Em nossa casa, como creio que acontece com a maioria da gente mais velha, ainda há um telefone fixo. Se me perguntarem onde ele está, hesitarei muito. Com a era dos telemoveis, o telefone dito "de mesa" perdeu há muito a centralidade que, por décadas, tinha ganho nas familias. Nunca o usamos, ou melhor, só o descobrimos num recanto variável de uma estante, quando porventura toca. O que rarissimamente acontece. E, quando acontece, invariavelmente surge, da boca de um de nós, a frase: "Deve ser a Adelaide".
A Adelaide foi uma empregada que, há 34 anos, levámos connosco, quando fui colocado na embaixada em Londres. Conhecêmo-la por intermédio de uns amigos. Era transmontana, de perto de São Martinho de Anta, e trabalhava num hotel em Carcavelos. Esteve em nossa casa nos mais de quatro anos em que vivemos em Londres. E por Londres ficou.
Nos primeiros tempos, não sabíamos o que fazer com ela aos fins de semana. Não falava inglês, não conhecia ninguém, ficava pelo quarto a ver televisão, falada numa língua estranha para ela. Um tanto artificialmente, arranjámos-lhe uns conhecimentos na comunidade portuguesa, para a ajudar a romper o seu isolamento. E isso acabou por funcionar. Passados uns tempos, a Adelaide já tinha várias amigas, com quem saía.
A Adelaide tinha um problema grave de estrabismo que, manifestamente, a complexava. Olhava as pessoas sempre de lado, penteava-se de forma a que um dos olhos ficasse um pouco encoberto. Uma médica a que teve de recorrer, a propósito de uma qualquer questão de saúde, numa consulta a que foi acompanhada pela minha mulher, ao notar esse comportamento, perguntou se ela não quereria ser operada à vista. Era algo que se podia corrigir. A Adelaide ficou de pensar no assunto e, tempos depois, estimulada por nós, colocou-se nas mãos do SNS britânico, que se encarregou da cirurgia. Que teve um imenso sucesso.
Dali em diante, a Adelaide passou a olhar as pessoas de frente, o penteado simplificou-se, sentiu-se-lhe um renascer de confiança e uma nova alegria. Até a sua postura com os outros, às vezes um pouco rezingona, se suavizou. O efeito psicológico do fim do problema ocular foi muito evidente. E, talvez como corolário dessa nova forma de encarar a vida e olhar para os outros, a Adelaide arranjou um namorado, também português. Com quem veio a casar, connosco como padrinhos. E teve um filho, o Francisco, de que fui padrinho de batismo. E todos ficaram lá por Londres, quando regressámos a Lisboa. E ficámos amigos para sempre.
Nós, a Adelaide e a família vemo-nos a espaços, em Vila Real, em Lisboa e até em Londres. A Adelaide telefona-nos algumas vezes, nós não tantas como devíamos. Ela liga sempre pelo telefone fixo que temos em casa. O mais das vezes, quando esse telefone toca, já sabemos que é a Adelaide. Quando não é e, afinal, é alguém a querer vender qualquer coisa de que não precisamos, temos pena que não seja a Adelaide.
3 comentários:
Para que mantém o Francisco esse telefone, que custa um ror de dinheiro por mês? Não era melhor dar-lhe baixa?
Quando o meu pai faleceu, também tinha na sua casa na aldeia um telefone fixo, e uma das primeiras coisas que tratei de fazer foi cancelar a subscrição desse telefone. Pagar 15 euros por mês para lá ter esse mono, que disparate!
Mais uma belíssima “história com gente dentro”.
Mais uma vez muito obrigado, estas histórias mantêm viva em nós a chama de que falei há 2 dias, a de que são as pequenas coisas de vida que vivemos e que ajudamos os outros a viver que justificam que andemos por cá, tudo isto fica quando tudo o resto passa.
No entanto não posso deixar de saudar o notável contributo que mais uma vez o Luís Lavoura aqui nos traz, sempre preocupado com o nosso bem estar.
A mim já me aconselhou até a vender a casa de Lisboa e mudar-me para um sítio da cidade onde não houvesse turistas já que falei várias vezes do sobreturismo local, passava-me assim a incomodar o vizinho da frente em cuecas à janela ou a passear-se pela casa quando agora o vizinho da frente mais próximo deve estar a uns 5 kms, mal por mal antes as trotinetes no passeio (há muito menos, o que é bom que se diga).
Não sei o que o Luís Lavoura poderá pensar de mim, mas grande coisa não será (se calhar já não é, pior não fico).
Pois eu tenho telefone fixo em 2 casas a mais de 300 kms uma da outra e não creio que pague mais por isso, está nos pacotes de “TV Cabo+Internet+Telefone fixo” praticamente iguais (ainda que de operadoras diferentes) que tenho, isto sim escandaloso pois não passo em média mais que metade do ano em cada uma, o que quer dizer que os tais pacotes me custam em média o dobro.
E por isso o telefone fixo do nosso anfitrião também não lhe custará um ror de dinheiro (e mesmo que custasse, não me dei conta que este texto fosse para abrir uma subscrição para o pagar).
Gasto assim umas centenas de euros por ano (se fossem só estes e por estas razões!), o que não me rala nada mas é sempre bom saber que há quem fique talvez ralado com o modo como gasto o MEU dinheiro, isto já não falando de ter 3 carros que no seu conjunto fazem 15 mil kms por ano (2 dos quais numa garagem paga, horror dos horrores) e outros crimes não menos graves que evito contar para não me trazer outros dissabores.
E o mais chocante é que, mesmo que pudesse tirar o telefone fixo dos pacotes não o tirava, quando se tem que pôr no silêncio os telefones móveis durante a noite por razões de saúde de um e de horas de deitar do outro, o telefone fixo (precisamente porque ninguém liga por ali) é o que está de serviço aos problemas da família e dos amigos mais próximos (alguns que vivem sozinhos e doentes, acontece com a idade), pois nem todos nós temos a família toda em casa e cheia de saúde e força e, no meu caso, passei anos a ter que correr porta fora às horas mais díspares.
Como apontamento final faço notar que fiquei muito quietinho ontem perante a possibilidade de ter que aconselhar ao Luis Lavoura o refeitório de algum convento de monges da “Ordem dos Cartuxos”, onde a vida contemplativa é a única possível e não deve haver melhor maneira nem mas alegre de fazer uma refeição.
Assim vim aqui hoje, a primeira ainda vá que não vá, à segunda pronuncio-me, não vá à terceira ter um ataque mau e, como se sabe, deixei-me disso.
Mas recordo algumas boas “espadeiradas” por aí.
Manuel Campos, dixit!
De repente, lembrei-me da alcunha de um personagem do Fernando Mendes numa série dos anos 90: "o gosma".
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