terça-feira, setembro 03, 2024

Ucrânia

Foi anunciado que Zelensky irá amanhã remodelar mais de metade do governo. A classe política ucraniana parece inesgotável! Será ser interessante perceber o eventual novo sentido da linha política futura de Zelensky, seguramente na decorrência do importante conjunto de consequências da operação em território russo.

As assinaturas da TAP

"PSD critica “timing” do relatório da IGF sobre a TAP após escolha de Maria Luís para comissária europeia", diz a imprensa. 

Pode-se imaginar o "pé-de-vento" que não teria sido, do lado laranja, se a IGF tivesse publicado o relatório há uma semana!

Castets


Lucie Castets, a cara que a esquerda francesa tentou, sem êxito, que Macron nomeasse PM, não tem história política passada e talvez a não tenha no futuro. Tal como muitos trabalhistas britânicos diziam de Dennis Healey, dir-se-á que ela foi "the best prime-minister we never had"?

França

Surge a dúvida sobre quais são as competências mínimas de um presidente francês, à luz da Constituição da V República. É simples: são as que a experiência provou que ele consegue preservar em caso de coabitação com uma maioria parlamentar hostil. O que não é o caso atual.

segunda-feira, setembro 02, 2024

Palestina

A razão pela qual Benjamin Netanyahu não aceita um cessar-fogo - já é quase irónico falar de cessar-fogo, depois de mais de 40 mil mortos em Gaza "and counting" - é muito simples: desde o início, ele sempre achou que arrasar o território e esmagar o Hamas valia bem a vida dos reféns. Pensou que a vitória total se conseguiria em muito menos tempo e, provavelmente, não contou que Israel fosse pagar um preço reputacional tão elevado. Mas a parada valia o desafio. E, para ele, ainda vale, tanto mais que o desequilibrar da Cisjordânia a favor dos colonos está no pacote final do problema palestino.

Tertúlia


Não me perguntem onde é, porque aquilo é fechado aos membros da tertúlia. Mas pensei que gostassem de saber.

TAP


Fernando Pinto pode ter cometido erros durante a sua gestão da TAP. Mas foi a sua visão, ao aproveitar a quebra do potencial brasileiro de transporte internacional, que veio a permitir à empresa dispor de um portfolio de ligações com a América Latina que é hoje o seu grande valor.

Über alles


Andam por aí uns e umas "europeístas do fogo-à-peça" muito entusiasmados com a viragem pró-armamentista alemã, que só não é maior porque a economia não está a ajudar. E se a extrema-direita chega por lá ao poder? Já pensaram nisso?

Rússia

A Rússia apostou, por muito tempo, no cenário de uma possível cessação provisória de hostilidades, congelamento das posições no terreno e discussão política do futuro, mas tendo como uma "realidade" o território ucraniano efetivamente ocupado. A surpreendente tomada de território russo pela Ucrânia muda por completo os termos da discussão: um congelamento de posições passou a ser-lhe desfavorável, porque implicaria ter de aceitar, mesmo que provisoriamente mas por tempo indeterminado, que a Ucrânia passasse a ocupar parte da Rússia. Nesse cenário de pausa negocial, a Rússia teria de admitir que a Ucrânia se mantivesse no seu território como entidade ocupante, sem reação militar de Moscovo. Essa é a razão pela qual a Rússia mudou de posição e diz que assim não aceita negociar. 

Péssimo gosto

 


Acho isto de péssimo gosto. Ainda se se tratasse do Charlie Hebdo! Mas o Libération?!

Pois é!

Dizer mal é a única coisa que algumas pessoas sabem fazer muito bem.

"Jobs for the boys"


Deve acabar de vez a hipocrisia e assumir abertamente: quando muda o vento político, há "jobs for the boys" para distribuir pelas máquinas partidárias do outro lado do "bloco central". Todos sabem quais são, pelo que as críticas do outro lado são sempre pífias e quase de rotina. É triste, mas é assim.

Leões em Benguela


Recordo ter chegado a uma varanda, onde estavam sentadas três pessoas, num fim de tarde, com o sol já a cair. Para tal, tinha atravessado toda a casa, mobilada e decorada com grande simplicidade, sem quaisquer luxos. Os tempos, que eram de guerra, não estavam para isso.

Sobre uma mesa, havia várias garrafas de cerveja Cuca, algumas já vazias, além de uma bela pratada de caju. Um rádio portátil, grande, de pilhas, daqueles com asa e lugar para cassetes, de onde saía um som forte e roufenho, dominava a cena. Ao lado, estava um exemplar, já com mais de uma semana, do jornal português, nessa altura trissemanário, "A Bola".

Era uma moradia de um só andar, numa rua de Benguela, no sul de Angola. Estávamos em 21 de março de 1984. Há mais de 40 anos. Já perceberão por que recordo a data.

Eu tinha ali arribado poucos minutos antes, no avião da tarde da TAAG, ido de Luanda. Pousara a mala na residência do nosso cônsul-geral, Fernando Coelho, que me tinha ido buscar ao aeroporto e que, de imediato, me convidou a ir beber umas cervejas a casa de umas pessoas.

O Fernando tinha chegado a Angola semanas antes de mim, dois anos antes. Num posto muito difícil, isolado, nas complexas condições de vida que eram então as de Angola, ele tinha sabido estruturar uma eficaz rede de contactos, rapidamente passou a movimentar-se com grande à-vontade na sociedade local e, o que era mais importante, transmitiu segurança à inquieta comunidade portuguesa. Assumia uma atitude humana de grande simplicidade, às vezes numa postura que eu vi como algo arriscada no modo aberto como se expunha, recusando a distância profissional a que alguns colegas recorrem, para desenharem uma bolha de importância à sua volta. O Fernando era uma joia de pessoa e criava amigos com muita facilidade.

Alguns desses seus amigos de Benguela estavam ali reunidos, um dos quais me foi indicado ser o proprietário da casa. Eram todos angolanos: dois mulatos e um negro. Cumprimentaram-me, embora sem me prestarem grande atenção, quando o Fernando me apresentou: um diplomata, seu colega, que vivia em Luanda, onde trabalhava na embaixada. Estavam todos muito fixados a ouvir o relato de um jogo de futebol.

Tendo já na mão uma cerveja que alguém me estendeu e com acesso livre ao cajú, refastelei-me numa cadeira de braços e apreciei a cena: acompanhavam, pela rádio, o jogo que o Benfica estava a disputar com o Liverpool, no estádio da Luz.

O ambiente estava pesado. O Benfica perdia, e já estava na segunda parte, por dois golos. Toda a sala era benfiquista, ferrenha. Bom, toda não: eu era sportinguista, mas o Fernando tivera o prudente cuidado de não começar por referir a quem ali me acolhia esse despiciendo pormenor.

O que era mais curioso no grupo era constatar o modo como seguiam o jogo, quase como se estivessem na Luz. O relato, pela rádio, era muito bem feito, vivo, cheio de notas que, para quem nele estivesse concentrado, criavam uma imagem muito impressiva sobre aquilo que se passava em Lisboa.

Eu sabia muito bem que, em Angola, um pouco como em todas as outras antigas colónias portuguesas, a fidelidade aos nossos principais clubes tinha sobrevivido, intocada, aos respetivos processos de independência. Era uma espécie de afetividade que se autonomizara, em absoluto, dos processos descolonizadores. Não deixava de ser interessante assistir ao sofrimento daqueles angolanos, fanáticos benfiquistas de Benguela, que, inclinados sobre a mesa, bebiam as palavras do locutor português.

Mais do que isso: que se pronunciavam, com firme opinião, sobre o andamento da partida, as prestações de cada um dos jogadores do Benfica, as opções técnicas que iam sendo feitas pelo treinador. "Este Eriksson hoje só faz asneiras", comentava, irado e agitado, o único negro na sala. "O Maniche já devia ter saído! O gajo não sobe bem pela esquerda! Devia meter o Filipović!".

Outro dos presentes, um mulato mais velho, recomendava, por uma qualquer razão tática, a entrada de Shéu, que estava no banco de suplentes. Resposta do terceiro membro do grupo, o dono da casa, com uma gargalhada: "Esse tipo é do lado de lá, não presta!", sublinhando a origem moçambicana do jogador. Toda a gente riu, mais por nervoso do que pela pertinência da graçola.

