terça-feira, março 27, 2018

Coimbra B


O comboio acaba de fazer uma breve paragem em Coimbra B, no caminho ferroviário entre Lisboa e o Porto. Para quem não saiba, convém esclarecer que Coimbra tem uma estação no centro da cidade, designada por Coimbra A, de onde se toma uma ligação para Coimbra B. É, daqui, acede-se “ao mundo”...

(Historicamente, era em Coimbra B que os “caloiros”, arribados à universidade da cidade, eram pela primeira vez chamados de “doutor”, pelos carregadores de bagagem, à espera de uma gorgeta pelo “elogio”, que inchava esses incautos novatos.)

Mas hoje trago Coimbra B à baila por outra razão: uma anedota que se contava no meu tempo de liceu.

Alguém de Coimbra quis, um dia, ir de comboio até Qianjin, uma cidade no norte da China. Dirigiu-se à bilheteira da estação de Coimbra A, bem no centro da cidade, e pediu um bilhete. O homem do guichet respondeu-lhe: “Para isso, só em Coimbra B. Eles é que têm as ligações internacionais”. 

Chegado a Coimbra B, a resposta não foi muito mais promissora: “Só na Pampilhosa, meu amigo. Lá é que os comboios ligam a Espanha. Ali é que o podem informar”. 

Na Pampilhosa, de facto, as coisas começaram a compor-se, ainda que não em definitivo: “Vendemos-lhe um bilhete para Paris. Depois, eles lá o encaminham para a China”.

E o homem assim continuou. De Paris foi mandado para Moscovo, dali para Pequim e um dia lá chegou a Qianjin. E por ali ficou o tempo que tinha de ficar, sabe-se lá bem a fazer o quê.

Um dia, o coimbrão decidiu regressar. Dirigiu-se então ao guichet da estação ferroviária de Qianjin. A fila de pessoas era grande (tudo o que mete pessoas, na China, como se sabe, é “em grande”). Esperou pela sua vez e, quando esta chegou, pediu um bilhete para Coimbra, que explicou ser uma cidade em Portugal. Contava-se - mas “vendo-a como ma venderam”, como soe dizer-se - que o chinês, com um ar impaciente, lhe perguntou: “Mas o meu amigo acha que aqui não temos mais nada que fazer? Seja mais preciso, homem! Quer um bilhete para Coimbra A ou para Coimbra B?”

Como disse, passei há minutos por Coimbra B. Lembrei-me do homem e da precisão dos chineses. E acreditem: por este andar, um destes dias, vão chegar “palettes” de chineses a Coimbra. A questão persiste: A ou B?

Lula


É óbvio que Lula vai ser preso. Até pode haver razões legais sólidas para isso e, se as houver, que a justiça se faça. Não tenho conhecimento suficiente do processo para me pronunciar, num sentido ou noutro. Acho contudo infame o processo mediático-político que está hoje em curso no Brasil, pretendendo pressionar a justiça, tentando criar um ambiente na opinião pública para inviabilizar qualquer hipótese de uma outra decisão que não seja a prisão de Lula.

Diplomatas & Russos


Não tenho tempo para escrever muito. Só dá para estes “5 pontos”, como o Amadeu Lopes Sabino fazia na sua saudosa coluna no “Diário de Lisboa” (quem se lembra?):

1. O governo português esteve muito bem ao não fazer parte do grupo de países que anunciou ir expulsar diplomatas russos. Portugal teve atitude idêntica a 10 países da NATO e 13 da UE. As expulsões de diplomatas que estão no exercício de funções bilaterais fazem-se nos contextos bilaterais próprios, tanto mais que não se gerou uma posição conjugada no âmbito da UE, como a que, no passado e noutro contexto, levou à fixação de sanções comuns contra a Rússia.

2. Dito isto, é evidente que o regime de Putin não merece o menor benefício da dúvida, no tocante à plausibilidade de ter mandado cometer o crime. O modo como na Rússia são liquidados ou intimidados os adversários de Putin, naquele sistema que hoje é já um “genérico” de democracia, legitima fundadas suspeitas.

