segunda-feira, janeiro 02, 2023

O último bolo-rei


Há minutos, numa das minhas tradicionais incursões noturnas pela cozinha, à cata de vitualhas sobejantes, feita pé-ante-pé, para não ser objeto de remoques matrimoniais, deparei com duas fatias de bolo-rei. Marcharam de imediato, como é óbvio. Fiz desaparecer o celofane em que estavam envolvidas, lavei o prato e acho que eliminei os vestígios do “crime”. (Em regra, não consigo. A empregada, no dia seguinte a estas expedições aos hidratos de carbono no andar de cima, denuncia-me, com um sorriso: “Deixou muitas migalhas na ida às bolachas e ao pão…” Até hoje, arrependo-me de ter acedido a que o chão da cozinha fosse em cerâmica preta).

Há muito que tenho a imagem do bolo-rei ligada à ideia de culpa. Sempre que olho para aquela bomba calórica, lembro-me de ouvir dizer: “Faz mal”. Um dia, era muito miúdo, perguntei ao meu pai: “Se faz mal, por que é que deixam vender?” Tenho na memória que me respondeu que se pode comer bolo-rei, mas não demasiado. Mas qual é a grossura da fatia que a faz cair no conceito culposo de demasiado? Insondável mistério.

Em criança, era vidrado nas frutas cristalizadas que ornamentam os bolos-rei. As cascas de laranja e de limão eram a minha perdição, tendo sido algumas vezes apanhado a deixar “carecas” alguns bolos-rei, por ir sacando discretamente, uma a uma, essas frutas coloridas, sempre hiper-doces. Em Viana, em casa da minha avó, fazia isso aos bolos-rei que vinham do Dantas. Em Vila Real, aos da Gomes. Ainda hoje resisto dificilmente a essa tentação. Quando resisto.

Com o Natal, este ano, passado em Lisboa, tomei a iniciativa, há semanas, de comprar um bolo-rei, numa ida à Versailles. (Chegado a casa, ouvi: “É muito cedo, vai secar”. Não secou, comi-o em poucos dias, com vinho do Porto a acompanhar). Não era mau, mas o que foi depois comprado no “senhor José”, na rua da Lapa, não lhe ficava atrás. Acabei há minutos de reconstatar isso. Ah! Noto que nunca comi o histórico bolo-rei da Nacional, que parece ser um “benchmark” da cidade. Mas, sempre que calha lá passar, nunca é Natal. Verdade seja que, como diz o outro, “Natal é quando um homem quiser”. Vou pensar nisso.

Uma última palavra para uma questão magna. Metade da graça em torno da coreografia do corte de fatias do bolo-rei, noutros anos, tinha a ver com o “suspense” da descoberta da fava e da prenda. Esta última era a que, em miúdo, verdadeiramente me interessava. E ainda sou do tempo em que a prenda era um artefacto metálico, de pôr ao peito, com uma agulha soldada. Vinha embrulhada em papel e detetávamo-lo ao mastigar. (“Horror dos horrores”, devem pensar os paizinhos contemporâneos, à luz dos hipercuidados de hoje!) Nunca ouvi dizer que alguém tivesse morrido por ter “engolido a prenda”, mas a ASAE já se encarregou, há muito, de nos proteger do arriscado prazer de nos “sair a prenda”.

Sem fava nem prenda, os bolos-rei, cá por casa, este ano, acabaram. Se se cumprirem os calendários, só lá para dezembro é que regressarão. E aí voltarei a sentir-me alegremente culpado.

9 comentários:

Anónimo disse...

Delicioso este texto porque remete para a infância de várias gerações! De facto o entusiasmo que eu, os meus irmãos e os meus primos tínhamos perante o suspense que o meu avô criava ao cortar o bolo rei fingindo não conseguir porque a lâmina da faca, alegadamente encontrara a prenda…de repente assaltou-me a nostalgia. Bem haja.

Luís Lavoura disse...

Para evitar ter fome durante a noite, deve-se comer alguma coisa logo antes de ir para a cama. Mas tem que ser algo de boa digestão. A minha experiência é que um bocado de tremoços ou de frutos secos é o ideal.

Avelino disse...

Bom dia SR. Embaixador.

Este ano num dos nossos mercados havia a fava e o brinde. (era um rei mago em barro)

Os cumprimentos.
A. de jesus Amado

manuel campos disse...