Eu não tinha uma opinião técnica definitiva sobre nada, até porque era de outra "freguesia" desportiva. Conhecia quase todos os jogadores do Benfica, claro, mas não fazia a menot ideia se uns eram melhores do que outros para "dar a volta àquilo", como se clamava pela sala. 

E assim tudo continuou até ao final do jogo, comigo relativamente silencioso, entretanto já revelado como sportinguista, mas a assumir publicamente uma discreta simpatia, embora talvez não muito entusiasta, pela desdita dos encarnados naquela noite. O Benfica acabaria, no final, por encaixar quatro golos, como o Nené a salvar a honra do convento da Luz. A carreira do Benfica na taça europeia que disputava tinha, nesse ano, chegado ao fim.

Encerrado o jogo, desligado o rádio, com alguns ligeiros impropérios e comentários sobre a partida ainda a pairarem na conversa, numa desilusão que os minutos iam diluindo, surgiu de lá de dentro, da cozinha, uma senhora, mulata, muito vistosa, aparentemente a dona da casa, até aí discretamente ausente. Trazia, com um sorriso agradável e um claro alheamento quanto à jornada desportiva que havia mobilizado a sua casa, alguma coisa para jantarmos. Já não recordo o que foi, pelo que não deve ter sido coisa gastronomicamente memorável. A senhora regressou logo à cozinha, não nos acompanhando na mesa. Eram assim as coisas, por ali.

A conversa alargou-se então a outros temas. Aquele núcleo de benfiquistas de Benguela continuava triste pelo desfecho do jogo, mas foram muito simpáticos, mesmo algo cerimoniosos, para com o intruso forasteiro que eu ali estava a ser. O Fernando Coelho, visivelmente muito bem integrado no grupo, do qual resultava ser íntimo, animava a mesa e os espíritos, com a alegria contagiante de homem bom que sempre foi. 

O jantar terminou entretanto e era tempo de regressarmos à residência do Fernando. Agradecendo a amabilidade do acolhimento, despedi-me daqueles meus novos e fugazes conhecimentos e fui caminhando para fora de casa, em direção ao carro do Fernando. Este ficou um pouco para trás. Despedia-se do dono da casa, a quem, num tom de voz baixa mas não deliberadamente audível por mim, ouvi dizer: "É simpático, esse seu amigo. Pena é ser lagarto!"

Eu já tinha contado esta história, no meu blogue, há uma década. Mas achei poder relembrá-la agora que o grande Eriksson morreu e o Benfica acaba de "pôr com dono" um outro treinador, naquilo que é a sina ingrata da única profissão do mundo em que, muitas vezes, o "patrão" ganha bastante menos dos que os mais talentosos "empregados".

domingo, setembro 01, 2024

Memória


A extrema-direita alemã teve alguns fortes ganhos eleitorais. Se acaso um dia vier a chegar ao poder federal pelo voto, não seria a primeira vez que tal aconteceria. Lembro que foi um governo alemão de extrema-direita - e mais ninguém, sublinho - o responsável pelo Holocausto.

Dos meus arquivos que não tenho


Porque é pura verdade, gabo-me sempre de não ter arquivos. Mas guardei papéis, que, em férias, acabo por descobrir nuns caixotes. São coisas soltas, não organizadas. Como creio que acontece a toda a gente, a cada uma dessas "revisões", há uma parte que vai para o lixo e outra que vai ficando. São notas, cartões, escassas cartas pessoais e algumas fotocópias. Algumas são do tempo do liceu, dos dias da rádio, da universidade, da tropa e quase nada do MNE.

Descobri há pouco este requerimento do general Galvão de Melo, de quem eu era assessor na Junta de Salvação Nacional, logo após ele ter saído daquele cargo.

Desarrumação


Hoje, ao arrumar papelada, encontrei uma folha solta com este belo texto. Pareceu-me ser, por uma pinta, do Mário-Henrique Leiria. Era. E lá me transferi eu para o sofá com os livros do homem. As arrumações pararam, claro. Que sina!

Communism


A história das ideias comunistas em Inglaterra é fascinante. Desde logo, pelo facto de Karl Marx lá ter escrito a esmagadora maioria da sua obra e de estar lá sepultado. Mas o fascínio pelo comunismo e pela própria União Soviética tem ali um historial notável. Até pela influência que isso teve no próprio Partido Trabalhista e nas "Trade Unions" que por muito tempo o controlaram.

Mas foi preciso deparar ontem com esta fotografia para constatar que os comunistas britânicos ainda existem. E verifiquei que ainda se publica o "Morning Star", que me lembro de ser um jornal da Grã-Bretanha bem pró-soviético.

Um país livre é isto mesmo.

Abraçada pela árvore


Ontem, deu-me para ir de Vidago a Chaves pela estrada de Loivos. Recordo que, há uns anos e por uns bons meses, havia necessidade de fazer esse percurso, por virtude de obras na EN2. E não é que, sem que alguém mo tivesse dito ou alertado, fui encontrar, à entrada de Loivos, esta expressão estranha da natureza? Uma placa de trânsito, colocada junto a uma árvore, a qual, com a passagem do tempo a "abraçou". Neste tempo em que se torna tão fácil duvidar de tudo, a colocação da fotografia nas redes sociais valeu-me uma série de acusações de "montagem", "fake news" e coisas assim. Pelos vistos, a verdade é muito difícil de vingar.

Essa coisa de viajar...


E não é que Miguel Esteves Cardoso é capaz de estar cheio de razão?

Bolas


Em matéria de futebol, para um sportinguista como eu, este sábado foi um pouco um banho escocês: ganhámos ao terceiro classificado do campeonato do ano passado, o que não foi mau, mas assistimos à saída do treinador do segundo classificado, que tão bom trabalho estava a fazer.

Setembro


... e agora cheira a setembro, como o outono sabe a vinho. (Ary dos Santos)

sábado, agosto 31, 2024

Flores


Foi há 23 anos. Era um jantar de "smoking", na bela residência que o embaixador austríaco junto das Nações Unidas tinha na 5a Avenida, em Nova Iorque.

Digo "tinha" porque não faço ideia se algum governo liberalóide, lá por Viena, não passou entretanto a casa a patacos. Por cá, um outro que nem em pesadelos quero lembrar desbaratou, precisamente do outro lado do Central Park, um magnífico apartamento, que o bom senso e o bom gosto anos antes tinham adquirido para o Estado português.

Volto ao jantar, que guardo na memória ter sido divertido, o que, convém que se saiba, está longe de ser a regra na chatice que muitas vezes é a vida social a que os diplomatas não conseguem fugir. 

O serviço era assegurado por empregados contratados para a ocasião. As embaixadas nunca dispõem de pessoal suficiente para assegurar o atendimento aos convidados, nas refeições de maior dimensão e nos cocktails que organizam. Em todas as grandes capitais do mundo, existe sempre um batalhão de mão-de-obra disponível para servir nesse eventos, o mais das vezes fazendo disso complemento a outras profissões. São pessoas de diversas nacionalidades - na América e alguma Europa, sem surpresa, são muitos portugueses, espanhóis, latino-americanos, num " network" em que uns vão chamando os outros - que circulam entre essas funções sociais. Recebem à jornada, que é de algumas horas. Em todos os lados onde trabalhei, sabia-se que havia um valor para esses serviços.

Naquela noite, na casa do meu colega austríaco, no momento em que estaca a ser servido, ouvi um sussurro no meu ouvido, por parte do empregado: "Eu sou de Bornes, senhor embaixador". 

Bornes, ao lado das Pedras Salgadas, é a nossa terra de família, pela parte da minha mãe, em torno da Casa do Pereiro, que foi do meu avô, que lá nasceu. Vou a Bornes de quando em vez, para visitar essa casa e para passar pelo cemitério onde estão os meus pais e toda a minha família materna que já se foi. Ou para visitar uma nossa amiga, antiga empregada da casa do meu avô, que há muito já faz parte da nossa família afetiva. Curiosamente, fiz isso precisamente hoje.

