Morreu ontem Mikhaïl Gorbachev, aos 91 anos. Foi o “notário” do fim da União Soviética, da sua implosão em 15 entidades nacionais diferentes, depois de ter sido secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e último presidente do país que fora criado pela Revolução de 1917.
Como acontece com algumas figuras que são apanhadas na charneira da História, Gorbachev (ou Gorbachov, como é vulgar, entre nós, variar a grafia dos nomes russos) acabou por titular o encerramento de um período, ficando colado à abertura de outro, sem nele se firmar.
Gorbachev repousa, irremediavelmente, nessa mesma História, como uma pessoa mal-amada no seu país. Mas, ao invés, passou a ser uma vedeta no mundo ocidental, por duas razões conjugadas. A primeira, por ter permitido a transição suave, sem violência, para esse mesmo espaço, das antigas “democracias populares” do Centro e Leste europeus, bem como a reunificação da Alemanha. O ocidente também nunca lhe negou uma imensa gratidão pelo facto da sua prática, como governante, ter culminado na dissolução da União Soviética, que era o seu maior adversário. Gorbachev assinou, na prática, a ata de derrota da URSS no fim da Guerra Fria. Verdade seja que, a não ser ele, outro o teria feito, no culminar do clamoroso falhanço do modelo.
Recordo ter lido algures que, nos ultimos anos, Gorbachev era uma figura que, na Rússia, merecia apenas 14% de apreciações positivas. Critico de Putin, como já o tinha sido de Yeltsin, Gorbachev, se acaso a sua voz tivesse sido ouvida, seria, com toda a certeza, um opositor da invasão da Ucrânia. Vai ter assim alguma graça observar como a Rússia oficial reagirá à sua morte.
Ainda antes de ter andado nas bocas do mundo, Gorbachev veio um dia a Portugal, a um congresso do PCP, creio que no Porto. Era então uma das figuras possíveis para sucessão de Chernenko. Recordo que nenhum dos nossos “kremlinólogos” o apontou como o homem seguinte. Mas, das fotografias que os jornais trouxeram, fixei-lhe a cara.
Um dia, já em Março de 2000, António Guterres convidou-me para um almoço com Gorbatchev, na residência oficial, em S. Bento. Estava também o ministro da Defesa, Júlio Castro Caldas e, claro, o intérprete de Gorbachev.
Gorbachev estava em Lisboa creio que para uma conferência. Acabei por jantar de novo com ele, talvez no dia seguinte, dessa vez também com uma sua filha, no forte de S. Julião da Barra, a convite de Castro Caldas, com umas largas dezenas de convidados. Não guardo a menor memória de coisas ditas nesse jantar - e eu tenho boa memória.
Mas recordo o tal almoço, para o qual, confesso, entrei com uma elevada expetativa. Na realidade, tratando-se de uma figura que atravessara um período riquíssimo da vida internacional, que protagonizara o fim do mundo soviético, que vivera a trágica convulsão interna dessa desagregação, que fora interlocutor estratégico privilegiado dos Estados Unidos e de personagens como Thatcher, Kohl ou Mitterrand - por todas essas e por outras razões mais, esperava ir ter um almoço memorável. Nunca comparei notas com António Guterres e Júlio Castro Caldas sobre esse repasto, mas devo dizer que saí dele um tanto desiludido com a figura que o justificou.
Mikhaïl Gorbatchev não deixava de ser uma personalidade interessante, mas, quando o avalio à luz daquelas horas em que o ouvi, está muito longe de ser uma figura fascinante. Falou imenso, mas deu-me a sensação de ter criado e ensaiado um discurso feito à medida daquilo que os seus interlocutores dele esperariam, auto-justificativo, muito óbvio, com ideias que, como dizia o outro, quando eram originais não eram boas e que quando eram boas não eram originais. Mais tarde, ao ler alguns textos seus, voltei a não encontrar razões para mudar de opinião.
Dito isto, que fique bem claro: Mikhaïl Gorbatchev é uma das figuras que ficará na história contemporânea, olhado contudo com mais ou menos apreço, consoante as geografias de onde essa sua imagem é observada.
7 comentários:
A História está cheia de heróis improváveis. A verdade é que, independentemente do seu carisma, que teve ou deixou de ter, Gorbatchev foi um herói do seu tempo. Para desgosto de Putin e de mais alguns saudosistas de uma época negra que já passou.
Eis alguém que merecia ter um nome de rua em todas as cidades capitais do Mundo Livre e do mundo libertado. Quando observamos a toponímia lisboeta deparamos com alguns casos bizarros que até incluem um membro da OLP e o "camarada" Cunhal. E para este homem? Nada. Pudera, numa terra onde ainda se discutem homenagens a Vasco Gonçalves...
Foi uma época maravilhosa a do primado de Gorbatchov: sentia-se a mudança, a esperança era enorme, os povos encontravam-se finalmente. Era um tempo de descoberta mútua onde tudo parecia possível. A paz, no meio de tanto deslumbramento, quase parecia uma coisa secundária.
Uma coisa tão boa só podia, mesmo, ser produto dos anos 80!
O facto de a popularidade de Gorbatchov ser tão baixa na Rússia só demonstra que, ao contrário do lirismo de muitos, há mesmo qualquer coisa errada com o a população russa. Desgosta-se do homem que libertou o povo de uma miserável ditadura de muitas décadas para se gostar do homem que lhe tenta impor outra ditadura. Homem este que chora abertamente o fim do regime que o primeiro destruiu...