3. Acho patético como alguma esquerda lusitana (parte da qual nem sequer foi, no passado, pró-soviética) assume hoje a Rússia - autoritária, desrespeitadora do Direito Internacional, com escasso apreço pelas minorias e pelos Direitos Humanos - como o seu “campeão” na ordem internacional, apenas movida por um anti-americanismo primário. Tudo à Rússia é perdoado, Putin tem sempre “razão” - na Síria, na Geórgia, na Ucrânia.

4. Ora a Rússia, as vezes, tem de facto razão, como o teve na inaceitável provocação ocidental que levou à desestabilização da Ucrânia, como o tem quando reage às provocações insensatas da NATO nas suas fronteiras.

5. Pena é que essa razão seja titulada por uma figura política que faz da arrogância (também há por cá quem goste do estilo) e da jactância jingoísta a sua imagem de marca. Pode não se gostar de Trump sem ter de se gostar (mais) de Putin.

(Já adivinho os adeptos dos pontos 1 e 4 a não gostarem dos pontos 2, 3 e 5 - e vice-versa. Este é um triste mundo a-preto-e-branco, o das redes sociais, onde o iraniano Maniqueu é rei e senhor)

segunda-feira, março 26, 2018

Evocações


Não guardo papéis e, muito menos, comunicações oficiais. Tenho pena, no entanto, de não ter ficado com fotocópia de um determinado “telegrama” que enviei de Londres, ao tempo em que era “encarregado de negócios”, na ausência do embaixador. Mas ele estará nos arquivos da embaixada e do MNE.

O tema era Gibraltar e o eterno problema que o rochedo constitui para as relações do Reino Unido com a Espanha, que reivindica a posse do território. O governo de Londres instituiu, desde o final dos anos 60, um dispositivo legal que condiciona qualquer evolução do estatuto de Gibraltar à decisão maioritária dos gibraltinos. Como estes, à evidência, preferem manter-se sob a tutela britânica a fundirem-se com a Espanha, o impasse está garantido.

Num dia dos anos 90, o “chief minister” de Gilbraltar, o trabalhista Joe Bossano, foi notícia em Londres, por umas quaisquer declarações, fortemente anti-espanholas. Como a presidência portuguesa das instituições comunitárias de 1992 iria ter esse tema na sua agenda, decidi referir o incidente numa comunicação a Lisboa.

Nesse tempo, os “telegramas” seguiam por fax. Escrevendo nós o texto em computador, dentro de um modelo pré-arranjado, sabíamos exatamente o formato em que Lisboa iria ler os nossos textos e em que página exata ficaria cada linha que escrevêssemos. O meu telegrama tinha uma primeira página de texto e, depois, apenas umas escassas linhas na segunda página. Eu medira tudo ao milímetro e já verão porquê.

Na página principal, descrevi a questão que o “chief minister” de Gibraltar tinha suscitado. Depois, aproveitei para traçar um perfil do político gibraltino. Nas última parte dessa primeira página, devo ter escrito qualquer coisa como isto: “Joe Bossano é um populista, quase demagogo, de verbo fácil, de quem localmente é arriscado discordar. Detém um desmesurado poder sobre o serviço público de Gibraltar, com fama e proveito de ser praticamente o “dono” da região. Tem, além disso, uma palavra muitas vezes cáustica para os adversários, agressiva para a comunicação social que não lhe agrada e, quando lhe apraz, o seu discurso volta-se com facilidade contra o país de que a região depende, bem como contra os políticos da sua capital. Com este perfil, V. Exa. não estranhará, com certeza, que esta mercurial figura, autoritária, arrogante e de uma proverbial rudeza, nos convoque imediatamente à memória um outro líder político bem conhecido, de uma ilha dirigida, anos e anos, sob forte arbítrio pessoal, num estilo desafiador dos próprios equilíbrios democráticos”.