Mas regressemos a Nova Iorque e ao homem de Bornes que servia na 5ª Avenida.

Quando ouvi "Bornes", imagino que deva ter exprimido surpresa. Olhei para ele, nunca o tinha encontrado antes e pedi-lhe que, no final, me deixasse o seu nome e contacto. Ele assim fez. Chamava-se Orlando. Falámos ainda uns instantes antes de eu sair do apartamento. No dia seguinte, quando cheguei ao escritório, transmiti o contacto do homem ao meu secretariado e dei indicação para que o incluíssem na lista de empregados a recrutar para as nossas funções sociais futuras. Seria bem simpático, de vez em quando, ter alguém de Bornes lá por casa.

Seria mas não foi. Vieram informar-me de uma realidade que eu desconhecia: os empregados que circulavam nas residências da 5ª Avenida e áreas similares recebiam um "cachet" ligeiramente superior àquele que nós habitualmente pagávamos. As casas do "Upper East Side", onde fica a bela residência do embaixador português em Nova Iorque, não pagavam tanto como as zonas mais centrais da 5ª, da Madison ou da Park Avenue. E, por isso, o senhor Orlando nunca foi contratado.

Passaram entretanto meia dúzia anos. Uma tarde, lá por Bornes, em dia da festa anual da aldeia, eu estava encostado a um muro, a ver passar a procissão, quando se aproximou de mim, nem mais nem menos, o senhor Orlando, de Nova Iorque. Eu já andava então por outras paragens e ele permanecia na "Big Apple". Depois, nunca mais ouvi falar dele. Até hoje.

Há horas, à saída do cemitério de São Martinho de Bornes, notei que uma campa estava coberta com uma imensidão de flores. Deduzi que o funeral dessa pessoa tivesse sido na véspera. Conheço já pouca gente em Bornes, mas tive curiosidade de saber o nome de quem tinha convocado tão expressiva manifestação de pesar. Um amigo disse-me: foi o senhor Orlando, o homem que viveu em Nova Iorque. Morreu em Bornes, há dois dias.

Ele há cada coincidência, não é? 

"O Forno de Jales" (Vreia de Jales)



Já estou a imaginar o sobrolho carregado daqueles lisboetas que têm a mania que o Prior Velho, ou mesmo Vila Franca, já é no Norte do país. São os mesmos que calhou um dia irem ao Porto, ao casamento de uma prima, e que juraram para nunca mais, por se terem perdido no Nó de Francos, quando acharam que o Waze tinha pifado ao mandá-los sair por um lugar chamado Bessa Leite. Essa malta, ao ler aqui escrito "Vreia de Jales", deve ter tido um sobressalto de estranheza e concluído: este tipo anda por lugares étnicos bizarros e trá-los para aqui para armar à diversidade regional de quem se quer dar ares.

Pronto, eu explico! A Vreia de Jales é uma aldeia que fica numa pequena estrada a leste da A24. Essa estrada é a maneira mais "difícil" de ir de Vila Pouca de Aguiar para Vila Real. Mas vale muito a pena: a paisagem é magnífica, além de que lhes permite passar por Sanguinhedo (por que diabo quero eu passar por Sanguinhedo?, pensará alguém a quem nunca sequer passou pela cabeça ir tomar um café a Tourencinho) e chegar à capital transmontana por um caminho menos óbvio. Por isso, caro leitor, se faz parte da fauna dos que recusam caminhos menos óbvios, abstenha-se de continuar a ler e faça "zapping" para a telenovela ou para os crimes da CMTV.

Há vários anos que me tinham falado de existir um restaurante "para grupos" na Vreia de Jales. Por regra, desconfio imenso de restaurantes "para grupos". Nunca fui fã de manadas almoçantes, onde raramente se come bem e pode ter-se por horas o azar, nas longas mesas, de uma companhia insuportável. Há meses, disseram-me: o antigo restaurante, onde a prudência me levou a nunca ir, tinha fechado e foi agora criado outro, dirigido por um casal de excelentes cozinheiros (eu acho pedante escrever "chef") que vieram da estranja (muita Espanha e alguma Suíça), e que teria implantado por ali um novo "conceito". Ora eu também embirro com o conceito de "conceito". E, por semanas, fiquei de pé atrás.

Enfim, ontem, porque a curiosidade era muita, e para pôr a coisa em pratos e talheres limpos, decidi ir lá jantar. E, antecipo desde já o sentido deste texto, gostei bastante.

O João Pires e a Rita Gomes estão por ali, naquela aldeia, desde o final do ano passado. A sala, sem ser um deslumbre de decoração, é muito agradável e espaçosa, boa herança do anterior restaurante. O casal faz uma cozinha que alia alguma sofisticação das propostas à utilização inteligente e criativa dos produtos regionais, com preocupação do que é sazonal. A refeição é ritmada em seis momentos, que conseguem criar um menu degustação que assinalei não ter tido quebras de nível. Não vou aqui falar dos croquetes, da bola de sardinha, do interessante bacalhau, da fralda de vitela, com um molho magnífico, da maronesa no ponto certo. E de outras coisas boas, explicadas bem pelo João. Ou mesmo da estranha, no bom sentido, rabanada que veio como sobremesa (e que, a meu ver, poderia sobreviver bem sem o gelado), feita num pão pouco usual. Tudo vinha embrulhado em moldes criativos de apresentação que, em alguns casos, me atrevo a dizer que podem evoluir esteticamente. Mas o que é importante destacar, porque o saldo de uma refeição é isso mesmo, é que tudo o que nos chegou à mesa, sem exceção, estava muito bom - e eu sou um conhecido chato nesta coisa de restaurantes, como gastrófilo mas não gastrónomo que sou. A lista de vinhos, muito transmontana e curiosamente menos duriense, tinha, a preços honestíssimos, coisas muito boas e pouco conhecidas, como, por exemplo, vários vinhos de Arcossó (Ah! Pois é! Também não sabem onde é Arcossó, terra da minha bisavó, de onde estão a sair vinhos magníficos?). 

Vou parar por aqui. Não lhes digo os horários do "O Forno de Jales" porque o restaurante não tem "sessões contínuas": não abre todos os dias e a todas as horas. Liguem para lá pelo 916 301 886 e, se não atenderem, deixem recado, porque eles contactam de volta, como aconteceu comigo. Última nota: sem vinhos, o menu degustação custa € 35,00 por pessoa. Isso mesmo!

Pronto! Quem ousar passar a norte do Prior Velho, já sabe. Meta o Waze e vá almoçar ou jantar à Vreia de Jales. É já ali!

sexta-feira, agosto 30, 2024

Helicópteros


"O senhor embaixador faz muita questão de ir à plataforma?"

A pergunta foi-me posta por alguém do gabinete do primeiro-ministro, José Sócrates. Foi no hall do Hotel Pestana, no Rio de Janeiro, em 2006. Ao final dessa manhã, José Sócrates, que estava numa visita oficial ao Brasil, iria de helicóptero visitar uma plataforma petrolífera ao largo da baía de Guanabara, creio que de uma exploração onde a GALP tinha interesses. Um embaixador, numa ocasião destas, é sempre uma "sombra" dos dignitários portugueses, pelo que estava previsto que eu o acompanhasse - imagino que com o vistoso capacete - na deslocação.

Antes que eu pudesse responder "se fazia questão", o meu interlocutor esclareceu: "É que o senhor ministro Manuel Pinho disse estar interessado em ir, mas não há mais lugares. Só se o senhor embaixador dispensar o seu."

"E tenho de pagar alguma coisa?", inquiri.

O homem, porque era um homem, olhou-me, surpreendido. Sem lhe dar tempo a retorquir, expliquei: "Eu detesto tanto andar de helicóptero que estou mesmo disposto a pagar para evitar ir. Que o meu lugar faça muito bom proveito ao senhor ministro Pinho!". E chamei um motorista para me levar à Livraria da Travessa, em Ipanema.

