domingo, fevereiro 14, 2021

De capot aberto


O país do mundo onde me recordo de ver mais capots de carros abertos foi, sem a menor dúvida, a República Democrática Alemã. Por aquelas ruas e estradas, os históricos Trabant pareciam ter sido construídos para estarem com a bocarra à espera de um mecânico ou, muito simplesmente, sedentos de óleo ou água.

O Trabant foi uma espécie de Carocha de terceira classe, criado do outro lado do muro. Há não muitos anos, já na Berlim sem a parede a meio, assisti a um desfile de Trabant, hoje uma relíquia dos “maus tempos” do Leste Europeu - embora eu saiba que, lá no fundo, ainda há por aí uns saudosistas desse triste mundo a-preto-e-branco.

Lembrei-me dos dias dos Trabant quando, há pouco, fiz figura de cidadão leste-alemão numa rua de Lisboa. De capot do meu carro aberto, com o aquecimento do carro a saltar, num instante, do amarelo para um vermelho alarmante, lá fui eu, em dia de confinamento, de táxi, à procura de líquido refrigerador.

Pois isso! As estações de serviço hoje só vendem combustíveis e “comida empacotada”, como me foi dito em dois desses locais.

Desde há muito tempo que criei uma carapaça psicológica, algo artificial mas muito eficaz, que me tem dado um jeitão: quando alguma coisa me corre mal, nas coisas simples da vida quotidiana - se um vidro se parte, se um pneu tem um furo, se há um risco novo na pintura, se perco os documentos ou as chaves -, dou a mim mesmo apenas um minuto para me aborrecer com o assunto. E, a partir daí, penso: “É a vida!”. E não perco nem um segundo mais do meu tempo a blasfemar contra a sorte. Era só o que faltava que um qualquer azar me viesse estragar os dias! Em tempos normais, aliás, quando uma coisa assim acontece, procuro rir-me e vou mesmo beber um copo, de homenagem à imensa sorte que é estar vivo. (Em anos fora da pandemia, costumo usar o mesmo truque para as derrotas do Sporting. E também funciona! Nesra temporada, não tem sido preciso. Cruzes! Canhoto!)

O simpático taxista, que tinha ido comigo tentar encontrar o líquido refrigerador, constatada a impossibilidade de compra, iniciou logo um discurso a atacar as regras impostas às lojas, a insensatez de não deixarem vender óleo e outras coisas assim. E, claro, como qualquer sábio de esquina, tinha teoria assente de como “devia ser”.

E deve ter ficado um pouco desiludido quando me viu reagir num sentido em tudo contrário ao seu: “Isto não tem a mais pequena importância! Passa-se por um indiano, compram-se duas garrafas de água e desenrasca-se o assunto. Com um dia tão bonito como está, só faltava eu estar a aborrecer-me com as regras do confinamento. Se as coisas têm de ser assim, que sejam, pronto!”

O homem embatucou. Tinha querido ser solidário com a minha (moderada) desventura e via-me (não via, porque eu usava máscara) a sorrir com a vida, mesmo com o dia a não me correr de feição. “Que tipo estranho!”, deve ter pensado! E lá me levou de volta ao meu carro, que continuava de capot aberto, a arrefecer, ajudando-me mesmo a pôr a água do Luso, muito por conta da boa gorgeta que eu lhe tinha dado.

Contei, divertido, esta história a um amigo, a quem telefonei a pedir um conselho sobre os tempos do fim do meu carro (que, com mais de 15 anos, bem mais de 200 mil kms e a gastar mais do que 10 litros de gasolina aos 100, já está a pedir reforma ou “lay off”).

Ao ouvir a reação que eu tinha tido perante os protestos do taxista, teve esta saída: “Havia de ser no tempo do Passos! Estavas aí a clamar contra o governo, não era?”.

E não é que ele é capaz de ter alguma razão?! O que só prova que o António Costa no governo me põe bem disposto. Pode dizer-se melhor de um governo do que afirmar que ele nos põe bem dispostos?

(E, agora, façam favor: os comentários são livres).

11 comentários:

josé ricardo disse...

