quinta-feira, agosto 22, 2024

Os comunistas, os russos e coisas assim


Há dias, ao fazer notar nas redes sociais que, no usufruto da saudável tolerância que se vive no nosso país, um estandarte vermelho adejava na varanda de uma sede do PCP ao mesmo tempo que uma procissão passava pela mesma rua, constatei ter conseguido convocar, pela enésina vez, os demónios do anti-comunismo mais primário. Que espero se mantenham vigilantes, para o que vem a seguir.

Há uns bons anos, numa viagem que me fez passar por Moscovo, deparei com uma manifestação cheia de bandeiras vermelhas, com foices e martelos. Achei aquilo curiosíssimo, tanto mais que os comunistas, politicamente, eram já então uma escassa minoria na Rússia. Decidi aproximar-me, pelo ensejo raro de ver de perto uma reunião pública do único partido que, pensando bem, por ali nunca fora impedido de existir, desde 1917. E tirei a fotografia que acompanha este texto.

O comício ocorria num espaço vedado por uma alta rede (visível na imagem), com prévia passagem dos assistentes por um controlo de metais. Decidi entrar, para observar mais de perto o ambiente. Eram uma escassas centenas de pessoas, com muitas tarjas escritas em cirílico, junto a um palco onde peroravam algumas figuras - ao que me foi dito para protestarem contra os malefícios da alternância entre Putin e Medvedev (imaginem!).

Numa das áreas do evento, havia uma banca com pins e objetos da memorabilia comunista, desde velhos exemplares da Pravda e do Izvestia (e um facsimile do Iskra, que me arrependi não ter comprado) até estatuetas e imagens de Lenin de todo o género. 

Aproximei-me e disse, em tom interrogativo: "Stalin?". Pensava conseguir adquirir uma lembrança estalinista para oferecer a um velho amigo que ainda é fã fiel do "pai dos povos". Notei a perplexidade espelhada na cara dos vendedores. Seria uma provocação? Olharam para o meu ar de turista e deduziram que deveria ser um estrangeiro ainda tocado pelo "grande Stalin". Um minuto depois, trouxeram-me um pin, de lata manhosa e claramente feito há pouco tempo, por que me pediram um imerecido número de rublos. Não comprei. 

Apesar de tudo, a poucas centenas de metros, logo atrás da Casa dos Sindicatos, junto à muralha do Kremlin, o busto do líder georgiano continua a mostrar-se sobre o seu túmulo, sempre coberto de flores. Mas a memorabilia disponível de Stalin não estava claramente à altura disso. Foi o que, no regresso, disse ao meu amigo estalinista, que assim aumentou a sua desilusão sobre a nova Rússia destes tempos de Putin. Ter-lhe-ei dito: pouco vos resta, "tovarich"... 

Da mesma forma que os seus homólogos de Moscovo, espero que os comunistas portugueses continuem a poder exercer, em pleno, o direito à sua existência entre nós, prosseguindo na sua teimosa insistência de defenderem o que consideram ser os interesses "do nosso povo", o qual, valha a verdade, lhes é ingrato e, a cada eleição, lhes dá cada vez menos razão e menos votos. Mas, mesmo assim, eles ainda acreditam que os amanhãs podem vir a cantar.

9 comentários:

Merridale and Ward disse...

A ler:

https://www.amazon.com/Americas-Final-War-Andrei-Martyanov/dp/1949762971/ref=rvi_d_sccl_1/143-4717307-0540408?pd_rd_w=6F9my&content-id=amzn1.sym.f5690a4d-f2bb-45d9-9d1b-736fee412437&pf_rd_p=f5690a4d-f2bb-45d9-9d1b-736fee412437&pf_rd_r=C28M24PSMN277BK0CNEY&pd_rd_wg=kcEZe&pd_rd_r=9b581c7f-d9b8-479b-ae36-728a1d85795b&pd_rd_i=1949762971&psc=1

Carlos Antunes disse...