Detesto andar de helicóptero. Tenho sempre presente o que, sobre os seus riscos, um dia me foi dito pelo meu saudoso amigo Arlindo Ferreira, experiente piloto militar desse tipo de aeronaves, E fiquei com o trauma de menos boas experiências na Noruega, num "voo tático" da RAF durante um exercício da NATO, rasando cumes, e em Angola, numa interminável viagem de ida e volta de Luanda a Cabinda, em que eu aguardava um tiro a qualquer momento. E não me senti nada confortável em outras viagens que fiz, em alguns casos podendo tê-las evitado - por cá, nos Estados Unidos, no Congo, na Itália, no Tajiquistão, na Coreia do Sul, em Israel e também algumas outras no Brasil. Recordo os riscos que corri na Geórgia, num voo sobre as fronteiras da Inguchétia e da Chechénia, até outro, arriscadíssimo, entre a Ajária e a Abcásia. Digam-me onde posso assinar uma declaração para nunca mais andar de helicóptero.

Há poucas horas, ao ouvir notícias sobre a trágica morte de militares da GNR, num acidente de helicóptero no Douro, lembrei-me disto.

À mesa


Foi há semanas. Comi nesse local umas quatro vezes. O empregado foi sempre o mesmo. Um homem bem dentro da casa dos 50, pessoa educada e agradável, revelando alguma experiência de restauração, mas menos adequada para o nível daquele local. Era alguém que, visivelmente, na época alta, tinha sido contratado para reforçar a equipa do restaurante.

Pela simpatia que tinha criado, hesitei muito em falar-lhe naquilo que, desde o início, trazia atravessado. No último dia, fi-lo: "O meu amigo não vai levar a mal, mas acho que, depois destes dias em que viemos aqui jantar, há meia dúzia de coisas que devo dizer-lhe. Nunca se serve uma pessoa passando, na mesa, pela frente de outra. Se, por razões de espaço, tiver de o fazer, peça sempre desculpa por isso. E deve servir sempre pela esquerda das pessoas e retirar os pratos pela direita. E não se empilham os pratos retirados de uma mesa, arrastando os restos de comida para o prato do topo. E, claro, deve servir primeiro as senhoras. Quanto ao vinho, não esteja sempre a encher os copos. Depois de servi-lo uma primeira vez, pergunte às pessoas se querem mais: com a insistência em encher os copos, fica a ideia de que quer vender outra garrafa! Ah! E as bebidas são sempre servidas pela direita! Desculpe dizer-lhe tudo isto, mas achei que tinha de o fazer, para o ajudar a melhorar no seu serviço, no futuro".

O homem pareceu-me, de início, um pouco surpreendido com a minha recomendação, mas reagiu muito bem: "Agradeço ter-me dito tudo isso. Algumas das coisas eu já sabia mas a gente distrai-se, e sabe porquê?: porque parece que as pessoas não se importam e nós vamos facilitando. Mas é bom que me tenha lembrado. Já a questão do vinho, são ordens". Eu sabia!

Para o ano, conto passar por lá. Se o homem ainda lá estiver, aposto que se vai lembrar deste cliente "chato".

From Lisbon, with Hayek

Teria sido preferível, mas as coisas não funcionam assim, que o nome do comissário europeu tivesse sido consensualizado entre os dois partidos centrais do regime. Desta forma, o governo manda quem lhe apetece e, neste caso, e por um período de cinco anos, a Comissão terá uma voz ultra-liberal enviada por Lisboa.

A verdadeira posta


Caí na esparrela: na carta do restaurante dizia "posta": era apenas uma carne simpática. Eu devia ter desconfiado: a faca era de serrilha, o que é logo um dramático aviso à navegação de que o mar estará rijo. 

Um teste obrigatório por que deve sempre passar algo que se apresente como "posta" - e, muito mais, como "posta mirandesa" - é o imperativo da peça poder ser cortada com o outro lado da faca. Sim, isso mesmo!, o lado que nunca é usado para cortar.

Tudo o resto, o que não passar nesse "teste do algodão", pode ser um bife agradável (às vezes chamam-lhe "naco" e coisas assim), mas será sempre um abusivo genérico na verdadeira posta. 

Correio do bago

Há um jornal que tem como uma das vertentes da sua linha informativa a alimentação obsessiva da inveja. ML Albuquerque vai para Bruxelas? A primeira "questão" a colocar qual é? Quanto vai ganhar.

O Brasil dos juízes

Não conheço país do mundo em que haja tanta exposição mediática do órgão máximo do poder judicial. Todos os dias e a todas as horas a comunicação social relata o que diz o ministro A ou B e as reações que isso provoca. Há um excesso de imagem pública do judiciário brasileiro.

Abreu Amorim


Não parece muito adequado que um membro do governo se pronuncie no Twitter desta forma. Eu sei que "old habits die hard" e que muita gente achava que, cedo ou tarde, o velho tropismo da pessoa viria inevitavelmente ao de cima. Eu, ingénuo, apostei em alguma contenção. Enganei-me, pronto.

Antes era a "viradeira"


Este é um nicho histórico de "jobs for the boys" partidários. Esperemos que, por equidade, também comece a haver "girls". Ou há moralidade ou comem "todes"...

Belém

A procissão presidencial ainda vai no adro, mas Marques Mendes e Centeno já seguem nos andores de alguns fiéis. Parece tudo muito prematuro mas, se acaso, no boletim de voto, a alternativa viesse a ser entre os dois, gostava de lembrar que o país teria duas figuras respeitáveis entre quem optar. 

O que sobra

A montante da eleição de 2016, Trump perdeu os "never Trump", envergonhados com o que pressentiram. Com o caos durante o mandato, os melhores foram saindo. Em 2020, com o episódio do Capitólio, afastaram-se os últimos decentes. Quem constituiria a administração Trump 2025? 

Europinhas

O estertor das lideranças europeias está a provocar uma cacofonia insuportável: ele é Von der Leyen, é Borrell, é Michel, já é também Kallas, a não fazer jus ao báltico nome. Todos mandam bitaites adjetivados sobre a Ucrânia. O silêncio de António Costa tem sido de ouro.

Ai Montesquieu!

Temos obrigação de respeitar o modelo constitucional do Brasil, o qual, aliás, tem demonstrado ser capaz de sobreviver e enquadrar várias e fortes crises política. Mas compreendo bem quem possa estranhar o desmesurado papel do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as restantes instituições. Ver esse orgão, como vi acontecer, determinar o impedimento da reunião de uma comissão parlamentar é algo que deve pôr Montesquieu às voltas na tumba.

Digo eu, não sei...

A decisão do juiz brasileiro de proibir o Twitter/X no país parece-me "a bridge too far". O Brasil é um país demasiado relevante no quadro internacional para poder titular este tipo de gestos, mais comuns em autocracias.

Manda quem pode

As grandes indústrias de armamento há muito que são um elemento determinante no desenho da política externa das grandes economias de mercado. E, desta vez, não estou a falar dos EUA e do seu "complexo militar-industrial". Falo do modo como Macron meteu os pés pelas mãos para justificar a venda milionária de jatos franceses à Sérvia, país que não esconde de que lado está entre Kiev e Moscovo. Nos EUA, chamam-se a isso os "powers that be", em França "les autorités en place", por cá seria, simplesmente, "quem manda".

Estranho

Caiu o primeiro F16 dado à Ucrânia e parece que não foram os russos a abatê-lo. Estas coisas são muito difíceis de saber, mas ou foi "nabice" do piloto (primeira versão) ou o avião terá sido abatido por "friendly fire" dos Patriots dados pelos americanos (segunda versão). Em todo o caso, os russos esfregam as mãos de contentes. Que guerra esquisita!

Então?

Quando se começou a falar da possibilidade da Ucrânia passar a dispor de F16, ouviu-se dizer que os caças russos de última geração se encarregariam de os destruir, logo nos primeiros recontros. Não dei conta de isso ter acontecido, mas posso ter estado distraído.

quinta-feira, agosto 29, 2024

Avós, bifes e memórias


É curioso que, quando me refiro ao meu avô, penso sempre e apenas no pai da minha mãe. 