Está muito bem, sr. embaixador. António Costa deixa-o bem disposto e ainda bem para si. A mim, infelizmente, não me tem deixado tão bem disposto.
O primeiro governo de António Costa corrigiu, favoravelmente, o desastre que foi o governo que o antecedeu. Muito desse sucesso deveu-se, não tenho dúvidas, aos parceiros da geringonça. Pelo contrário, este segundo governo tem sido um absoluto desastre. Um governo composto por ministros completamente inadequados e impreparados para a função.
Portugal foi, digamos, bafejado pela sorte, há um ano, quando aproveitou os desastres dos outros, antecipando-se aos catastróficos índices de contaminação do vírus Covid-19, pois este chegara primeiro a outros países. E houve milagre em terras lusas. Todavia, quando foi necessário estudar, planear, projetar as próximas vagas, o governo falhou, levianamente, em praticamente todos os parâmetros de análise comparativa com outros países.
Recorro às suas palavras aquando do "milagre" português de há um ano, como forma de justificar a minha posição em relação à impossibilidade de António Costa me deixar bem disposto. Disse então o sr. embaixador o seguinte: "A matemática parece ser uma disciplina facultativa. E talvez fosse interessante perguntar aos mortos suecos o que acharam da sua sábia estratégia nacional". Pela minha parte dispenso-me de perguntar aos mortos portugueses se António Costa os tem deixado bem dispostos.

José Lopes disse...

Há por aí de facto uns saudosistas da RDA, e dos outros paraísos do leste. Nunca lá viveram, como simples cidadãos, não como membros ou amigos dos Apariticks.
É ler o livro do Gabriel Garcia Marques, "Em viagem pela Europa de Leste", ou ter visto a recente série que passou na RTP, "O desertor", para ver como era o poder na nova RDA.
Há ainda o pequeno pormenor da ordem para atirar a matar sobre quem queria fugir do paraíso.

Joaquim de Freitas disse...

« O Trabant foi uma espécie de Carocha de terceira classe, criado do outro lado do muro. “

Bem verdade Senhor Embaixador.
Também é verdade que o Carocha de primeira classe, foi criado a pedido de Hitler, o seu famoso automóvel “democrático”, que foi comercializado em 1938 como o "Volkswagen", "carro do povo".
Ferdinand Porsche , o seu constructor, também construía para o mesmo cliente, Hitler, os famosos tanques Tigre…

Quando o Trabant foi construído, do outro lado do muro, não haviam finanças “fáceis” como as de Hitler, nem plano Marshall…

E a Alemanha de Leste pagava as indemnizações de guerra, que os ocidentais perdoaram…
Haveria tanto a dizer sobre a “abastança” da RFA…

A.B. disse...

Suponho que se eu tivesse “friends in high places” também andaria bem disposto.

Joaquim de Freitas disse...

Se os países de leste pagaram caro a guerra-fria, os portugueses, tranquilos no seu jardim à beira mar plantado, à sombra dum regime forte, liberal, “democrático, fugiam quando podiam, mesmo a pé, quando Garcia Marquez visitava o Leste europeu.Mas o jornalista nao viu nada!

E o que é grave, é que continuaram a fugir mesmo depois. Em 2012, 120 mil pessoas deixaram Portugal, mais do que em 1966. São 10 mil pessoas por mês, o que ultrapassa o auge do movimento emigratório da década de 60. Isto era há oito anos!

Nos anos 60 andei por Potsdam e Leipzig. Uma grande fábrica de camiões, era o meu cliente.

Conheci a Alemanha de Leste, um pouco, mas nunca lá vi a miséria nem o obscurantismo que vi no meu país de origem. Os técnicos que vieram a França para uma formação na minha firma, e recebi na minha casa, voltei a vê-los depois da queda do muro. Diziam que tinham a liberdade de viajar ao estrangeiro, certo, mas não tinham os meios. O seu nível de vida baixou de 30%...

O jornalista Garcia Marquez escreveu o que viu, da maneira que viu. Era a sua opinião. Respeitável. Mas não sei se viu tudo. Não creio.

E hoje? Mais de 30 anos após a queda do Muro de Berlim, muitos Ossies lamentam a Alemanha Oriental, a RDA e o seu pleno emprego, como evidenciado por uma sondagem do Instituto Leipzig para a revista Super Illu e uma sondagem do Instituto Emid para o Berliner Zeitung.

A maioria acredita que a antiga RDA tinha "aspectos mais positivos do que negativos".

49% dos habitantes da antiga RDA acreditam que "houve alguns problemas, mas no geral viviam bem". e 8% salientam que "a RDA tinha sobretudo bons lados e que vivíam melhor do que na actual Alemanha reunida"

34% dos ex-berlinenses do leste ainda se consideram berlinenses orientais.
52% dos alemães orientais consideram-se tratados como "cidadãos de segunda"
44% dos desempregados querem o regresso do regime comunista que proporcionou trabalho e habitação a todos.

Na Alemanha de Leste, o milagre económico não aconteceu.

Os antigos países de Leste, que fazem parte da UE, estão a registar salários de miséria, permitindo o dumping social desenfreado na União europeia .

“Temos muito mais liberdade, mas antes tinhamos uma vida mais segura": diziam-me os meus amigos. A reunificação das desigualdades persiste, e os alemães da antiga RDA admitem uma certa nostalgia.

Mas a reunificação foi o momento de grandes negócios para o capital, quando desbarataram a industria da Alemanha de Leste.