Texto delicioso, com aquele humor que nos faz nunca deixar de sorrir do princípio ao fim e ainda ficarmos a lamentar não haver mais, como com o bolo-rei de que tanto gosta.
Por aqui o bolo-rei não reina, quem reina é o bolo-raínha, mas também é um facto que, não sendo muito dados a doces (gente estranha, né?) percebe-se a razão.
Como este último, graças aos frutos secos tem só 295 Kcal por fatia (de que tamanho?) e o bolo-rei graças às frutas cristalizadas tem 345 Kcal por fatia (de que tamanho?) a situação, sendo grave, é menos grave e portanto pode-se comer mais, o que inevitávelmente leva a que se ingiram ainda mais calorias do que se fôsse o bolo-rei.

Como diz acima o "Anónimo" das 03.55 isto remete para a infância de várias gerações, aqui em casa das três gerações pois os netos já andavam ali entre os 7 e os 12 anos quando a pesada mão da lei nos tirou a fava e a prenda, foi no inesquecível ano de 2011 (fui agora procurar, claro, fiquei curioso).

Também nunca ouvi falar que o alfinete da prenda tivesse dado cabo da vida a alguém, já no caso da fava não é bem assim, acho que me atacou aqui um dente ou outro, problema ultrapassado porque os dentes continuam a ser todos meus, uns porque se aguentaram, outros porque os paguei a pronto.

Este texto é o que se pode chamar "serviço público".
Em tempos em que todos se viram para todo o lado sem saberem muito bem em que se focar, mais do que preservar "a memória", normalmente ligada a aspectos fugazes da vida dos povos, há que preservar "as memórias", porque essas estão ligadas à cultura dos povos e seria imperdoável perdê-las.

manuel campos disse...


A certa altura minha mulher decidiu consultar uma nutricionista.
Encontrou então uma que na 1ª consulta só a pesou e na 2ª consulta foi finalmente mais longe, não só a pesou como lhe disse para comer tremoços.
Escusado será dizer que não foi à 3ª consulta, que tremoços (a seco) tiram a fome já sabíamos, não é preciso pagar por isso.

O que eu não sabia e fiquei hoje a saber é que tremoços e frutos secos são de boa digestão para quem vai dormir, era algo que não me passava pela cabeça (até porque não aprecio nem uns nem outros)
Não é que duvide mas, pelo sim pelo não, vou confirmar, curiosidade científica.

João Cabral disse...

Bolo-rei fora do tempo é capaz de não ser boa ideia, senhor embaixador...

Tony disse...

Para além da Versailles e da Nacional, não esquecer o bolo-rei do Califa e o do Careca. Sobretudo, comprados uns dias antes das festas. Como parece ter sido o caso do Sr. Embaixador. É que são confecionados com mais calma e perfeição. E acompanhados com um porto Tawny. vai que nem ginjas! Nem se sentem as calorias.

maitemachado59 disse...

Aqui, na pastelaria portuguesa de Londres, depois do 06/01, se sobejaram bolos rei, cortan-nos as fatias e torram. Nada se desperdica. Dizem que os donos estao riquissimos, mas continuam a trabalhar.

Quando ere pequena houve um ano em que umas primas solteironas, na opiniao de um tio "muito prendadas, mas muito desagradaveis" puseram tantas favas quantos nos eramos e nenhuma prenda! Foi uma choradeira e parece-me que nunca mais as visitamos no diad de reis, como ate ai sempre o faziamos.

maitemachado59

manuel campos disse...


Não posso evitar pôr o link, como se compreenderá depois de o abrir.
Há vários sobre este tão doce tema mas que acabam todos por vir dar ao mesmo.
Mas antes de o abrir aconselho vivamente os presentes a saltarem rápidamente as fotos sob pena de darem cabo do teclado, é um objecto que sofre muito quando se saliva abundantemente.

https://lisboasecreta.co/onde-comprar-o-melhor-bolo-rei-de-lisboa/

Nota a despropósito- Já me apareceram nos últimos anos alguns conhecidos muito preocupados com o teclado que não escrevia algumas letras ou símbolos e dramas do género, já tinham até feito pesquisa de mercado, estavam quase a comprar um PC novo (alguém lhes escondeu na loja a verdade, sempre vendiam mais um PC).
E que ficaram muito admirados quando lhes disse que, se era só teclado, já tinha tido esse problema duas vezes ao longo dos anos e que isto se substitui nas calmas e é barato (os dos meus custam 40€, aqui cada um tem um PC igual ao do outro para não haver dúvidas, mas estes estão bons, não apreciamos bolo-rei nem em fotos).

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...