O pai do meu pai morreu, em Viana do Castelo, 23 anos antes de eu ter nascido e só o visualizo em algumas fotografias do tempo da República, sempre com um fácies grave e um arrebicado bigode. Era maçon e tinha andado de armas na mão a defender a bandeira verde-rubra contra os "trauliteiros", na tentativa de implantação da "monarquia do Norte". Tenho, portanto, desse lado jacobino da família, alguém a quem sair, salvo no "avental" que nunca usei.

Já o meu avô materno, com o qual, com os meus pais, tive o fantástico privilégio de viver até aos meus 13 anos, era conservador, na atitude cívica e na opção profissional: foi, por muitos anos, conservador do Registo Predial, em Vila Real, depois de ter abandonado a magistratura, porque detestava ter de itinerar pelo país como juíz, optando por permanecer junto da família. Tinha nascido perto das Pedras Salgadas, em Bornes de Aguiar, sendo por lá proprietário da bela Casa do Pereiro, que felizmente continua na nossa família, onde se refugiava sempre que podia.

Não tendo carro próprio, o meu avô viajava bastante na linha ferroviária do Corgo, que ia da Régua a Chaves. Nela fazia, com alguma frequência, o percurso entre as Pedras Salgadas e Vila Real, num ronceiro comboio a vapor que julgo demorava muito mais de uma hora para percorrer o que, por estrada, não chega a 40 km. Essa linha acabou já há bastantes anos.

Creio que por uma boa dúzia de vezes, comigo nos anos de escola primária, o meu avô levou-me com ele a passar uns dias a Bornes e, recordado que estou do modo carinhoso como sempre tratou este seu neto, imagino o muito que me terá procurado ensinar sobre as terras por onde passávamos e as histórias que me terá então contado. Com pena, confesso lembrar-me muito pouco dessas conversas na infância. Contudo, recordo-me bem das viagens e de que, em alguns apeadeiros, se podia sair para colher fruta ou beber água nas fontes, sem o risco de perder o comboio, que arrancava com uma imensa lentidão.

Por que razão falo hoje aqui deste meu avô? Por causa de uma carne que comi ao jantar. 

(Este tipo é obsessivo com a comida!, devem estar a pensar alguns leitores).

Nas duas casas onde vivi uma infância muito feliz com os meus pais e e os meus avós maternos, tenho das refeições uma memória de serem momentos sempre agradáveis. O meu avô era uma pessoa alegre e conversadora, tinha uma magnífica relação com o genro que era o meu pai e o ambiente, a que muitas vezes outros familiares se juntavam, refletia o modo saudável como as pessoas por ali se entendiam. Não me recordo, em todos esses anos, de ter assistido, naquela família, a uma réstea de discussão. Mas admito que eu possa ter sido poupado a algum momento menos sereno.

A minha mãe contava algumas vezes que o meu avô, que tal como eu se chamava Francisco, um dia, à mesa da refeição, se voltou para mim e disse: "Lembras-te daquela vez em que eu e tu vínhamos das Pedras e, logo depois de Vila Pouca, entre Tourencinho e Zimão, te mostrei uma vitelinha que andava por ali a pastar?" Eu terei dito que me lembrava, com ele a complementar: "Essa vitelinha, se a tivessem matado mais cedo, tinha dado uma carne magnífica. Mas não, deixaram-na crescer, chegou a vaca e devem ser dela estes bifes muito duros que agora a tua avó nos dá para comer". A minha mãe disse que toda a gente caiu em gargalhadas, com a minha avó Olívia a prometer deixar uma palavra de queixa ao Lourenço do talho.

Há algumas horas, num restaurante aqui por Vila Real, reconheci, numa peça de cachena que me serviram, e que foi quase toda para dentro, uma parente distante da tal vaca que nunca devia ter passado da vitela que eu esperava ter podido comer. E, também por isso, lembrei-me do meu avô Francisco.

O comentário

Há quem se esforce por entender a racionalidade subjacente à atitude de cada lado nos conflitos. Há quem tente explicar-nos que tudo está sempre a correr bem àqueles de quem se gosta. Há os que espalham que aqueles de quem não gostam acabarão inevitavelmente por ser derrotados. E estamos nisto.

América, América

As eleições presidenciais nos EUA são, em regra, muito renhidas. As diferenças entre os finalistas não costumam ser grandes. Este ano, com a recuperação de Harris e algum desvario que se sente na campanha de Trump, está tudo mais imprevisível. Se isto fosse apenas um jogo, teria imensa graça. Mas, infelizmentr, não é só isso.

quarta-feira, agosto 28, 2024

36 Quai des Orfèvres


Eu, em matéria de comissários, há muito que defini a minha preferência.

Com frieza

Olhando um perfil técnico-político, há que pôr de lado os humores adversariais. Desde que o nome cumpra "os mínimos", o poder de turno tem direito à livre escolha do nome do comissário: nessa perspetiva, reconheço que Maria Luís Albuquerque é um nome adequado. Como o seria Poiares Maduro.

Um voto em Branco ?

Há algo que surpreende: o nome de Aguiar-Branco não surgir, do lado dos apaniguados de Montenegro, como potencial candidato a Belém. Não sendo eu da mesma "freguesia", e tendo mesmo algumas reticências sobre a sua condução da vida parlamentar, não me parece, contudo, que o PSD tenha muita gente melhor.

Comissária

Montenegro teve juízo e poupou- se a um grave erro de Estado. Pode ser que alguém lhe tenha estimulado o bom senso.

Quando a Adelaide toca



Em nossa casa, como creio que acontece com a maioria da gente mais velha, ainda há um telefone fixo. Se me perguntarem onde ele está, hesitarei muito. Com a era dos telemoveis, o telefone dito "de mesa" perdeu há muito a centralidade que, por décadas, tinha ganho nas familias. Nunca o usamos, ou melhor, só o descobrimos num recanto variável de uma estante, quando porventura toca. O que rarissimamente acontece. E, quando acontece, invariavelmente surge, da boca de um de nós, a frase: "Deve ser a Adelaide". 

A Adelaide foi uma empregada que, há 34 anos, levámos connosco, quando fui colocado na embaixada em Londres. Conhecêmo-la por intermédio de uns amigos. Era transmontana, de perto de São Martinho de Anta, e trabalhava num hotel em Carcavelos. Esteve em nossa casa nos mais de quatro anos em que vivemos em Londres. E por Londres ficou. 

Nos primeiros tempos, não sabíamos o que fazer com ela aos fins de semana. Não falava inglês, não conhecia ninguém, ficava pelo quarto a ver televisão, falada numa língua estranha para ela. Um tanto artificialmente, arranjámos-lhe uns conhecimentos na comunidade portuguesa, para a ajudar a romper o seu isolamento. E isso acabou por funcionar. Passados uns tempos, a Adelaide já tinha várias amigas, com quem saía. 

A Adelaide tinha um problema grave de estrabismo que, manifestamente, a complexava. Olhava as pessoas sempre de lado, penteava-se de forma a que um dos olhos ficasse um pouco encoberto. Uma médica a que teve de recorrer, a propósito de uma qualquer questão de saúde, numa consulta a que foi acompanhada pela minha mulher, ao notar esse comportamento, perguntou se ela não quereria ser operada à vista. Era algo que se podia corrigir. A Adelaide ficou de pensar no assunto e, tempos depois, estimulada por nós, colocou-se nas mãos do SNS britânico, que se encarregou da cirurgia. Que teve um imenso sucesso. 

Dali em diante, a Adelaide passou a olhar as pessoas de frente, o penteado simplificou-se, sentiu-se-lhe um renascer de confiança e uma nova alegria. Até a sua postura com os outros, às vezes um pouco rezingona, se suavizou. O efeito psicológico do fim do problema ocular foi muito evidente. E, talvez como corolário dessa nova forma de encarar a vida e olhar para os outros, a Adelaide arranjou um namorado, também português. Com quem veio a casar, connosco como padrinhos. E teve um filho, o Francisco, de que fui padrinho de batismo. E todos ficaram lá por Londres, quando regressámos a Lisboa. E ficámos amigos para sempre. 