Durante muitas décadas, os intelectuais marxistas, por cegueira ideológica, não quiseram ver e não perceberam as terríveis consequências dos regimes comunistas implantados na Europa do Leste pós 2.ª Guerra Mundial.
As barbaridades, e o seu custo em vidas humanas, cometidas na URSS e nos países de Leste em nome da implantação desta ideologia pareciam-lhes justificáveis em nome de um futuro radioso e em que o sofrimento (temporário) dos povos era o caminho para a redenção e a salvação da humanidade. Por mais estranho que pareça, o marxismo abarca, neste particular aspecto, muito da tradicional redenção (teológica-escatológica) cristã.
Tratava-se, pois, aos olhos dos marxistas, de uma “destruição criativa”, em que dos escombros do capitalismo nasceria uma sociedade mais justa e humana, expurgada da exploração baseada na propriedade privada, considerada a origem de todos os males. E inúmeros políticos e intelectuais – alguns extremamente inteligentes e brilhantes – na Europa e por todo o Mundo, acreditaram e defenderam piamente as profecias marxistas, considerando-as então como “científicas”.
Os “amanhãs que cantam” traduzem no fundo as reminiscências dessa “teologia marxista” em que o PCP continua teimosamente a acreditar e a defender como o futuro para Portugal.

Post scriptum: Obviamente, estas minhas considerações resultam do meu posicionamento político. Não tendo filiação partidária, sou ideologicamente um social-democrata (ou socialista como prefiram) comprometido com a democracia representativa e o Estado de Direito, o Estado Social e os direitos sociais (incluindo o SNS e a escola pública), e a intervenção do Estado na regulação da economia de mercado (capitalista), designadamente, a intervenção dos Sindicatos na regulação das relações laborais, de modo a assegurar uma justa distribuição da riqueza e a promoção da justiça social e do estado do bem-estar social.

Isa disse...

o homem pintado na lata velha ganhou tantas batalhas e guerras que o resultado das guerras dos seus netos está à vista...
quem não cumpre tratados e faz biscates para sobreviver, é exemplo para quem ?

Anónimo disse...

"Quem não cumpre tratados"!? Quem nunca os incumpriu que atire a primeira pedra!

Joaquim de Freitas disse...

O socialista que o Sr. Carlos Antunes assume, e muito bem, comprometido com a democracia representativa e o Estado de Direito, o Estado Social e os direitos sociais (incluindo o SNS e a escola pública), é o sonho de muitos americanos, que vivem sob um regime ferozmente anti marxista!

Do outro lado do Atlântico, o sistema ideal? O custo de uma consulta com um clínico geral (cerca de 180 dólares em média) e contas que atingem valores colossais como as “contas médicas surpresa” em caso de hospitalização. Apesar dos cuidados prestados por médicos altamente qualificados que trabalham em estruturas muitas vezes ultramodernas, o sistema apresenta uma eficácia medíocre em termos de esperança de vida, mortalidade infantil e até de patologias evitáveis. O caso da mortalidade infantil é particularmente marcante: em 2021, era de 3,7 por 1.000 nascimentos em França e de 5,4 por 1.000 nos Estados Unidos.

Embora as despesas de saúde sejam consideráveis, uma vez que os americanos gastam cerca de 10.000 dólares por ano em despesas de saúde e estas despesas representam 17,8% do PIB (em comparação com 12,3% para França3), a população continua confrontada com questões importantes de saúde pública, qualidade e acesso a cuidados que podem levar a situações dramáticas. 27,5 milhões de americanos não têm seguro de saúde, 60 milhões têm muito pouca cobertura e a maioria dos americanos está mal segurada, 45.000 mortes são registadas todos os anos devido à falta de acesso a cuidados de saúde e 530.000 famílias encontram-se em falência devido ao custo dos custos de cuidados de saúde.

A virulenta oposição de certos Estados contra o “Obamacare” (reforma da saúde que visa, entre outras coisas, uma revisão completa da prestação de cuidados, a expansão do acesso aos cuidados para pessoas excluídas do sistema e a tornar os cuidados mais acessíveis) também ilustram esta situação. a rejeição de um sistema socializado e o medo de ver a sociedade americana afastar-se dos seus alicerces. Neste sentido, o princípio da redistribuição não pode ser compatível com o “ideal americano”, uma vez que nos Estados Unidos a ideia de que o dinheiro que ganhamos não deve ser gasto com outros ainda é muito forte!

“Você é o que são os seus genes, cabe -lhe ser responsável pela sua saúde, pelo que você come, pelo desporto que pratica, pela vida que leva”, explica o representante republicano do Arizona, Paul Gosar. Trump diz a mesma coisa. Uns horríveis marxistas …

Anónimo disse...