A primeira página terminava aqui. Um amigo, no Ministério, em Lisboa, disse-me, que sentiu um frémito pela espinha, no dia seguinte, ao ler este texto, e pensou para consigo: “Este tipo endoideceu! Fazer estas insinuações, com o governo PSD no poder, é suicida!” 

E lá foi, já em pânico, ler a segunda e última página do “telegrama”. Tinha poucas linhas e dizia qualquer coisa como isto: “Refiro-me naturalmente ao antigo líder de Malta, Don Mintoff, cujo estilo autoritário e o modo atribiliário de governo se constituiu num fator de tensão permanente, na gestão local e na agressividade constante perante Londres, que deu origem a crises recorrentes nas relações com os governos britânicos”. E fechava o texto com a minha assinatura. E o meu amigo logo reduziu a taquicardia que o tinha assaltado...

Dizem-me que o meu telegrama foi lido, com algum gozo, em vários setores do MNE. E não querem ver que, entre algumas pessoas, naturalmente com óbvia má fé, houve mesmo quem pensasse que, no que eu havia escrito na primeira página, podia haver alguma insinuação sobre a figura de um lider regional português?! Há imaginações delirantes!

domingo, março 25, 2018

Manuel Reis


Cruzei-me com Manuel Reis duas ou três vezes na vida, a última das quais, creio, há mais de uma década. Mas, embora conhecendo-o pessoalmente muito mal, acho da maior justiça destacar o papel decisivo que teve na modernidade de Lisboa. Sem Manuel Reis, uma certa Lisboa acabaria por acontecer na mesma, mas não era a mesma coisa.

Máxima


“Um jornal de véspera só serve para embrulhar peixe” 

(máxima do jornalismo, antes de surgir a ASAE)

“Expresso”


Vou, daqui a pouco, ler o “Expresso”, que ontem foi posto à venda, mas que só hoje adquiri. 

Leio o jornal desde o número 1, em 1973. Em alguns sábados da vida, andei dezenas de quilómetros para comprar o “Expresso”.

Que se passou? O que é que matou a urgência da leitura do “Expresso”? Por que será que tenho a (ainda) inconfessada sensação de que, se perdesse um número do jornal, isso não teria a menor importância? Fui eu quem mudou ou foi o jornal?

Em baixa

Ao ver o Alemanha-Espanha, ainda que “a feijões”, dou comigo a rever “em baixa” as expetativas, que já não eram muito elevadas, sobre as nossas hipóteses no próximo mundial de futebol na Rússia.

Catalunha

Não tenho a menor simpatia pela causa da independência catalã. Mas indo por este caminho, a Espanha vai acabar por criar um bando de mártires e, a prazo, vai pagar um preço caro. Um ato de amnistia daria força moral a Madrid, mas com o rei que não tem tudo tenderá a correr mal.

Prior Velho


Prior Velho não é, embora possa parecer, um sacerdote idoso. Trata-se de um arrabalde depois do Figo Maduro, próximo de Camarate, onde uma ideia peregrina, na noite do dia do Pai, com os restaurantes lisboetas a abarrotar, levou um grupo de que eu fazia parte a ir tentar jantar a um daqueles sítios “onde um amigo me disse que se comia magnificamente”. 

Um instantâneo olhar “impressionista” exterior sobre o local da possível amesendação foi suficiente para percebermos que era um restaurante “inível” (isto é, onde não se podia ir), pelo que regressámos à capital, ainda que correndo o risco de prolongar a fome coletiva.

(“For the record”, diga-se que acabámos numa improvável visita à Churrasqueira do Campo Grande, onde se comeu assim-assim, com um serviço caótico, do género empregado-para-dez-mesas, um modelo agora muito em voga e que satisfaz o bolso no patronato).

Lembrei-me desta frustrada incursão ao Prior Velho ao ver ontem nas televisões as imagens de um restaurante daquela localidade que acabava de ser invadido por um gangue de motards, que ali foi agredir um distinto grupo rival, numa cena de “far-west“ onde também entra um gangster da extrema-direita lusa, não fosse por ali o terreno de eleição (no duplo sentido) do vereador racista de Loures. 