Nós, a Adelaide e a família vemo-nos a espaços, em Vila Real, em Lisboa e até em Londres. A Adelaide telefona-nos algumas vezes, nós não tantas como devíamos. Ela liga sempre pelo telefone fixo que temos em casa. O mais das vezes, quando esse telefone toca, já sabemos que é a Adelaide. Quando não é e, afinal, é alguém a querer vender qualquer coisa de que não precisamos, temos pena que não seja a Adelaide.

terça-feira, agosto 27, 2024

O Estado das coisas

A ideia de vir anunciar, como que "saído da cartola", o nome do futuro comissário europeu no contexto de um comício partidário do PSD, releva de uma imperdoável ligeireza no tratamento de uma questão que é de natureza nacional. A acontecer, demonstraria uma evidente falta de sentido de Estado. O senhor presidente da República, que se sabe ter um apurado sentido de rigor nestas coisas de Estado, é que poderia ter uma palavra de apelo ao bom senso de quem o não está a ter.

Saudades do frei Bernardo



Ontem passei na zona do Cristo-Rei, no Porto, e lembrei-me que, durante alguns anos, quando ia por ali, não deixava de lhe fazer uma breve visita. Chamava-se Bernardo Domingues. Era frade dominicano. 

Um dia, vivia eu em Paris, recebi um telefonema do Porto. Era uma das mais ilustres personalidades da cidade, por coincidência a mesma com quem, também ontem, por ali almocei. 

Era-me feito um pedido. Frei Bernardo Domingues, um religioso muito querido por imensa gente no Porto, tinha um gravíssimo problema de saúde. A delicadeza do caso e a avançada idade do doente levavam a que, em Portugal, hesitassem em operá-lo, pelo que se pensava que a solução seria fazê-lo no estrangeiro. 

O frade, que tinha feito voto de pobreza, não tinha bens materiais. Um grupo de pessoas tinha-se quotizado e juntado fundos suficiente para que ele pudesse vir ser tratado noutro país. Ora, segundo o meu interlocutor, havia em Paris um eminente cirurgião mundialmente reconhecido como especialista naquele tipo de intervenção. O recurso a esse médico seria talvez a hipótese de salvar a vida ao frade. Poderia eu tentar um contacto? 

Prontifiquei-me, naturalmente, a intervir, da maneira que pudesse. Solicitei o nome do cirurgião. Quando mo disseram, tive um sobressalto bom: esse médico, que era aliás presidente da Associação Francesa de Cirurgiões, tinha estado a jantar na residência da embaixada, a meu convite, 48 horas antes! Eu tinha organizado esse jantar para acolher, com outros convidados, o cirurgião português Eduardo Barroso, que recebera em Paris um prestigiante prémio, atribuído pelos seus pares franceses. E, de entre todos esses seus colegas presentes, o mais ilustre era, nem mais nem menos, o tal destacado especialista. Há dias de sorte! 

"To make a long story short": fiz o contacto, o frade deslocou-se a Paris por mais de uma vez, foi operado com imenso sucesso e, a partir daí, ficámos amigos. Frei Bernardo Domingues já morreu, entretanto, mas viveu ainda bastantes anos, durante os quais o visitámos, com alguma frequência, na igreja do Cristo-Rei. 

As nossas conversas, que me recorde, nunca derivavam para a temática religiosa, terreno que me é em absoluto alheio e onde ele sabia que eu não estaria à vontade. O frei Bernardo era, contudo, um "sábio" da vida, das relações humanas, tendo sobre isso escrito vários livros. Era delicioso ouvi-lo relatar o saldo dos muitos contactos que tinha tido ao longo da vida, com pessoas dos mais diferentes meios. 

Um dos seus grandes amigos tinha sido Francisco Sá Carneiro, de quem fora confessor, tal como o fora da primeira mulher do político. Contou-me que assistiu, com tristeza, ao modo como ocorreu o processo de separação de Sá Carneiro, esclarecendo, contudo, não ter intervindo na formulação da vontade das pessoas envolvidas. Um dia, Sá Carneiro levou-o a Lisboa, para conhecer Snu Abecassis. Foram os três almoçar ao "Gambrinus". Frei Bernardo contava, divertido, que aquele luxo gastronómico o fazia rir interiormente, ao compará-lo com a frugalidade espartana da sua vida religiosa. A certo ponto do almoço, numa ausência momentânea de Snu, frei Bernardo voltou-se para Sá Carneiro e, brincando, provocou-o: "Francisco, trouxeste-me aqui para eu abençoar o pecado?" 

Na passada semana, numa aldeia junto a Terras de Bouro, passei perto da casa onde o frei Bernardo nasceu, tal como o seu irmão frei Bento Domingues, de quem era evidente que divergia em certas perspetivas políticas. Fez-me bastante bem tê-lo conhecido e ter falado longamente com ele, com abertura e num ambiente sempre marcado pela serenidade e pela compreensão. Tenho saudades do meu amigo frei Bernardo.

Governantes

No comunicado em que afastou o grupo de Mélenchon de um futuro governo, Macron lembrou as responsabilidades políticas da esquerda "que já governou". Ora, de toda essa esquerda, feitas bem as contas, a única personalidade que já governou é precisamente Jean-Luc Mélenchon.

Fofura vermelha

Há uma imensa ironia no facto de Macron ter afastado das suas escolhas para o novo governo o "La France Insoumise", do antigo ministro socialista Jean-Luc Mélenchon, e ter sublinhado a sua abertura ao Partido Comunista. Os comunistas, quando fracos, ficam deliciosamente "fofos".

segunda-feira, agosto 26, 2024

Sismando

A melhor do sismo que li por aí é que ele tirou uma selfie com o Marcelo mas ficou tremida.

Conversa arbórea


Hoje, no Porto, tive um longo almoço com um amigo, uma figura pública bastante conhecida. Abancámos à uma hora e já passava das quatro quando nos levantámos. Nessa altura, no restaurante, só havia o pessoal da casa a comer, após o trabalho, numa mesa coletiva. Gosto destes meus encontros com a agenda pré-determinada de falar sobre o que nos dá na real gana, sem preocupação das horas e sem outro objetivo que não seja o prazer de conversar com o outro. A charla, para usar uma figura do meu pai, foi, como se previa, bastante "arbórea": vinha à baila um assunto, um nome, uma história e, desse "ramo", partia-se para outro nome, para outro episódio. E daí para outro. Por mais de três horas. Que me recorde, e eu tenho boa memória, não dissémos mal de ninguém e dissémos bem de muita gente. E, claro, não pedimos nada um ao outro. O que comi? Eu comi um "bacalhau à facho" e, para sobremesa, uns "matateus". O que bebemos? Não fomos parcos, porque a vida é o que dela se leva: um "grande reserva" da Quinta dos Arciprestes. E não houve digestivos, porque eu ainda tinha de guiar até Vila Real, passando, de caminho, por uma padaria de Paredes, em busca de uma regueifa, que teimei que devia ir bem com uma goiabada cascão que arranjei numa loja de coisas brasileiras. Cada vez me convenço mais: as férias são uma canseira, é o que é!

La France

A França vive um período constitucional muito interessante. Macron finge não ter percebido que o seu papel de "chef de l'État" já não é o de um presidente da V República. A oposição faz de conta de que tem maioria para forçar uma co-habitação. Volta, Duverger! 

Eu, sem sismo

De facto, recordo-me de ter acordado durante a madrugada. Mas como é vulgar isso acontecer-me nos hotéis, fico sem saber se foi o sismo ou não. Por isso, com muita pena minha, não tenho uma história pessoal do tremor de terra para a troca, como toda gente tem no dia de hoje.

A Ferry Street em Vila Real



Fez-me uma pergunta sobre queijos, atitude que levei à conta de eu ter cara de quem podia aconselhá-lo na matéria. Porque a questão era bastante vaga, dei uma resposta simples, informativa, no mesmo tom. E afastei-me, arrastando o carro de compras, no supermercado. Vi que ele continuou a olhar para mim, à distância. Fiquei então com a sensação de que a pergunta sobre os queijos tinha sido apenas pretexto para abrir uma conversa. Foi no sábado, em Vila Real. 

