Foi necessário ter vivido, em 2008, como embaixador português, o tempo das comemorações dos 200 anos da chegada da corte ao Brasil, para me aperceber da filigrana diplomática que sempre constitui, para o nosso país, o manejo das datas históricas que nos são comuns com uma antiga colónia que teve um dos mais atípicos processos de independência da História mundial.
Constituiu então uma bela lição observar o modo como a narrativa brasileira então tratou, em múltiplas ocasiões, uma figura como dom João VI, tentando equilibrar uma intravável apetência para a caricatura ridicularizante da corte lusitana, que ali tropicalizara os seus bizarros costumes europeus, com a constatação, que a verdade dos factos tornava impossível de contornar, de que acabou por ser essa estada da monarquia lisboeta, exilada pela ambição napoleónica, que deu corpo e acelerou a expressão da nacionalidade brasileira.
Das instituições à cultura, o Brasil sabe bem que a presença da corte foi muito mais do que as coxinhas de frango que o rei adorava, foi bem além das aventuras lúbricas dos príncipes, ou da espanhola que ornara o soberano pelas alcovas ou da rainha louca que acabou por se apagar por ali e, dessa forma, transformou o príncipe que chegara em 1808 no rei que iria um dia regressar às origens. Um pouco “à contre-coeur”, o Brasil sabe que tem obrigação de acarinhar, embora sempre muito lá no fundo, a memória desse rei dolente, um homem que afinal tinha uma sabedoria manhosa, a que o novo país talvez deva alguma coisa mais do que ainda hoje se permite confessar.
Alguns amigos brasileiros - e tenho muitos - não gostam de ouvir-me dizer que a lusofobia é a doença infantil da brasilidade. Mas é. E até é muito natural que assim seja, se olharmos a História com algum realismo.
Uma independência faz-se sempre contra algo ou contra alguém de quem se é dependia. Por vezes, como sucedeu em algumas colónias africanas de Portugal, foi necessária uma luta armada, ela própria eivada de longas e penosas contradições entre os protagonistas, algumas prolongadas até aos dias de hoje, com vista a forçar a mão a um poder colonial relutante em resignar-se às leis da História.
Ora não foi esse o caso do Brasil. Ali, foi o filho do rei português que acabou por corporizar o desejo do novo país de definir e seguir o seu próprio destino, deixando de ser uma muleta económica de um poder europeu decadente, já então quase só inchado de glórias de um tempo que já se fora.
Uns novos “Estados unidos” estavam ali a nascer. Mas não tinham lutado contra Lisboa. Uma nova classe, onde curiosamente estava o dedo letrado de Coimbra, afirmava uma vigorosa vontade nacional e, nesse discurso, era quase imperativo o surgimento de alguma “vingança” contra o antigo poder.
A tal lusofobia, que chegou a ter expressões muito fortes no século XIX, contra os que se quiseram prolongar na máquina do novo Estado, seria mais tarde corporizada na anedota “do português”, castigando o antigo poder através daqueles que ainda dele provinham, na procura do sustento. Era, no termo de contas, uma expressão, afinal benigna, desse inevitável contraste, a substituição, retórica e risonha, da luta armada que nunca teve lugar. Era a farsa, em lugar da tragédia.
É neste contexto que a posição de Portugal, como estranho parceiro nestas comemorações do bicentenário da independência do Brasil, se torna quase fascinante, como objeto diplomático.
Onde estamos, nesses festejos? A nossa posição, porque fomos simpaticamente convidados a participar - e não era imperativo que o fôssemos, vale a pena notar -, é quase a de um observador histórico, não encontrando eu outro qualificativo mais adequado.
Convocados para o exercício, revelamos, como país, silenciosa e discretamente, uma íntima satisfação por sermos chamados ao ato. O gesto brasileiro, em si mesmo, afaga o nosso ego de antiga potência declinante e, no fim de contas, como que dá razão póstuma ao rei que soube gizar um “phasing-out” inteligente, com uma gestão familiar da sua saída de cena.
Que acabe por ser uma relíquia morta, algo macabra, com diferente simbolismo para cada lado, o coração de dom Pedro - que é “primeiro” para uns e “quarto” para outros -, a ser elevado ao alto destas comemorações é algo que não deixa de ter alguma coisa de tocante. Como, afinal, o é a eterna relação luso-brasileira.
(Artigo publicado no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias)
12 comentários:
Não foi esse [luta armada] o caso do Brasil ???!!!
É impressionante como se perpetua este mito, algo que só pode andar de mão dada com outras tretas como o lusotropicalismo, a "colonização mais doce" e a miscigenação como vontade natural.
Houve luta armada, sim. E chegou às portas de Lisboa!
Houve batalhas, traições, revoltas, perseguições, matanças, mártires. Tudo aquilo a que uma boa guerra tem direito.
Foi preciso - há muitos anos -, ter lido uma História do Brasil, escrita por franceses, para ficar a saber o que os complexos do meu país não permitem.
É só procurar por "Guerra da independência do Brasil", na internet, para se fazer luz. No Brasil, nada disto é segredo.