"lá no fundo, ainda há por aí uns saudosistas desse triste mundo a-preto-e-branco." Também creio Senhor Embaixador. Nao por aqui mas por là.

Jaime Santos disse...

Sr. Joaquim de Freitas, conta-se a seguinte anedota sobre a URSS. Um cidadão após vários anos a poupar lá consegue juntar dinheiro para comprar um carro. Vai ao stand pagar o sinal e dizem-lhe, volte daqui a cinco anos. Ele suspira e pergunta, de manhã ou de tarde? É daqui a cinco anos, que interessa se é de manhã ou de tarde? É que à tarde vem o canalizador...

Não vale a pena ficar mal disposto só porque o socialismo real ruiu de alto a baixo. Como diz o Embaixador, é a vida! Mas, ao contrário dele, o senhor ao fim de trinta anos ainda anda a resmungar...

Se continuar, olhe que tenho outras piores do que esta na manga :) ...

Joaquim de Freitas disse...

Não Senhor Jaime Santos, pode contar todas as “anedotas” que conhece, para aqueles que as compreendem… O Senhor até tem sorte que pode escrever livremente num blogue socialista. Aproveite, porque pode não durar!

Jaime Santos disse...

Socialista, Senhor Joaquim de Freitas? Que eu saiba, há muito que o Senhor Embaixador se define como social-democrata (o que nada tem que ver com o PSD). O PS em Portugal representa a corrente reformista de Centro-Esquerda que não alinha em frentismos (mas não enjeita, e ainda bem, a convergência com os outros Partidos desta área, tornada possível graças à estratégia de António Costa).

Nunca votei noutro Partido...

Mas numa coisa o Senhor tem razão. Vivemos numa sociedade em que eu posso escrever livremente o que penso e contar todas as anedotas que quero, ache-lhes o Senhor piada ou não, entenda-as ou não (dentro dos limites da boa educação, claro).

Não o poderia fazer certamente por detrás da cortina de ferro... Arriscava-me a ser reeducado porque contra-revolucionário, incapaz de reconhecer a glória da revolução socialista. Sabemos bem no que isso deu...

Não vejo grande diferença entre a Stasi e a PIDE, com franqueza... Os métodos eram mais ou menos os mesmos. Prisões arbitrárias, tortura, assassinatos até...

A propósito da liberdade de expressão, aqui vai mais uma muito boa. Um juiz soviético sai da sala do tribunal a rir à gargalhada. Um colega pergunta-lhe o que se passa. Ele responde que acabou de ouvir uma excelente anedota. Conta lá, replica o colega. Não posso, acabei de dar 5 anos a um gajo por causa dela :) ...

Claro, no dia em que o Senhor Embaixador me mandar dar uma volta, eu nunca mais o incomodo :) ...

Joaquim de Freitas disse...

Senhor Jaime Santos, que o Senhor pretenda colocar o Senhor Embaixador nas fileiras da Social-Democracia, onde enfileiraram tantos “democratas” anti sociais, como Blair, Durão Barroso, Cavaco Silva, Passos Coelho, e tantos, tantos outros, é “votre affaire”! Desculpe mas parece-me muito provocador da sua parte, esquecer que o Senhor Embaixador foi o companheiro da primeira hora de Mário Soares e tantos outros socialistas.

A social-democracia é o albergue espanhol, onde se sentaram à mesa os piores e alguns menos maus… Nunca lá me alberguei.

Eu sou dum tempo onde não se via essa cor no combate ao fascismo de Salazar em Portugal.

Que os dois partidos PS e PC tenham tornado possível governar à esquerda em Portugal, uma exclusividade na EU, é o resultado da inteligência politica do primeiro-ministro, e dos líderes dos dois partidos. Mas a geringonça não satisfaz completamente mesmo nas fileiras dos dois partidos. Mas, é a vida! É o que há…

As suas anedotas valem o que valem. Ah, gostaria de conhecer a sua imaginação, num acto de assassinato dum Negro, com um joelho dum polícia branco no pescoço durante 10 minutos! É capaz de dar para rir…às gargalhadas…

Ou das férias em Guantanamo, durante anos sem ser julgado…

Ou das férias prolongadas de Julian Assange nas prisões “democráticas” do RU, sem julgamento, por ter ousado denunciar os crimes dos americanos no Afeganistão…

Ou os assassinatos por drones, das individualidades que não se ousa combater no campo de batalha, …assassinatos decididos ao nível mais elevado dum estado “democrático”..

Não vamos fazer a mórbida contabilidade dos assassinatos da Stasi e mesmo da Pide, comparados aos da CIA no mundo inteiro…antes de Allende e depois, até hoje!

Mas posso garantir, que esta última organização criminosa, age em nome dos valores do Ocidente, os mesmos aliás que a PIDE.