Era um homem um pouco mais velho do que eu. A cara não me dizia nada. Minutos depois, aproximou-se de novo, andava eu já a cirandar por outras prateleiras. "Viveu nos Estados Unidos, não viveu?". Disse-lhe que, de facto, tinha vivido por algum tempo em Nova Iorque. "Não ia a Newark?" Caramba! Era preciso ter uma grande pontaria para nos termos cruzado na pouco mais de meia dúzia de vezes que fui a Nova Jersei! A menos que... 

Fez-se-me uma luz: "Não se chama Francisco?" arrisquei. "Sim. Manuel Francisco", respondeu. "Tinha um restaurante na Ferry Street?" Tinha. "E, cá em Vila Real, trabalhou antes no Hotel Tocaio, não foi?" 

Para quem porventura não saiba, a Ferry Street é uma rua de Newark, no estado de Nova Jersei, ao lado de Nova Iorque, com uma elevada concentração de comércio português. 

Vi a cara do nosso homem abrir-se num sorriso de satisfação. Afinal, fora ele quem me recebera na Casa de Trás-os-Montes, em Newark, de que era presidente, há mais de 20 anos, quando ali fui encontrar o grupo de cantares "Aleu", de Vila Real. Curiosamente, meses antes, eu tinha ido almoçar ao restaurante do senhor Manuel Francisco e aí tínhamos cruzado a nossa comum origem vila-realense. 

Eu era então embaixador nas Nações Unidas. Nada tinha ver, em termos oficiais, com as estruturas da comunidade portuguesa nos Estados Unidos, mas havia sido convidado a encontrar, num fim de semana, gente que tinha vindo da minha terra. Aliás, levei essa ida a Newark tão a peito que, na ocasião, até fiz parte do júri de um concurso para avaliar folares de carne, preparados pela comunidade portuguesa! 

No encontro no supermercado, esqueci-me de dizer ao senhor Manuel Francisco que me lembrava muito bem de uma frase dele, à despedida dessa jornada. 

Eu tinha chegado a Newark, à Casa de Trás-os-Montes, como me tinha sido pedido, cerca das 10 da manhã desse sábado. Visitei as instalações do clube, conheci os seus dirigentes, fizemos ainda uma visita a um outro lugar que agora me escapa e, depois, participei, no espaço que recordo ser um grande pavilhão, num longo e bem regado almoço - com coros, ranchos e discursos (um dos quais meu), que se prolongou por horas. Quando eram aí já umas seis da tarde, expliquei que tinhamos de regressar a Nova Iorque. 

A festa ainda ia rija e com jeitos de se ir prolongar bastante. Detetei alguma desilusão perante a nossa partida, aparentemente lida como prematura. Foi o que deduzi da frase de despedida do senhor Manuel Francisco: "O senhor embaixador, numa outra ocasião, tem de vir com tempo, para passar o dia connosco..." 

Ora eu estava ali há quase oito horas e, pelos vistos, a minha estada estava a ser vista como escassa! Anos seguintes, passados como embaixador de Portugal junto das duas maiores comunidades portuguesas no mundo - o Brasil e a França -, vieram a revelar-me o que pode significar, em termos de intensidade de ocupação horária, sempre em fins de semana, o fantástico acolhimento dos nossos compatriotas no estrangeiro. A frase do senhor Manuel Francisco tinha-me preparado!

domingo, agosto 25, 2024

Um está aqui...

E aquele dia em que Trump quase morria com um tiro e a esmagadora maioria dos comentadores logo concluiu que, com a exploração do efeito de vitimização, a eleição já não lhe escapava? Por onde andam esses comentadores? Os outros não sei, um deles está aqui.

sábado, agosto 24, 2024

Bolas


Começo a ficar preocupado com as goleadas que o (meu) Sporting anda a fazer por aí. É que, daqui a pouco, os golos "desperdiçados" e "por excesso" nestes jogos vão fazer-nos imensa falta para forçar alguns empates ou para fugir a outros. Há aqui uma má gestão de golos. É isso!

Montenegro - take two

Perguntem a Luís Montenegro o que é que ele já fez de útil pelo país, para além de distribuir recursos públicos que o governo anterior tinha amealhado. Mas não perguntem a Luís Montenegro onde é que ele legitimamente passa férias com a família e amigos. "Mind your own business!"

Montenegro - take one

Mas que raio é que nós temos  a ver com as férias de Luís Montenegro no nordeste brasileiro? O homem, com a trupe amiga, não pode ir de férias para onde muito bem lhe apeteça? Há uma imprensa transformada em "voyeurs", para exploração da inveja e do miserabilismo populista.

Manda quem pode, vota quem deve

Perante esta obsessão dos portugueses em "votar" nas eleições americanas: serão os americanos quem escolherá o seu presidente e, seja ele quem for, aquele de quem gostamos ou o outro, todos iremos obedecer àquilo que a América nos impuser, na sua inescapável liderança ocidental.

La gauche

A iniciativa de Mélenchon de dispensar a presença de figuras da sua LFI num possível governo liderado pelo NFP tira argumentos a Macron para não nomear uma figura de esquerda para Matignon. À suivre.

Américas

A muitos, parece chocante que um candidato presidencial americano possa ganhar tendo menos votos do que o seu adversário. Essas pessoas esquecem que os EUA são um compromisso político entre entidades que se uniram para fazer um país, mantendo alguns processos decisórios próprios.

... e há isto!

 


sexta-feira, agosto 23, 2024

Bolas

Três jornais desportivos (tradução: sobre futebol) diários, alinhados por seitas, são um significativo sintoma. E é pelos sintomas que se chega à doença.

Lume brando

Anda-se pelas estradas do país rural e, por toda a parte, o mato seco ali está, sem ser cortado, a atiçar os incendiários. Depois, se há fogo, vêm às televisões uns senhores graves, anunciar medidas, leis e coimas. Passam uns anos e volta tudo ao mesmo. Será congénito?

Alice já não mora aqui

 


Poluição

Não me vem à ideia nenhum país democrático, para além de Portugal, onde os partidos políticos disponham, em permanência, fora de períodos eleitorais, de largos espaços de propaganda, no meio das cidades e nas suas principais artérias. Visitem a Avenida da República, em Lisboa, por exemplo.

Segundo tempo

Não conheço nenhum país democrático, além de Portugal, onde titulares de cargos políticos, por eleição ou nomeação, disponham de colunas regulares na comunicação social (salvo na imprensa partidária). Trata-se de uma espécie de segundo tempo de antena. Por cá, vale tudo!

quinta-feira, agosto 22, 2024

"Crystal clear"

O líder parlamentar do PSD diz ao Expresso que "teria muita dificuldade" em escolher entre Trump e Harris. Já se suspeitava, mas é bom que fique dito, alto e bom som.

Os comunistas, os russos e coisas assim


Há dias, ao fazer notar nas redes sociais que, no usufruto da saudável tolerância que se vive no nosso país, um estandarte vermelho adejava na varanda de uma sede do PCP ao mesmo tempo que uma procissão passava pela mesma rua, constatei ter conseguido convocar, pela enésina vez, os demónios do anti-comunismo mais primário. Que espero se mantenham vigilantes, para o que vem a seguir.

Há uns bons anos, numa viagem que me fez passar por Moscovo, deparei com uma manifestação cheia de bandeiras vermelhas, com foices e martelos. Achei aquilo curiosíssimo, tanto mais que os comunistas, politicamente, eram já então uma escassa minoria na Rússia. Decidi aproximar-me, pelo ensejo raro de ver de perto uma reunião pública do único partido que, pensando bem, por ali nunca fora impedido de existir, desde 1917. E tirei a fotografia que acompanha este texto.

O comício ocorria num espaço vedado por uma alta rede (visível na imagem), com prévia passagem dos assistentes por um controlo de metais. Decidi entrar, para observar mais de perto o ambiente. Eram uma escassas centenas de pessoas, com muitas tarjas escritas em cirílico, junto a um palco onde peroravam algumas figuras - ao que me foi dito para protestarem contra os malefícios da alternância entre Putin e Medvedev (imaginem!).

Numa das áreas do evento, havia uma banca com pins e objetos da memorabilia comunista, desde velhos exemplares da Pravda e do Izvestia (e um facsimile do Iskra, que me arrependi não ter comprado) até estatuetas e imagens de Lenin de todo o género. 

