sábado, setembro 03, 2022

Na Plaka


Final dos anos 70. Novembro. Tinha chegado a Atenas, ido de Benghazi, na Líbia. (Dois dias depois, ainda por lá estava, caiu uma chuva ”que deus a dava”, com inundações e mortos na cidade). 

Nesse tempo, eu ainda reservava hotéis quando chegava aos aeroportos. Erro que há muito não cometo. Aquele que me indicaram estava num degrau antes de ser uma espelunca. 

O dia tinha sido longo. Saí para jantar. Sozinho. De mapa na mão, porque, nas coisas de lazer, sempre fui muito organizado. Tinha percebido que, na Atenas turística desse tempo, era de regra ir jantar à Plaka. A Plaka estava, para Atenas, como o Bairro Alto passou a estar para Lisboa, uns anos mais tarde. Sem fados mas, igualmente, comendo-se sustentadamente mal. 

(Está bem, já sei! Tenho de descontar o “Pap’Açorda” e o “ Casanostra” . E também o “Bota Alta”, a “Primavera do Jerónimo”, o “Farta-Brutos”, o “Antigo Primeiro de Maio” e o “Baralto”. Está bem! Pronto! Ressalvo ainda a “Adega das Mercês”, o “Último Tango”, a “Tasca do Manel” e o “Alfaia”. Fico-me por aqui, porque se me fenece a memória…)

Sentei-me num restaurante, numa praça, e pedi uma “moussaka”. Era tudo o que me lembrava de comida grega, desde um lugar sofrível com esse rótulo, a que tinha ido, meses antes, em Londres, com a Fernanda e o Bartolomeu Cid dos Santos, perto de Tottenham Court Road. Ou de um “soit-disant” grego que existiu ali perto dos pastéis de Belém (alguém ainda se lembra?). 

E para beber? “Quer vinho grego?”, perguntou o fâmulo, de mangas arregaçadas. Disse que sim, com a timidez inconsciente dos néscios. Veio meia garrafa de branco. Provei e chamei o empregado: “Não está bom!”. Não era que estivesse “bouchonné”, mas tinha um cheiro e um gosto estranho, amargo, desagradável. Sem protestos, chegou nova garrafa. Provei. Tinha exatamente o mesmo sabor. À vista da repetição do meu esgar, o homem - igual a nós, porque os gregos são a nossa cara chapada - olhava, divertido: “Já tinha provado ‘retsina’ antes?“, perguntou, num inglês macarrónico. Eu só vagamente tinha ouvido falar dessa tal “retsina”, uma palavra cuja similitude com resina, pela prova, ali aprendi, de vez, estar longe de ser casual. Na altura, senti o meu cosmopolitismo a esvair-se. “É que o sabor da ‘retsina’ é esse mesmo!”, disse ele. Com os anos, percebi que a “retsina”, afinal, pode ”ir bem” com alguns pratos gregos.

Já não sei com que é que acompanhei a “moussaka”. Imagino que tivesse sido cerveja, que é aquilo a que recorro sempre, em situações limite. 

(“Piva”, era o que eu pedia, em russo, várias vezes ao dia, nos intervalos da vodka, nas três semanas em que percorri os países da Ásia Central, pelas fronteiras da China, do Afeganistão e do Irão. E, até hoje, a minha Gama GT e os trigliceridos continuam normais, dizem).

E a “moussaka” lá marchou, “tant bien que mal”. No final, pedi um café. “Greek coffee?”, perguntou o rapaz. Disse que sim. Sou pouco dado a derivas “native”, mas, depois da experiência da “retsina”, não custava nada dar uma de Lévy-Strauss. Quando a mistela chegou, com uma imunda borra no fundo, reagi: “Mas isto é café turco!”

O que eu fui dizer! Qualificar, na Grécia, alguma coisa que eles tenham por boa como turca, é equivalente a dizer aos de Lever que a barragem ali ao lado é de Crestuma. O tipo abespinhou-se e, em grego, creio que disse coisas que, imagino, devem ter procurado ofender a minha mãe, lá por Vila Real. Emborquei a bebida até ao pó, paguei e desandei, “de fininho”. 

Andei e jantei pela Plaka, depois disso, um par de vezes, mas sempre à distância do local daquela primeira noite. Vinte e tal anos depois, com Joseph Stiglitz, e as nossas respetivas, depois de uma semana de debates, em Creta. num “think tank”, fomos os quatro jantar à Plaka. E não é que o economista, num impulso, deu ares de se decidir pelo mesmo restaurante daquela minha primeira experiência!? Ao que eu, com uma imensa autoridade gastronómica, expliquei: “Aí não se come bem!”. O Joe, que só iria ser prémio Nobel da Economia meses depois (se eu tivesse desconfiado, tinha pago o jantar, para pôr essa “franqueza” premonitória no currículo), deve ter pensado: “Este tipo conhece imenso os restaurantes, aqui em Atenas”. Na verdade, eu só estava a tentar evitar encontrar-me com o empregado a quem, nesse final dos anos 70, não tinha deixado a menor gorgeta, coisa que, na Grécia, só não é um “casus belli” porque a expressão é latina…

Por que é que me lembrei agora disto? Porque, ao passar os olhos por uma desarrumada estante, aqui em casa, há minutos, deparei com o “Globalization and its Discontents”, de Joseph Stiglitz, em cujo pré-lançamento estive, em Nova Iorque, na fabulosa casa da sua sogra, no Upper West Side. E agora, intimamente, pergunto-me: será que alguma vez li o livro até ao fim? Tive um súbito frémito de vergonha, mas já passou!

6 comentários:

Miguel disse...

É um exemplo bem escolhido, pois realmente não é para isso. É bem sabido que o ganha-pão dos economistas é escrever "papers". É uma tarefa em que, no que à realidade diz respeito, ainda se vêm mais gregos do que o embaixador para jantar bem na Plaka.

Flor disse...

Eu tive uma amiga que quando viajava o prato que ela pedia para não ter problemas era a famosa omelete e para beber era água.:)

Miguel disse...

Flor, atenção que nem a omolete é panaceia. Um dia algures no Texas pensámos que sim e tivémos direita a uma omolete com um enorme pedaço de manteiga a derreter por cima. :)

Flor disse...

Miguel, ela se calhar até não se importaria. O que ela não queria era comer algum alimento que ela não conhecia.:)

AV disse...

Aprendi que na Grécia nunca dizer Turkish coffee, nem Turkish delight, sempre Greek coffee e loukoumia. E Macedónia há só uma. É grega e tem por capital Thessaloniki.

Luís Lavoura disse...

Eu há poucos anos na Lituânia também pedi um vinho lituano. (Lá agora, com o aquecimento global, já se começa a produzir vinho.) Era uma boa zurrapa. Embora a comida do restaurante (tradicional lituana) fosse ótima.

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