Um dia de 2010, quando era embaixador em França, fui alertado para o facto de uma empresa portuguesa de construção civil, sedeada em Braga e que operava em Marselha, se queixar de estar a ser objeto de uma persistente perseguição por parte da inspeção do trabalho municipal. As obras que executava eram também municipais.
Constantes visitas dos inspetores aos locais de trabalho e várias multas indiciavam, na perspetiva da empresa, que estava a ser vítima de uma espécie de "bullying", desincentivador da continuidade das suas operações. Conhecido que era o ambiente algo "mafioso" que existia nos meios sindicais de Marselha, tudo era possível. Não podia excluir-se que sl guns dos competidores franceses da empresa no pudessem estar por detrás desta operação intimidatória. A AICEP tinha recebido a queixa e pedia-me para intervir.
Que fazer? Há algo que aprendi do exercício da diplomacia: nunca devemos tomar por verdadeira uma qualquer queixa só pelo facto do queixoso ser português. Algumas vezes caí nessa asneira e arrependi-me Mas, naturalmente, estando uma empresa nacional na origem de uma reclamação, o embaixador tinha a estrita obrigação de averiguar e atuar, até ao limite do possível e do razoável.
Sabia que uma discriminação como aquela que era denunciada seria sempre muito difícil de provar. A menos que tivesse havido acusações depois infirmadas pela justiça, era complicado arguir que se tratava de uma deliberada perseguição. Mas não custava tentar. Olho sempre para este tipo de situações como para os "cartões amarelos" que alguns árbitros de futebol mostram, com vista a atemorizar as equipas que pretendem pressionar.
Dramatizar politicamente o problema, para apelar ao reconhecimento oficial de uma possível discriminação, era a única solução que via como possível. Através da nossa Cônsul-Geral em Marselha, pedi que fosse marcada um reunião minha, com caráter de urgência, com o poderoso presidente da câmara municipal de Marselha, Jean-Claude Gaudin.
Gaudin era uma figura bastante conhecida na política francesa. Havia sido o frustrado mas histórico competidor do socialista Gaston Deferre na liderança política da cidade. Tendo chegado a vice-presidente do Senado, chefiou interinamente o partido gaullista, UMP, no período de transição entre Alain Juppé e Nicolas Sarkozy. Viria finalmente a presidir ao município de Marselha por um longo tempo, entre 1995 e 2020.
Não posso esconder que, muito mais do que algumas vedetas com projeção internacional, tive sempre grande curiosidade em conhecer este tipo de figuras intermédias da política, em especial aqueles que acabaram por ficar na soleira da glória.
Chegado a Marselha, comecei por ter uma primeira reunião com a nossa cônsul-Geral e com a empresa portuguesa, com vista a apurar queixas desta. Fiz depois uma visita às obras. Finalmente, fui recebido por Gaudin.
O gabinete de Gaudin, recordo, era imenso. A varanda sobre a cidade, sobre o magnífico Vieux Port, de que guardo algures uma fotografia com ele, era imponente. Tudo aquilo ressoava a poder.
A série televisiva "Marseille", que está na Netflix, com Gérard Depardieu como protagonista, lembra fisicamente Gaudin e, na amoralidade representada na personagem, recorda o ambicioso político Bernard Tapie, que chegou a proprietário do "Olimpique de Marseille".
Velha raposa, mas pessoalmente muito agradável, Gaudin ouviu-me com uma delicada atenção. Perguntou-me, naturalmente, se acaso eu tinha algumas provas concretas no tocante a ameaças sobre a empresa portuguesa. Disse-lhe o óbvio: que não, que apenas tinha relatos e a listagem de insistentes inspeções sucessivas. E acrescentei que sabia que isso não constituía prova, mas apelava a um seu juízo de equidade. Gaudin não reagiu. Ao seu lado, notei que assessores se agitavam, talvez temerosos de que ele viesse a atender às minhas razões.
Como não guardo papéis, a esta distância temporal, não faço ideia de como o assunto se resolveu. Terá a empresa de Braga tido vencimento na sua causa? Só posso esperar que sim. Por mim, fiz o que pude.
Acabo de saber que Jean-Claude Gaudin morreu hoje, com 84 anos. Cada vez mais, as histórias que por aqui conto, estão recheadas de gente que já se foi. Que chatice!
2 comentários:
Sedeada ou sediada? não é que tenha muito interesse mas pode tratar-se de um lapso.
É chato e isso deprime-me :(
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