sexta-feira, julho 11, 2025

O "espião" saído do quente


Há tempos, numa visita de trabalho a Luanda, ao olhar a baía do quarto do hotel onde estava hospedado, o meu olhar cruzou-se com aquela varanda. Era no andar de topo de um prédio não muito alto, que hoje se vê bastante degradado, num largo que dava para a 4 de fevereiro, a avenida marginal.

Nos anos 80, ali moravam uns amigos que, por vezes, nos convidavam. O dono da casa era português, a sua mulher era de uma das famílias mais conhecidas de Angola. Eram sempre ocasiões divertidas, no calor da noite, com música, grandes conversas, a comida e a bebida que podia haver, com a fantástica generosidade dos angolanos como pano de fundo.

Os tempos não iam fáceis para as relações políticas entre Portugal e Angola, mas tenho a sensação, vistas as coisas à distância, que a nossa qualidade de diplomatas portugueses nunca foi minimamente inibitória a que circulássemos pelas casas dos muitos angolanos que íamos conhecendo. Criámos nesses anos excelentes amizades, algumas que ainda perduram bem sólidas, mais de quatro décadas passadas. Como é aliás o caso das pessoas que então habitavam naquela casa.

Nesse tempo de guerra civil em Angola, cabiam-me, na nossa embaixada em Luanda, entre outras, tarefas de informação político-militar. Perceber as relações de poder no seio da classe dirigente angolana, tentar identificar e avaliar a força relativa das várias personalidades e das principais alas políticas, acompanhar a evolução do conflito então em curso - tudo isso fazia parte das minhas tarefas. E era um trabalho fascinante.

Um diplomata não é um espião, no sentido técnico do termo. Não usa fontes clandestinas, não paga informação, não anda atrás de segredos de Estado. Eu não cometia a menor ilegalidade e comportava-me sempre na escrupulosa observância dos limites impostos pela Convenção de Viena, essa "magna carta" a que a diplomacia tem de se subordinar. Conversava com muita gente, lia toda a informação "aberta" disponível, ouvia e tentava interpretar o que me chegava, por forma a procurar informar o meu governo, independentemente da cor política que prevalecesse em Lisboa, que vai variando com os humores do voto.

Na Luanda de então, quem comigo falava, tal como com os restantes colegas da embaixada, sabia do nosso interesse em andar bem informados. As outras embaixadas, em especial ocidentais, alimentavam o mito de que nós, portugueses, "sabíamos tudo". Não sabíamos, embora, em regra, soubéssemos bastante mais do que eles e, em especial, tivéssemos um quadro interpretativo dos factos que sempre me pareceu bastante mais eficaz do que o seu.

Contudo, muitas das vezes, ao falar com os meus interlocutores locais, dava-me conta de estar a receber informação errada, quer isso fosse feito deliberadamente para nos confundir, quer pelo interesse de alguns de se vangloriarem de conhecimentos que, afinal, não tinham. É da vida dos círculos diplomáticos, em toda a parte do mundo, que as coisas assim sejam. É sempre necessário contar com isso, no esforço para decantar a verdade.

No fundo, acabava por ser um jogo amigável, tanto mais que, estando Portugal e Angola, à época, um pouco "de candeias às avessas", pela liberdade de que a Unita então usufruía em Portugal e que desagradava muito ao governo angolano, isso não significava que, a prazo, estivéssemos necessariamente em rota de séria colisão. Como o tempo, aliás, veio a provar à saciedade.

Numa das noites passadas naquela varanda, num fim de semana, calhou na minha mesa um militar angolano muito bem colocado na máquina de guerra. Mesmo sem ser estimulado a revelações, foi-se abrindo sobre a evolução do conflito. Parecia estar propositadamente a ser loquaz. Ele sabia perfeitamente quem eu era e que o que me dissesse iria chegar às autoridades portuguesas. Eu ia colocando algumas questões e ele ia respondendo à minha curiosidade. Não eram segredos de Estado, mas o que ele dizia era muito mais significativo do que o que ouvíamos no discurso oficial. Eu estava muito atento e interessado naquela conversa.

Em Luanda, por esse tempo, em especial nos fins de semana, bebia-se bastante. Nessa noite, eu não estava a ser uma exceção. Por isso, tinha a noção de que as preciosidades informativas a que estava a ter um casual acesso não se estavam a fixar na minha cabeça com o rigor necessário.

Chegado a casa, no início da madrugada, procurei colocar no papel aquilo que de relevante recordava da conversa com o importante militar - dados que, pela fonte de onde provinham, tinham mais credibilidade e, daí, maior interesse para Lisboa. Rabisquei umas folhas de papel, na expetativa de poder delas vir depois a extrair um belo "telegrama", como a linguagem diplomática chama à correspondência entre os postos no exterior e as capitais. E fui-me deitar.

No dia seguinte, já sóbrio para trabalhar, olhei o que tinha escrito na véspera e constatei que percebia muito pouco do que tinha registado, sob alguma influência do álcool. Até eu tinha dificuldade de entender a minha letra, além de que algumas coisas não jogavam bem com as outras. Fiquei furioso comigo mesmo. Ainda repesquei algumas frases, mas tudo ficou muito distante da riqueza da conversa da noite anterior. O tal telegrama não ficou a obra-prima que eu pensara.

O militar que foi meu interlocutor nessa noite veio a ter uma carreira de enorme relevo. Nunca mais nos cruzámos. Já várias vezes pensei que, se acaso isso tivesse acontecido, teria coragem para lhe contar o que agora aqui revelo. Mas também pensei que ele me poderia vir a responder que, naquela noite, tinha tido o cuidado de me passar informação falsa ou orientada, aquilo a que, na linguagem desse mundo de sombras da "intelligence", na expressão clássica russa, se chama "dezinformatsyia". E ficávamos quites.

3 comentários:

ematejoca disse...

O ESPIÃO QUE SAIU DO FRIO, é o meu romance favorito de John Le Carré.
Li com grande prazer, o “espião” que emerge do calor com uma subtileza intrigante.

Anónimo disse...

Recordar é viver, ou reviver.

João Cabral disse...

Francisco, e já pensou que toda essa informação tão preciosa pode ter sido tão-só uma efabulação da embriaguez? É possível.

Já tinha dado conta ...

... mas acanhei-me em notar. Faço palavras cruzadas quando o tédio se transforma em quase desespero. Gosto delas difíceis, das que têm vária...