Anoto que sou o responsável por um dos 2 comentários em causa. Pensava que a ironia ressaltaria da sua leitura. O certo é que nunca fui muito hábil no uso dessa “arma”, logo as confusões que produzo.

Explicitando o que quis dizer, para mim o PCP não tem de ser “tolerado” nem aceite. O PCP não só é parte integrante da democracia, como, de entre todos, foi a única força que, durante décadas, se opôs à ditadura de modo sistemático e organizado.

Já agora, não acho que o povo seja “ingrato” com o PCP. A ingratidão vem bem mais da comunicação social (que beneficiou da luta do PCP pela liberdade de imprensa) que esconde, submerge o PCP e que só o traz à tona pelas piores razões.
J. Carvalho

Anoto, por último e mais uma vez, que não sou membro do PCP, que nunca estive ligado a partido algum, que não me revejo em nenhum partido, mas que voto sempre e que já votei muitas vezes no PCP, designadamente a nível local.

Dito isto, penso que no dia em que o PCP deixar de estar no Parlamento, a democracia e o Parlamento ficarão mais empobrecidos.

Joaquim de Freitas disse...

Inteiramente de acordo com J.Carvalho.

Unknown disse...

Para quê gastar cera?

Joaquim de Freitas disse...

" Traduçao do Google, (que vale a pena) do texto de Andrei-Martyanov , no Merridale and Ward. Se o Sr. Embaixador permite.

"A guerra é uma ferramenta geopolítica de primeira ordem; apenas guerras de grande escala podem medir a força real das nações. Durante décadas, as reivindicações americanas de hegemonia, e por extensão as do Ocidente, basearam-se no que agora provou ser uma mitologia cuidadosamente construída de supremacia económica e militar. Este é o quarto livro de Andrei Martyanov que aborda esta questão, agora no que diz respeito à guerra na Ucrânia. Na Guerra Final da América, ele expõe em detalhes as causas subjacentes e a extensão de seu autoengano.
Os oito anos de preparação de Washington e das suas forças armadas para a guerra com a Rússia foram um erro de proporções históricas, devido à sua percepção errada do poder militar americano com base na sua vitória na Guerra do Golfo em 1991 contra um actor militar menor. Washington acreditou na sua própria propaganda sobre sanções paralisantes à Rússia, sobre a viabilidade do seu exército proxy ucraniano e na fraqueza económica e militar da Rússia, significando a ruína para o império americano e a sua “ordem baseada em regras”.
Martyanov expõe a total incompetência e o chocante amadorismo militar de Washington. Mas então, afirma ele, os EUA não fazem estratégia; faz planos de negócios Durante 2022-2023, a Operação Militar Especial (SMO) da Rússia expôs as forças dos EUA e da NATO como exércitos legados presos na década de 1990, ainda vendo o mundo a partir desse ponto de vista. Seguiu-se a destruição maciça das armas de alto custo do Ocidente, anulando a sua alardeada superioridade. Os armamentos ocidentais, desde dardos antitanque a APC Bradleys e complexos de defesa aérea como o Patriot PAC3 ou NASAMS, tiveram um desempenho desastroso e revelaram-se despreparados para o que se tornou o maior conflito militar na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Em 2023, o regime de Kiev já não poderia existir sem o apoio do Ocidente, tanto financeiro como em material de guerra. Até 2024, a Rússia não terá apenas esgotado a Ucrânia, mas também desmilitarizado a NATO como um todo, expondo a impotência industrial e militar dos EUA e dos seus vassalos europeus.
A economia financeira e baseada na tecnologia não é uma economia real; a guerra e a doutrina expedicionárias não são uma guerra real. O equilíbrio global de poder mudou para a Eurásia. A Europa Ocidental tornou-se um conjunto de economias fracas e em rápida desindustrialização que se tornarão cada vez mais irrelevantes no contexto do explosivo desenvolvimento económico, tecnológico, científico e militar na Eurásia
O mundo percebeu o que foi exposto e, por causa disso, a vida como a conhecíamos não existe mais. O domínio do Ocidente no último meio milénio acabou."

Não há coincidências? Que ideia!

A conversa durou quatro horas. Foi ontem, ao jantar, numa tasca da Baixa lisboeta. Não me perguntem por onde andou o diálogo, entre mim e o ...