segunda-feira, fevereiro 01, 2021

1 de fevereiro de 1908 - Uma vítima prematura da República



(Retirado do blogue “Memória de Saa” (www.memoria-de-saa.blogspot.com

”Entre os mistérios que atravessam os tempos conta-se o destino, por vezes trágico, de figuras que marcaram indelevelmente a sua época mas que a História, por acidentes inesperados, optou por não acolher no seu seio com a dignidade merecida. Augusto Maria de Saa está entre essas personalidades, para quem o destino foi cruel e a memória dos homens sumamente ingrata.

Augusto Maria de Saa teve a existência que hoje cada vez melhor conhecemos, nesse fresco renascentista que foi a sua vida de eleição. Da literatura à pintura, da filologia à música, da medicina à arte das viagens, da antropologia à ciência náutica, da agricultura científica à enologia, da astrologia às ciências ocultas, da física à matemática, por quase tudo passou o nosso Augusto, em todas essas áreas deixou a marca da sua inteligência e perspicácia. E tudo isto, imagine o leitor, para vir a morrer, de forma inglória, sobre a pedra fria da rua do Arsenal, na tarde fatídica de 1 de Fevereiro de 1908.

Este nosso relato, amigo leitor, poder-lhe-á parecer errático e incoerente, mas, depois de abordarmos, no texto anterior, as origens do nosso Augusto, talvez valha a pena, antes de detalharmos a sua existência, saber um pouco mais sobre as condições dramáticas da sua desaparição do mundo dos vivos. “Só a essência serena da morte é digna da graça efémera de uma vida”, diria, premonitório, esse grande clássico do nosso Augusto que foi Crabtree (*)

O apelo da família fizera Augusto regressar do Brasil a Portugal em finais de 1907, para ver, pela última vez, pelo Natal, a sua querida irmã Ephygenia, a esvair-se da vida, numa tísica sem remissão, no palacete à Junqueira, construído com os ouros do seu trabalho no Brasil. Tinha 54 anos, o nosso Augusto, e eles começavam a pesar-lhe, confessava. Nesse primeiro dia de Fevereiro, destroçado pelo espectáculo da crescente tragédia doméstica, Augusto toma uma caleche e decide apanhar o ar fresco do Terreiro do Paço, beber uma aguardente no Marinho da Arcada, que tanto alimentava as suas saudades nas tardes quentes das terras além do Atlântico. A essa hora, o Martinho regorgitava de caras que o nosso Augusto não reconhecia, figurões dos ministérios a fazer horas da preguiça, algumas personagens jovens com ar circunspecto, chapéu negro na mão e papéis no sovaco, graves nas suas bigodaças, em cujos murmúrios se pressentiam conspirações e incontáveis intrigas. A República rondava, a vida política sentia-se espessa.

Como que por contraponto, a certa altura, a notícia espalha-se: Suas Magestades estão a chegar de barca ao Terreiro do Paço, regressadas de Vila Viçosa!

O nosso Augusto vê, num segundo, o destino colocar-lhe perto, pela primeira vez, essas figuras que a História quisera símbolos do seu Portugal. No Brasil, o Império já se fora, a República estava vibrante, Augusto tinha ido com os ventos do tempo, mas a memória do Portugal eterno estava toda nessas personagens que breve iriam atracar ao Cais das Colunas. Segue o grupo que abandona o Martinho sob impulso da notícia e cruza, solitário, o Terreiro. Vai colocar-se, com alguns outros, na esquina com o Arsenal, na perspectiva poder gozar a passagem das Majestades por algum tempo mais. Do poste onde se encostara, via ao longe o Rossio, onde prometera encontrar-se ao fim da tarde com gente amiga, antes de uma jantarada no Grémio.

Do lado do cais, o movimento adensa-se. Suas Majestades avançam na carruagem, escoltada pelos guardas a cavalo. Alvoroçado com esse inesperado encontro com a História, Augusto logo descortina o recorte avantajado do Rei, nove anos mais novo do que ele próprio. Ao lado, a figura elegante da Rainha D. Amélia, acenando com estudada displicência. De costas na carruagem, uma figura jovem agita a mão em direcção de alguns populares que aplaudem. Deve ser o Príncipe D. Luiz Filipe, pensa. Eram os seus Reis, estava a vê-los pela primeira vez, com um orgulho patriótico de expatriado a agitá-lo por dentro.

Quase sem tempo para se descobrir, para saudar a sua Realeza, o nosso Augusto é impelido a abeirar-se da rua, por uma pequena multidão que largou o conforto da arcada para ver, ainda mais de perto, os passantes Braganças. É esse escasso grupo de pessoas, quiçá movidas mais pela curiosidade que pelo amor à Coroa, que agora faz quase alas à carruagem, roçadas pelos cavalos da Guarda, no curvar lento da saída do Terreiro.

O que se passa, de seguida, é tempo de segundos. Do lado contrário da rua, Augusto ouve o que lhe parece, distintamente, serem dois tiros, seguidos de um alvoroço surdo de gente. O Rei parece-lhe cair prostrado, a cabeça pendente sobre o encosto. D. Amélia soergue-se, lívida, do banco. Mais tiros, vindos sabe-se lá de onde, cruzam a esquina da praça, misturados com gritos e imprecações. Augusto vê surgir lesta, ao seu lado, uma figura esguia que avança com um revólver na mão, que aponta certeiro à figura de D. Luiz Filipe, que se deixa cair na base da carruagem. O homem continua, não desiste, aproxima-se mais das carruagem e D. Amélia, com a coragem da raiva, sacode-lhe o braço assassino com um ramo de flores. O braço desvia-se, o assassino desequilibra-se e do fuzil sai-lhe, enviezado, um último tiro, antes que um chanfalho da Guarda Real o atire ao solo. Esse tiro, o tiro errado, é o tiro certeiro que atravessa a nuca do nosso Augusto Maria de Saa.

A rua passa a um inferno de sangue e gritos. As Reais figuras são rapidamente recolhidas no Arsenal, o Buíça e o Costa – os regicidas que a História acolheria nas suas negras páginas – são trucidados, nos minutos seguintes, pela raiva impotente da Guarda, com a ajuda de populares enfurecidos. Ninguém se preocupa com o corpo exangue de Augusto Maria de Saa, com a face na pedra suja, a sobrecasaca cinza manchada pelo vermelho do sangue português que o Brasil alimentara. Na confusão trágica dessa tarde, o país perdera o Rei e o Príncipe herdeiro, mas a Monarquia continuava, pelo menos por ora. O que acabara, de vez, era o destino de uma figura ímpar que a História iria esquecer por muito tempo: Augusto Maria de Saa.”

[*] Crabtree, Joseph William, “The new global philosophy and the impact of the Cornwall school dissent”, London, Barley & Peacock, third ed, 1887, pg. 623

2 comentários:

Lenah disse...

A história de Augusto Maria de Saa, contada também num blog da Internet, diz que o ilustre lisboeta morreu aos 54 anos, no dia 01 de Fevereiro de 1908, vítima de uma bala perdida da arma que teria matado também o rei D. Carlos e o príncipe D. Luiz Filipe.

O programa contou com a participação do novo embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa, do conselheiro cultural da embaixada de Portugal no Brasil, do director do Instituto Camões no Brasil, Adriano Jordão, e do conselheiro de imprensa Carlos Fino. NO DIA DAS MENTIRAS!

carlos cardoso disse...

Mas hoje não é 1 de Abril?

Vou ler isto outra vez...