Aproximei-me e disse, em tom interrogativo: "Stalin?". Pensava conseguir adquirir uma lembrança estalinista para oferecer a um velho amigo que ainda é fã fiel do "pai dos povos". Notei a perplexidade espelhada na cara dos vendedores. Seria uma provocação? Olharam para o meu ar de turista e deduziram que deveria ser um estrangeiro ainda tocado pelo "grande Stalin". Um minuto depois, trouxeram-me um pin, de lata manhosa e claramente feito há pouco tempo, por que me pediram um imerecido número de rublos. Não comprei. 

Apesar de tudo, a poucas centenas de metros, logo atrás da Casa dos Sindicatos, junto à muralha do Kremlin, o busto do líder georgiano continua a mostrar-se sobre o seu túmulo, sempre coberto de flores. Mas a memorabilia disponível de Stalin não estava claramente à altura disso. Foi o que, no regresso, disse ao meu amigo estalinista, que assim aumentou a sua desilusão sobre a nova Rússia destes tempos de Putin. Ter-lhe-ei dito: pouco vos resta, "tovarich"... 

Da mesma forma que os seus homólogos de Moscovo, espero que os comunistas portugueses continuem a poder exercer, em pleno, o direito à sua existência entre nós, prosseguindo na sua teimosa insistência de defenderem o que consideram ser os interesses "do nosso povo", o qual, valha a verdade, lhes é ingrato e, a cada eleição, lhes dá cada vez menos razão e menos votos. Mas, mesmo assim, eles ainda acreditam que os amanhãs podem vir a cantar.

quarta-feira, agosto 21, 2024

A democracia do mar

É chocante o contraste entre a farta cobertura noticiosa do naufrágio de um iate de um milionário britânico e a quase indiferença mediática em face das imensas vítimas anónimas da travessia de migrantes nas mesmas águas. Afinal, só o Mediterrâneo os trata da mesma forma.

terça-feira, agosto 20, 2024

"Israel e a armadilha da História"


Quando, no início de 2009, cheguei a Paris como novo embaixador português, uma das primeiras e naturais visitas protocolares que fiz foi ao Diretor Político do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Gérard Araud. 

Recordo que me recebeu com tempo, o que é raro neste tipo de encontros. Um amigo comum tinha-lhe dito que eu "sabia muito" do Brasil e, por um qualquer razão circunstancial, Araud estava bastante interessado em Lula e nos equilíbrios políticos que prevaleciam na cidade onde eu tinha acabado de passar quatro anos. Dei-lhe a minha opinião e a conversa prolongou-se. 

Desse encontro, ficou-me a impressão de ser uma personalidade autoconfiante, muito bem preparada, no género dos excelentes profissionais que a França produz, para sustentar - umas vezes bem, outras vezes com maior dificuldade - aquela que é, porventura, a mais idiossincrática, ambiciosa e "sempre-em-bicos-de-pés" diplomacia do mundo ocidental.

Araud, que ocupava já há alguns anos um dos dois lugares de topo do Quai d'Orsay - o outro é o de Secretário-Geral, lugar que em França tem uma dimensão política pouco usual - estava quase de saída para embaixador na ONU. Anos mais tarde, sairia dali para embaixador em Washington, onde terminou uma carreira brilhante. Antes, tinha sido embaixador em Tel-Aviv, posto em que havia iniciado a carreira. 

Nos seus anos nos EUA, Gérard Araud deu um ar da sua graça nas redes sociais, com comentários que, não raramente, o colocaram em posições delicadas. Esse seu estilo "outspoken", pouco comum na escola de "diplomacia pública" francesa, quase que o prejudicou profissionalmente.

Desde que saiu da carreira, Araud dedicou-se à escrita e publicou alguns livros sobre diplomacia e História.

No meu saco de livros para férias trazia um pequeno volume da sua autoria sobre Israel. Tinha-o comprado em junho (terá sido posto à venda nesse mês), numa livraria de Lyon. Quase que o tinha esquecido, no caos de tudo aquilo que ainda não li e que me enche estantes e mesas lá por casa. 

Nos últimos dois dias, devorei o livro. A experiência profissional de Araud, em especial as duas estadas em Tel-Aviv, conferem a este trabalho uma qualidade muito rara. Equilibrado, informado e informativo, "Israël - le Piège de l'Histoire" ajuda quem se interessa pelos problemas do Médio Oriente (singularmente, os franceses chamam à área Israel/Palestina "Proche Orient" e, embora mais no passado, "Machrek" ao Médio Oriente) a assentar ideias e a ver de forma mais clara as coisas. Dada a experiência de Araud em Washington (posto onde serviu também duas vezes), o texto traz também dados muitos interessantes sobre o histórico da relação entre os EUA e Israel.

Guantánamo, lembram-se?

Agora, todos dizem que Biden é um homem decente. Obama era um homem decente. Ambos não foram suficientemente decentes para terem terminado com a indecência que constitui a prisão de Guantánamo, onde a América guarda, há mais de 20 anos, sem os julgar, suspeitos do 11 de setembro.

segunda-feira, agosto 19, 2024

Senhora da Agonia

Delon

Morreu Delon. Era um ator mediano (posso ter a minha opinião, não posso?), esteticamente arrebatador para muitas mulheres (e imagino que para alguns homens). Politicamente era de extrema-direita, mas não será por essa razão que lamentarei menos a sua morte, como acontecerá quando a Bardot morrer.

domingo, agosto 18, 2024

Mélenchon e a realidade francesa

A insensata proposta de Jean-Luc Mélenchon de destituição de Emmanuel Macron pela Assembleia Nacional francesa no caso, mais do que provável, do presidente não vir a aceitar a candidata a primeiro-ministro proposta pelo Nouveau Front Populaire (NFP), é uma atitude sem senso e sem o menor realismo.

A esquerda, que teve nas eleições legislativas uma maioria relativa que lhe confere alguma legitimidade, mas não necessariamente uma carta branca constitucional para governar, desbarata, com este gesto de Mélenchon, a imagem de responsabilidade que vinha a procurar criar.

Desde o início que o sonho de Macron é isolar o La France Insoumise (LFI) do resto do NFP. Ao atuar agora desta forma, Mélenchon torna-se cúmplice objetivo do equilibrista do Eliseu, que procura disfarçar a todo o custo a irresponsabilidade que cometeu, ao provocar eleições e lançar o caos no sistema político.

Mélenchon só tem uma agenda: bipolarizar a França e tornar-se no polo oposto a Marine Le Pen, a caminho das presidenciais de 2027. Como se alguma vez mais de metade da França o fosse escolher, para barrar a extrema-direita. É apenas uma jogada pessoal, de "tudo ou nada". O resto da esquerda, que se havia unido a ele no NFP, não está disposto a alinhar nessa manobra, por todas as razões válidas.

Macron, que coneçou por desbaratar e dividir a sua própria família política, está agora tentar forjar um arremedo de governo de uma França supostamente "moderada", afastando dele o Rassemblement National (RN) e o LFI. Na sua postura "ni-droite-ni-gauche", consagra-se como o expoente do presidente do equívoco: destruiu a direita republicana e partiu a esquerda moderada, na sua obsessão por um centrismo cada vez menos viável.

Mélenchon é um demagogo irrealista? É, mas nada de confusões! Mélenchon não pode ser comparado a Le Pen. Tem uma história pessoal "honorable", pelo que equipará-lo à extrema-direita constitui um insulto soez. Uma coisa, porém, é evidente: ao proceder desta forma, Mélenchon ajuda ao golpe de Macron e puxa o tapete à unidade d esquerda. 

Este é o meu Portugal


A procissão da Senhora da Agonia a passar, a foice e o martelo da bandeira desfraldada do PCP, imigrantes industânicos numa varanda com colchas. Este é o Portugal tolerante em que gosto de viver.

... e assim acontece!

Foi perto do Arco do Carvalhão, num acesso esconso à A5, há minutos. Há por ali uma caixa de eletricidade. Sobre ela, estavam quatro volumes...