Para quem for preguiçoso, deixo aqui alguns links:
1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_da_Independ%C3%AAncia_do_Brasil
2) https://brasilescola.uol.com.br/guerras/guerra-independencia-brasil.htm
3) https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-do-brasil/brasil-monarquico/8888-a-guerra-da-independ%C3%AAncia
4) https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/as-guerras-independencia-brasil.htm
5) https://brasilescola.uol.com.br/historiab/guerras-independencia.htm
6) https://atlas.fgv.br/marcos/proclamacao-da-independencia/mapas/guerras-da-independencia-do-brasil
7) https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61431147
8) https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2022/07/02/veja-locais-que-foram-palcos-de-batalhas-e-mortes-em-busca-da-independencia-do-brasil-na-bahia.ghtml
Sobre a perseguição a navios portugueses que acabou no no estuário do Tejo:
9) https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Taylor
10) https://www.naval.com.br/ngb/N/N005/N005.htm
Se isto não representa uma independência "contra algo ou alguém", vou ali e já venho...
«lusofobia é a doença infantil da brasilidade. Mas é. E até é muito natural que assim seja, se olharmos a História com algum realismo.»
"Mutatis mutandis", Ucrânia e restantes países ex-soviéticos. Afinal, é fácil de perceber, senhor embaixador.
A grande lusofobia no Brasil, provém da necessidade de as diversas colónias estrangeiras que se vieram instalado historicamente ao longo dos anos, desde 1822, irem apagando aos poucos os factos históricos lusófilos.
Onde iam ficar as memórias dessas colónias se apenas se falasse do papel do "portuga"?
Mas o português tolera tudo desde que essas colónias se exprimam no seu idioma com ou sem sotaque.
Terem que dobrar a lingua, é o castigo.
a anedota “do português”, castigando o antigo poder através daqueles que ainda dele provinham, na procura do sustento
Atualmente o mundo girou e são os brasileiros quem procura em Portugal o sustento. E nem sempre são muito bem vistos, sobretudo as mulheres.
Os brasileiros do Brasil têm que se atualizar um bocado. Atualmente são os brasileiros quem precisa de migrar para Portugal, e não o contrário.
Bonito texto Sr. Embaixador,
onde se adivinha que deveríamos olhar com muito respeito para esse homem letrado, compositor e grande político,
(e já agora para o seu coração), que deixou ao Brasil o seu filho D. Pedro II e a Portugal a sua filha D. Maria II (Maria da Glória)
Que prova maior de amor poderia ter ele dado aos dois países? E tamanha lealdade às duas pátrias através da sua luta para implementar uma constituição liberal e os alicerces das sociedades modernas da época,
primeiro no Brasil independente que ele assumiu, depois em Portugal país ao qual D. Pedro deu a sua vida..
Quem o critica teria coragem de fazer melhor?
É algo de pensar nos riscos, e como a revolução poderia ter acontecido, no Brasil ou em Portugal, perigosa e altamente violenta para os membros das monarquias, inclusive para os seus filhos…
José
obrigado por ter chamado a atenção para a Guerra da Independência do Brasil, que de facto praticamente não vem referida nos livros de história, e que eu ignorava.
No Brasil não houve descolonização. Uma descolonização é a substituição violenta de uma elite por outra. No Brasil, que já não era colónia, houve em 22 a conclusão de um processo de separação de dois estados. Manteve-se no poder a mesma elite e nada se. Alterou na estrutura sócio econômica do Brasil.. os portugueses passaram casar brasileiros, mas mantiveram as suas propriedades e os seus privilégios, continuaram a mandar e explorar o resto da população, os escravos continuaram, os Port ficaram lá e poucos se opuseram à independência.
É como se em Angola tivessem sido os brancos a proclamar a independência.
O convite tão generoso de Portugal participar em tal extensão nas comemorações da independência mostra tratar-se de um caso único
Fernando Neves
O Brasil tem falta de herois anti-colonialistas, não sabemos se será um grande desgosto dos indios.
Dos brasileiros não parece haver grande preocupação da ausência desse tipo de herois.
Talvez Tiradentes preencha um pouquinho essa lacuna.
Claro que este heroi aos indios não diz nada.
João Cabral,
Trazer a Ucrânia para esta discussão é de mau gosto. Compreendo que, no fundo, queira justificar a ideia de um país rejeitar o Estado do qual nasceu mas - que raio! -, os brasileiros eram os portugueses do Brasil e nada mais. Os bálticos e os ucranianos são povos que nada têm a ver com os russos, que têm culturas, línguas e genes diferentes e que foram subjugados pelo imperialismo russo.
A sua comparação é como a daqueles amigos de Espanha que, quando se fala do independentismo catalão, nos perguntam "Então e se fosse em Trás-os-Montes"?
absolutamente 2.
Ao comentador anterior: se lesse o blogue, saberia porque escrevi isso. Às vezes, mais vale estar calado.
Não deixa também de ser curioso que essa lusofobia provenha e seja promovida essencialmente por uma certa esquerda. Lula Da Silva, por exemplo, há uns meses manifestou-se especificamente contra treinadores portugueses no Corinthians. Noutras circunstâncias, seria imediatamente acusado de xenofobia, mas assim...
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