Há minutos, numa das minhas tradicionais incursões noturnas pela cozinha, à cata de vitualhas sobejantes, feita pé-ante-pé, para não ser objeto de remoques matrimoniais, deparei com duas fatias de bolo-rei. Marcharam de imediato, como é óbvio. Fiz desaparecer o celofane em que estavam envolvidas, lavei o prato e acho que eliminei os vestígios do “crime”. (Em regra, não consigo. A empregada, no dia seguinte a estas expedições aos hidratos de carbono no andar de cima, denuncia-me, com um sorriso: “Deixou muitas migalhas na ida às bolachas e ao pão…” Até hoje, arrependo-me de ter acedido a que o chão da cozinha fosse em cerâmica preta).
Há muito que tenho a imagem do bolo-rei ligada à ideia de culpa. Sempre que olho para aquela bomba calórica, lembro-me de ouvir dizer: “Faz mal”. Um dia, era muito miúdo, perguntei ao meu pai: “Se faz mal, por que é que deixam vender?” Tenho na memória que me respondeu que se pode comer bolo-rei, mas não demasiado. Mas qual é a grossura da fatia que a faz cair no conceito culposo de demasiado? Insondável mistério.
Em criança, era vidrado nas frutas cristalizadas que ornamentam os bolos-rei. As cascas de laranja e de limão eram a minha perdição, tendo sido algumas vezes apanhado a deixar “carecas” alguns bolos-rei, por ir sacando discretamente, uma a uma, essas frutas coloridas, sempre hiper-doces. Em Viana, em casa da minha avó, fazia isso aos bolos-rei que vinham do Dantas. Em Vila Real, aos da Gomes. Ainda hoje resisto dificilmente a essa tentação. Quando resisto.
Com o Natal, este ano, passado em Lisboa, tomei a iniciativa, há semanas, de comprar um bolo-rei, numa ida à Versailles. (Chegado a casa, ouvi: “É muito cedo, vai secar”. Não secou, comi-o em poucos dias, com vinho do Porto a acompanhar). Não era mau, mas o que foi depois comprado no “senhor José”, na rua da Lapa, não lhe ficava atrás. Acabei há minutos de reconstatar isso. Ah! Noto que nunca comi o histórico bolo-rei da Nacional, que parece ser um “benchmark” da cidade. Mas, sempre que calha lá passar, nunca é Natal. Verdade seja que, como diz o outro, “Natal é quando um homem quiser”. Vou pensar nisso.
Uma última palavra para uma questão magna. Metade da graça em torno da coreografia do corte de fatias do bolo-rei, noutros anos, tinha a ver com o “suspense” da descoberta da fava e da prenda. Esta última era a que, em miúdo, verdadeiramente me interessava. E ainda sou do tempo em que a prenda era um artefacto metálico, de pôr ao peito, com uma agulha soldada. Vinha embrulhada em papel e detetávamo-lo ao mastigar. (“Horror dos horrores”, devem pensar os paizinhos contemporâneos, à luz dos hipercuidados de hoje!) Nunca ouvi dizer que alguém tivesse morrido por ter “engolido a prenda”, mas a ASAE já se encarregou, há muito, de nos proteger do arriscado prazer de nos “sair a prenda”.
Sem fava nem prenda, os bolos-rei, cá por casa, este ano, acabaram. Se se cumprirem os calendários, só lá para dezembro é que regressarão. E aí voltarei a sentir-me alegremente culpado.
9 comentários:
Delicioso este texto porque remete para a infância de várias gerações! De facto o entusiasmo que eu, os meus irmãos e os meus primos tínhamos perante o suspense que o meu avô criava ao cortar o bolo rei fingindo não conseguir porque a lâmina da faca, alegadamente encontrara a prenda…de repente assaltou-me a nostalgia. Bem haja.
Para evitar ter fome durante a noite, deve-se comer alguma coisa logo antes de ir para a cama. Mas tem que ser algo de boa digestão. A minha experiência é que um bocado de tremoços ou de frutos secos é o ideal.
Bom dia SR. Embaixador.
Este ano num dos nossos mercados havia a fava e o brinde. (era um rei mago em barro)
Os cumprimentos.
A. de jesus Amado
Texto delicioso, com aquele humor que nos faz nunca deixar de sorrir do princípio ao fim e ainda ficarmos a lamentar não haver mais, como com o bolo-rei de que tanto gosta.
