. Tinha o Magalhães por “um amigo”.

Um dia, vinha eu com os meus pais ao longo da Rua Direita, imagino que num final de tarde, quando a sirene dos bombeiros alertou para um incêndio. A rua entrou em polvorosa, com os comerciantes a acorrerem às portas das lojas. Ao aproximarmo-nos do quartel dos bombeiros “de baixo”, a agitação aumentava. Ao volante do garrido carro de combate a fogos, que tinha bancos exteriores para os “voluntários”, que tinham saído a correr dos empregos e iam saltando para a viatura, depois de recolherem os capacetes com dourados a reluzir, lá vimos, afogueado, o Magalhães, tentando efetuar a complexa manobra de saída do quartel.

Durante décadas, o meu pai contava e recontava, entre risos de chacota, a historieta de que eu, no meio da tormentosa manobra que o Magalhães tinha em curso, com a barulheira do motor do carro de bombeiros em fundo, inconsciente da confusão que invadia todo o momento, terei lançado, do passeio, em direção ao condutor, um berro de catraio: “Magalhães! Ó Magalhães! Onde é o fogo?”. Não consta que o Magalhães tivesse respondido…

Porque é que me lembrei disto hoje? Porque acabo de sair da Presidência da República onde, exercendo a minha dupla qualidade de vila-realense e de membro do Conselho das Ordens honoríficas, fui testemunhar, ao final desta tarde, com imenso gosto, a entrega de uma comenda aos nossos fantásticos bombeiros “de baixo”, os voluntários da Cruz Branca, cujo magnífico trabalho merece um amplo reconhecimento de todos nós.

Ainda estive tentado a explicar ao presidente da República a bipolaridade bombeiral da minha terra. Mas desisti. Era difícil descrever que os “de baixo” já mudaram entretanto de quartel duas vezes e que o atual fica numa equidistância de dois restaurantes da “Bila” onde eu, um dia, o vou convidar para jantar, já que ele não almoça. 

De uma coisa tenho eu a certeza: Marcelo Rebelo de Sousa, que sabe tudo, não sabe quem foi o Magalhães, esse meu antigo amigo dos bombeiros “de baixo”, onde hoje mantenho alguns outros bons amigos. E que a comenda que a corporação hoje recebeu das suas mãos, pelos muitos anos da sua bela história, também acaba por ser dedicada ao meu amigo Magalhães, que já há muito terá saído do fogo da vida.

3 comentários:

Luís Lavoura disse...

E diga-nos, Francisco: porque é que este ano o distrito de Vila Real tem sido o epicentro dos incêndios? Tantos e tão grandes incêndios por todo esse distrito?

Maria Isabel disse...

Sr.Lavoura
Não sabia que era o senhor embaixador Seixas da Costa o responsável pelo pelouro dos incêndios em Vila Real.
Sempre a aprender
Bom fim de semana
Maria Isabel

Nuno Figueiredo disse...

Vila Real no coração.

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