Celebre-se ainda Gorbatchov por ter dado novos mundos ao mundo através do nascimento de vários Estados - mais ou menos livres, mais ou menos democráticos -, mas sempre com o direito inalienável a serem senhores de si mesmos, orgulhosamente preservando as suas línguas, culturas e tradições, tão diversas das russas. É irónico que o estertor da URSS tenha concedido a várias nações o direito à "autodeterminação dos povos" que a democrática Europa Ocidental não concede às nações sem Estado que nela existem...
Gorbatchov é sinónimo de Liberdade e foi um daqueles casos em que o Nobel da Paz foi magnificamente merecido (compare-se com a palhaçada da atribuição do prémio a Obama).
Todos os Estados da Europa livre deviam fazer luto oficial em memória do coveiro da URSS.
A agressão terrorista à Ucrânia é o culminar da destruição da herança de Gorbatchov. É certo que esse trabalho começou logo com a administração desastrosa de Ieltsin (que, ainda assim, teve algum mérito em evitar o regresso dos comunistas), mas nunca foi tão óbvia a rejeição do sonho pacifista e humanista de Gorbatchov, como o é hoje.
Vivemos tempos negros em que se chora um mundo horrível, feito de desrespeito institucionalizado pelos direitos humanos, de falta de democracia e liberdade, onde as pessoas voltam a ser joguetes nas mãos de políticos sanguinários, as suas vidas destroçadas a bel-prazer dos interesses de um escol corrupto e louco. Reerguem-se muros, rearmam-se fronteiras, revivem-se rivalidades, reativam-se agentes, retoma-se a desinformação e a propaganda. E, para quê?
Viva Gorbatchov! Viva a Liberdade! Viva a Democracia! Viva a Ucrânia!
Quando a União Soviética municiou, armou e "educou" milhões de africanos para se descolonizarem, também a Ucrânia era uma das componentes dessa União e Kiev, ajudou conjuntamente esses países africanos.
Então porque os africanos em maioria estão ao lado de Moscovo e não ao lado de Kiev a agredida?
Quantos doutores africanos sairão de Kiev!
Pelo menos terem coragem para ser neutros.
Ingratos os que estão do lado do agressor.
De destacar o ataque absurdo à sua figura por parte do PCP, sem a menor expressão de pesar.
José escreve por vezes coisas justas!
Assim, quando escreve: "Reerguem-se muros, rearmam-se fronteiras, revivem-se rivalidades, reactivam-se agentes, retoma-se a desinformação e a propaganda. E, para quê?
Está tudo dito. Gorbatchov destruiu o muro de Berlim, a pedido ou sob ultimato de Reagan, para que a Nato pudesse reerguer outros muros mais longe: Finlândia, Letónia, Estónia, Lituânia, Polónia, Bielorrússia, e tantos outros
Construindo muros para separar, opor, dividir. Proteger-se, recuar, confinar-se atrás da sua cerca, da sua nação, do seu império, da sua ideologia. Nunca se construíram tantos muros que desde o dia em que Reagan prometeu que a Nato não iria mais longe que Berlim, nem um milímetro.
Chipre ou os Balcãs oferecem muitos exemplos de locais onde estes muros permanecem, ou mesmo são construídos. Os motivos são múltiplos, mas no geral, vamos lembrar que o medo do outro continua sendo o principal.
Outro muro, este comunitário, divide o continente europeu. Schengen assemelha-se à Cortina de Ferro de muitas maneiras, mas mais moderna. Certamente, não matamos aqueles que tentam passar, mas muitos morrem entre aqueles que tentam a sorte.
Do outro lado do Muro de Berlim, havia a Europa. Do outro lado de Schengen, há a Europa! A Moldávia, a Ucrânia, a Bielorrússia e a Rússia não são europeias?
Os habitantes de Kaliningrado assemelham-se aos habitantes de Berlim Ocidental, aqui eles são controlados, vigiados, murados para ir de sua casa para... sua casa.
O impulso de reunificação política e histórica da família europeia foi travado pela desconfiança ocidental dos PECO (Países da Europa Central e Oriental).
A “Velha Europa” temia a crise económica e social que assolava esses países. Preferiu manter-se cautelosa e esperar que os PECO resolvessem os seus problemas internos.
Como resultado, a reunificação da Europa transformou em um jogo diplomático. As negociações para a adesão dos PECO à UE transformaram-se em um campo de batalha político, distante dos ideais da família europeia, sonhados no início da década de 1990.
Entretanto, o mestre de dança americano, considero que uma Europa à sua bota seria melhor para ele. E apareceu o cancro ucraniano...Incurável...
As lágrimas de ontem, a pobreza dos russos pós-soviéticos, o desmembramento organizado deste imenso país, pelos tubaroes que se diziam amigos, e nao respeitaram os acordos, os medos e rancores que dormem... Tudo isso também é legado de Gorbachev.
«As pessoas, em Portugal, parece não se darem conta do ridículo que é falarem do ”presidente Dos Santos”, como se fosse natural utilizar-se uma expressão copiada claramente da fórmula francesa.» - comentava-se aqui neste blogue no passado dia 24 de Agosto. E com toda a razão.
Outras pessoas, ainda em Portugal, parecem não se darem conta do ridículo que é escreverem "Mikhaïl», com o segundo ï acentuado com um trema, como se fosse natural escrever-se um nome russo em português, só que usando regras gramaticais importadas «claramente da fórmula francesa».
Ele há pessoas que estão atentas e se dão conta dos ridículos, outras que os deixam passar a todos, e haverá ainda umas terceiras - como o autor deste blogue - que é crítico de uns, e praticante de outros (ridículos).
Ou dever-se-ia escrever ridïculos?...
RIP.
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