Por aqui o bolo-rei não reina, quem reina é o bolo-raínha, mas também é um facto que, não sendo muito dados a doces (gente estranha, né?) percebe-se a razão.
Como este último, graças aos frutos secos tem só 295 Kcal por fatia (de que tamanho?) e o bolo-rei graças às frutas cristalizadas tem 345 Kcal por fatia (de que tamanho?) a situação, sendo grave, é menos grave e portanto pode-se comer mais, o que inevitávelmente leva a que se ingiram ainda mais calorias do que se fôsse o bolo-rei.
Como diz acima o "Anónimo" das 03.55 isto remete para a infância de várias gerações, aqui em casa das três gerações pois os netos já andavam ali entre os 7 e os 12 anos quando a pesada mão da lei nos tirou a fava e a prenda, foi no inesquecível ano de 2011 (fui agora procurar, claro, fiquei curioso).
Também nunca ouvi falar que o alfinete da prenda tivesse dado cabo da vida a alguém, já no caso da fava não é bem assim, acho que me atacou aqui um dente ou outro, problema ultrapassado porque os dentes continuam a ser todos meus, uns porque se aguentaram, outros porque os paguei a pronto.
Este texto é o que se pode chamar "serviço público".
Em tempos em que todos se viram para todo o lado sem saberem muito bem em que se focar, mais do que preservar "a memória", normalmente ligada a aspectos fugazes da vida dos povos, há que preservar "as memórias", porque essas estão ligadas à cultura dos povos e seria imperdoável perdê-las.
A certa altura minha mulher decidiu consultar uma nutricionista.
Encontrou então uma que na 1ª consulta só a pesou e na 2ª consulta foi finalmente mais longe, não só a pesou como lhe disse para comer tremoços.
Escusado será dizer que não foi à 3ª consulta, que tremoços (a seco) tiram a fome já sabíamos, não é preciso pagar por isso.
O que eu não sabia e fiquei hoje a saber é que tremoços e frutos secos são de boa digestão para quem vai dormir, era algo que não me passava pela cabeça (até porque não aprecio nem uns nem outros)
Não é que duvide mas, pelo sim pelo não, vou confirmar, curiosidade científica.
Bolo-rei fora do tempo é capaz de não ser boa ideia, senhor embaixador...
Para além da Versailles e da Nacional, não esquecer o bolo-rei do Califa e o do Careca. Sobretudo, comprados uns dias antes das festas. Como parece ter sido o caso do Sr. Embaixador. É que são confecionados com mais calma e perfeição. E acompanhados com um porto Tawny. vai que nem ginjas! Nem se sentem as calorias.
Aqui, na pastelaria portuguesa de Londres, depois do 06/01, se sobejaram bolos rei, cortan-nos as fatias e torram. Nada se desperdica. Dizem que os donos estao riquissimos, mas continuam a trabalhar.
Quando ere pequena houve um ano em que umas primas solteironas, na opiniao de um tio "muito prendadas, mas muito desagradaveis" puseram tantas favas quantos nos eramos e nenhuma prenda! Foi uma choradeira e parece-me que nunca mais as visitamos no diad de reis, como ate ai sempre o faziamos.
maitemachado59
Não posso evitar pôr o link, como se compreenderá depois de o abrir.
Há vários sobre este tão doce tema mas que acabam todos por vir dar ao mesmo.
Mas antes de o abrir aconselho vivamente os presentes a saltarem rápidamente as fotos sob pena de darem cabo do teclado, é um objecto que sofre muito quando se saliva abundantemente.
https://lisboasecreta.co/onde-comprar-o-melhor-bolo-rei-de-lisboa/
Nota a despropósito- Já me apareceram nos últimos anos alguns conhecidos muito preocupados com o teclado que não escrevia algumas letras ou símbolos e dramas do género, já tinham até feito pesquisa de mercado, estavam quase a comprar um PC novo (alguém lhes escondeu na loja a verdade, sempre vendiam mais um PC).
E que ficaram muito admirados quando lhes disse que, se era só teclado, já tinha tido esse problema duas vezes ao longo dos anos e que isto se substitui nas calmas e é barato (os dos meus custam 40€, aqui cada um tem um PC igual ao do outro para não haver dúvidas, mas estes estão bons, não apreciamos bolo-rei nem em fotos).
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