domingo, fevereiro 07, 2021

Sergey Lavrov


Nas Nações Unidas, em Nova Iorque, existe uma sala imensa, conhecida por Indonesian Lounge. É um espaço aberto, com cadeirões e cadeiras, a toda a volta. Serve para encontros breves, entre políticos ou diplomatas: consultas, apresentação de uma candidatura, transmissão de uma mensagem. Passei por lá horas, em “rapidinhas” diplomáticas de toda a natureza. O mesmo aconteceu, com toda a certeza, com quem me antecedeu e sucedeu.

Quando cheguei a Nova Iorque, em março de 2001, vai agora fazer 20 anos, e como é costumeiro, fui cumprimentar colegas embaixadores (além da imensa “máquina” onusina). Em regra, para um país como Portugal, visitam-se os representantes da União Europeia, os de língua portuguesa, os dos países membros permanentes do Conselho de Segurança, um número importante de latino-americanos, asiáticos e africanos com relações fortes connosco e uma dúzia de “key players”. Mas eu decidi mudar um pouco o registo: fui visitar os representantes de todos os países. Todos? Todos. Os então 190! Posso estar enganado, mas acho que nunca ninguém fez isso! Nem imaginam a trabalheira que aquilo me deu! Mas, um dia, explicarei por que assim procedi.

Um dos primeiros embaixadores que quis visitar, logo que cheguei a Nova Iorque, foi o russo, Sergey Lavrov, desde há 17 anos ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país.

Com os EUA, a Rússia é a “chave” das Nações Unidas. Claro que há a China e, naturalmente, o Reino Unido e a França - os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, os chamados P5, no fundo, o diretório que manda na “casa” e sem o acordo dos quais nada se faz.

Em particular à época, Moscovo e Washington determinavam fortemente o dia a dia da organização. Os EUA viviam então as primeiras semanas da administração George W. Bush e, após a saída do embaixador de Bill Clinton, Richard Hallbrook, tinham apenas um encarregado de negócios (substituto do embaixador). Ora Portugal, com a Rússia e os EUA, compunha então a “troika” de acompanhamento do “processo de paz” em Angola. 

Lavrov foi muito simpático. Respondendo pessoalmente ao pedido de audiência que tinha sido feito por secretárias, telefonou-me a convidar para jantar em sua casa, na semana seguinte, com amigos. Mas também percebeu que não era bem isso que eu pretendia. “Estás livre, amanhã à tarde, ás 15 horas, para falarmos, no Indonesian Lounge, Francisco”. Claro que sim. Estranhei um pouco o “Francisco” e não terei retorquido “Claro, Sergey!”

E lá falamos, no dia a seguir, no tal espaço, os 20 minutos da praxe, comigo a deixar-lhe todas as mensagens políticas que queria. Sergey Lavrov foi extremamente simpático, como o seria durante todo o tempo em que coincidimos em Nova Iorque. Ele já tinha já tido um relacionamento exemplar com o meu antecessor, António Monteiro. Era um “vieux routier” e um excelente diplomata. Ficámos amigos.

A certa altura, com um sorriso aberto, foi pedagógico para o “newcomer” que eu era. E disse: “Posso dar-te um conselho, de quem já anda aqui há muito tempo?” (Lavrov chegou sete anos antes de mim e acabaria o seu posto dois anos depois de eu sair).

Apontou então para uma esquina que existe, na entrada do Indonesian Lounge, que é um espaço aberto, que não tem propriamente uma porta de entrada: “Cuidado com aquela esquina!”

Fiquei perplexo! Que diabo de especial tinha aquela esquina? Ele explicou: “Nos próximos tempos, vais regressar a esta sala centenas de vezes. Tens de contornar aquela esquina o dobro dessas vezes, na vinda e na ida. De repente, à entrada ou à saída, depararás com um colega nosso - somos quase 200! -, de um qualquer país, africano ou asiático. Vais ter apenas dois ou três segundos para te recordares se ele é o representante do Niger ou da Nigéria. Se lhe disseres “bonjour” e for o da Nigéria, ele nunca mais te perdoará. Se for o do Niger e lhe disseres “good morning”, esquece para sempre o apoio do país dele em qualquer eleição futura! Basta lembrares-te de como te sentirias se te confundissem com o embaixador de Espanha!” Como ele tinha razão! Além disso, Lavrov cuidava em saber os nomes de cada um de nós. Sempre sem falhas.

Ontem, ao vê-lo dar um “baile” de diplomacia agressiva, e até arrogante, ao Alto-Representante da União Europeia, Josep Borrell, “reencontrei” o excelente (e feroz) diplomata russo que é Sergey Lavrov.

2 comentários:

jj.amarante disse...

Não sei se será publicável mas será certamente visionável: https://www.youtube.com/watch?v=GemJWAKjrTk

Joaquim de Freitas disse...

Excelente documento Sr. jj.amarante. Lavrov é a classe. Confirma tudo o que o nosso Embaixador escreveu.

Lendo os comentàrios dos americanos honestos, vê-se bem o fosso existente entre a diplomacia coca-cola e a inteligente russa. Esta frase é terrivel: "O que costumávamos respeitar décadas atrás em nosso povo foi claramente mostrado nos representantes actuais da Rússia. Como norte-americano, seguro a minha cabeça com vergonha quando considero as acções e o comportamento daqueles que nos representam hoje. Nossos líderes são bandidos sem classe sem um pingo de intelecto, sabedoria ou bom senso.

Repita lá!

Quando ouço alguns políticos, um pouco por todo o mundo, dizer que estarão com a Ucrânia até ao fim, interrogo-me sobre o que isso realmente...