O país do mundo onde me recordo de ver mais capots de carros abertos foi, sem a menor dúvida, a República Democrática Alemã. Por aquelas ruas e estradas, os históricos Trabant pareciam ter sido construídos para estarem com a bocarra à espera de um mecânico ou, muito simplesmente, sedentos de óleo ou água.
O Trabant foi uma espécie de Carocha de terceira classe, criado do outro lado do muro. Há não muitos anos, já na Berlim sem a parede a meio, assisti a um desfile de Trabant, hoje uma relíquia dos “maus tempos” do Leste Europeu - embora eu saiba que, lá no fundo, ainda há por aí uns saudosistas desse triste mundo a-preto-e-branco.
Lembrei-me dos dias dos Trabant quando, há pouco, fiz figura de cidadão leste-alemão numa rua de Lisboa. De capot do meu carro aberto, com o aquecimento do carro a saltar, num instante, do amarelo para um vermelho alarmante, lá fui eu, em dia de confinamento, de táxi, à procura de líquido refrigerador.
Pois isso! As estações de serviço hoje só vendem combustíveis e “comida empacotada”, como me foi dito em dois desses locais.
Desde há muito tempo que criei uma carapaça psicológica, algo artificial mas muito eficaz, que me tem dado um jeitão: quando alguma coisa me corre mal, nas coisas simples da vida quotidiana - se um vidro se parte, se um pneu tem um furo, se há um risco novo na pintura, se perco os documentos ou as chaves -, dou a mim mesmo apenas um minuto para me aborrecer com o assunto. E, a partir daí, penso: “É a vida!”. E não perco nem um segundo mais do meu tempo a blasfemar contra a sorte. Era só o que faltava que um qualquer azar me viesse estragar os dias! Em tempos normais, aliás, quando uma coisa assim acontece, procuro rir-me e vou mesmo beber um copo, de homenagem à imensa sorte que é estar vivo. (Em anos fora da pandemia, costumo usar o mesmo truque para as derrotas do Sporting. E também funciona! Nesra temporada, não tem sido preciso. Cruzes! Canhoto!)
O simpático taxista, que tinha ido comigo tentar encontrar o líquido refrigerador, constatada a impossibilidade de compra, iniciou logo um discurso a atacar as regras impostas às lojas, a insensatez de não deixarem vender óleo e outras coisas assim. E, claro, como qualquer sábio de esquina, tinha teoria assente de como “devia ser”.
E deve ter ficado um pouco desiludido quando me viu reagir num sentido em tudo contrário ao seu: “Isto não tem a mais pequena importância! Passa-se por um indiano, compram-se duas garrafas de água e desenrasca-se o assunto. Com um dia tão bonito como está, só faltava eu estar a aborrecer-me com as regras do confinamento. Se as coisas têm de ser assim, que sejam, pronto!”
O homem embatucou. Tinha querido ser solidário com a minha (moderada) desventura e via-me (não via, porque eu usava máscara) a sorrir com a vida, mesmo com o dia a não me correr de feição. “Que tipo estranho!”, deve ter pensado! E lá me levou de volta ao meu carro, que continuava de capot aberto, a arrefecer, ajudando-me mesmo a pôr a água do Luso, muito por conta da boa gorgeta que eu lhe tinha dado.
Contei, divertido, esta história a um amigo, a quem telefonei a pedir um conselho sobre os tempos do fim do meu carro (que, com mais de 15 anos, bem mais de 200 mil kms e a gastar mais do que 10 litros de gasolina aos 100, já está a pedir reforma ou “lay off”).
Ao ouvir a reação que eu tinha tido perante os protestos do taxista, teve esta saída: “Havia de ser no tempo do Passos! Estavas aí a clamar contra o governo, não era?”.
E não é que ele é capaz de ter alguma razão?! O que só prova que o António Costa no governo me põe bem disposto. Pode dizer-se melhor de um governo do que afirmar que ele nos põe bem dispostos?
(E, agora, façam favor: os comentários são livres).