Jaime Santos disse...

Sr. Joaquim de Freitas, posso apenas dizer que o PS desde de Mário Soares que se posiciona no campo da Social-Democracia reformista, tendo abandonado todas as veleidades coletivistas, pelo menos desde o tempo do I Governo Constitucional. Mais, o PS foi seguramente o primeiro baluarte contra os excessos revolucionários de 1974-1975, sobretudo da Extrema-Esquerda militar, mais até do que do próprio PCP...

O Senhor Embaixador que me desminta, mas há muito que ele documenta como inicialmente até discordava da linha europeísta do PS...

Não me parece que o facto de eu afirmar isto corresponda a qualquer provocação. É a verdade histórica, apenas.

Quanto ao resto, da suposta superioridade moral do comunismo e da sua capacidade para enterrar o capitalismo e construir um homem e uma sociedade novos, passamos afinal a uma mera contabilidade de quem é pior, descrita nos termos que lhe são habituais. Mesmo que isso só lhe sirva para dar um cházinho, porque o Sr. Embaixador se referiu à falta de qualidade dos Trabi :) (e isto en passant)...

Se quer ir por aí, tudo bem, mas o que isso quer dizer é que a discussão na verdade se situa no mero domínio das relações de força. Se o admitirmos, pelo menos estamos a ser honestos e não poderemos ser acusados de hipocrisia.

Os comunistas e os capitalistas são igualmente leninistas na prossecução dos seus objetivos (enquanto uns e outros nos procuram convencer da bondade dos mesmos e na necessidade de ignorarmos os meios pelos quais pretendem atingi-los), simplesmente os primeiros perderam e os segundos ganharam... É a vida...

Ou, como na outra anedota, as razões do insucesso da agricultura na URSS são essencialmente quatro. A saber, Primavera, Verão, Outono e Inverno :) ...

Joaquim de Freitas disse...

Sr. Jaime Santos: Para mim, o comunismo morreu à nascença, em 1917. Uma revolução, uma guerra civil e duas guerras mundiais mais tarde, nada resta do projecto leninista. O sistema adverso, entretanto, pôde instalar-se tranquilamente no resto do mundo, excepto quando foi necessário fomentar golpes de estado e declarar guerras, e aplicar embargos e ameaças de toda a sorte, para se impor aos povos recalcitrantes. E esta tarefa ainda não acabou um século mais tarde.

O Senhor fala-nos de “suposta superioridade moral do comunismo”. Como julgar desta “superioridade”, sem exemplo concreto, pois que não existe? A colectivização, os kolkhozes e o sovkhozes dos anos 20? Num país que se industrializava a marchas forçadas, foi uma aposta perdida, porque os dois projectos não podiam coabitar.

“Os primeiros perderam e os segundos ganharam...diz o Sr.” O Sr. é um incorrigível optimista!

Ganharam o quê? As guerras? Quais guerras? Eu diria que ganharam se não lia todos os dias a triste verdade do mundo que é o nosso. Não são as 800 bases militares americanas no mundo, nem os países vassalos para assegurar o seu domínio do planeta que me importam, Sr. Jaime Santos.

São os 25 000 mortos por dia DE FOME. A fome e a desnutrição são as maiores ameaças à saúde pública, causando mais vítimas do que o VIH/SIDA, a malária e a tuberculose combinadas. Todos os dias, 25.000 pessoas, incluindo mais de 10.000 crianças, morrem de fome e causas relacionadas. Estima-se que 854 milhões de pessoas estejam subnutridas em todo o mundo.

O risco é que a falta de medidas para ajudar estas populações vulneráveis tenha um efeito irreversível no desenvolvimento humano, especialmente para as mulheres e as crianças. Mais de 80% da população mundial não tem hoje acesso a um sistema de protecção social. (Eu ia escrever: mesmo no país dos campeões capitalistas que ganharam…Os alemães de leste tinham esta protecção!))

Os mais vulneráveis devem fazer o melhor que podem, muitas vezes à custa da sua saúde: reduzem o número de refeições, comem alimentos nutritivos, retiram os seus filhos da escola, vendem os seus animais e outros bens, ou pedem emprestado para alimentar as suas famílias.

Não me diga, Sr. Jaime Santos que uma filosofia, uma ideologia, uma religião , qualquer que ela seja se pode satisfazer desta vitória.

Quando acabamos de ler este texto, quantas pessoas morreram de fome? A matemática é horrível. "Como é que conseguimos viver sabendo que estas coisas acontecem?"

E não é um fenómeno de longe: a fome também bate às portas daqui. Ontem foi o trigésimo aniversário do apelo de Coluche para os "Restos du Coeur".

O texto vai longe. Apresento as minhas desculpas ao Senhor Embaixador.

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António F...