Ficou-me, contudo, uma questão: com tanta e tão distinta frequência, seria afinal o restaurante que foi cenário da pancadaria um local do Prior Velho onde teríamos comido bem naquela noite, ou arriscávamo-nos a “comer” pela medida grande? 

Pelo sim pelo não, e talvez injustamente, não tenho o Prior Velho nas minhas prioridades de visitas gastronómicas próximas.

Portugal e colónias



Estou a ler um livro magnífico, uma obra que, em poucos dias, me ajudou a “juntar” algumas peças políticas que mantinha soltas, há vários anos. É um volume extenso, de mais de 800 páginas, mas é um “fresco” indispensável, e muito bem escrito, para entender um dos períodos mais importantes da história política portuguesa no século XX.

Recomendo vivamente, mesmo com entusiasmo, “Contra o Vento - Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, de Valentim Alexandre, um investigador que produziu já vasta e interessante obra sobre o sistema colonial português. Trata-se de uma edição do “Círculo de Leitores” e, estando longe de o ter terminado, dei por muito bem empregue o que paguei pelo livro.

sábado, março 24, 2018

Fraturas expostas


Tenho 5.000 amigos no Facebook, o limite máximo, não podendo entrar mais nenhum enquanto outros não saírem. Há sempre uma solução fácil para provocar a "abertura de vagas”: abordar, em tom radical, um tema fraturante ou divisivo. Há logo alguns que se zangam e saem porta fora. 

Sócrates e o Acordo Ortográfico são sempre, como temas, um "must". Trazer Salazar à baila dá também imenso jeito. Touradas e República/monarquia é dinheiro em caixa. Falar do Sporting, Benfica ou Porto, em tom sectário, traz muitos 'likes" (e "deslikes") garantidos. Há uns meses era a Catalunha, tema em que metade do país queria abrir trincheiras nas Ramblas, com a outra metade a querer, como titulou Rossif, "Mourir à Madrid". Por estes dias, a Catalunha é tão "sexy" como falar da chuva. Varoufakis já foi tema “fraturante”, quando eu gozava com aquelas camisas “à lavradeira”, a moto “à maneira”, a degustação com a “piquena” e vinho francês, com a Acrópole em fundo turístico. 

Só hoje, com o tema Camilo Mortágua, já tomaram a decisão de se “desarriscar" (como se dizia ao tempo da minha escola primária) lá no Facebook alguns "amigos", da minha valiosa quota conservadora, espécie de que por ali temo a extinção. Já fiz entrar quatro que estavam no "banco", tendo cuidado em que tivessem origem ideológica similar, senão a página fica sem graça e baixa o nível de insultos e de polémica para um "share" preocupante (tenho aprendido imenso sobre isto nas minhas funções na RTP). Não é fácil, a gestão disto, podem crer!

Ah! E nunca acreditem que algo se passa por acaso. Ou será que houve algum inocente que pensou que as ironias anti-esquerda no post sobre o neorealismo estavam desligadas, por contraponto, do tom do post Mortágua? ("Mas ele estará mesmo a falar a sério?"). Como dizia a outra senhora, nos títulos dos seus romances: "Sei lá!". É que "Não há coincidências"...

Toninho Drummond


Tinha 82 anos. Sabia-o doente. Acabam de me dizer que morreu. Quando cheguei a Brasília, em 2005, amigo que ele era de outros amigos meus, recebeu-me de braços abertos. Organizou então um jantar que juntou “meia Brasília”, tudo quanto contava na vida política da capital - desde um antigo presidente da República a ministros, de chefes de importantes órgãos federais a figuras do jornalismo, do empresariado e da advocacia. Numa noite, poupei meses na criação da rede de contactos que é essencial ao trabalho de qualquer embaixador. “Só não consegui trazer o Lula”, brincou então.

António Carlos Drummond, conhecido por toda a gente como Toninho Drummond, nasceu em Minas Gerais e era mineiro de alma e coração. Foi jornalista e, em Brasília, por décadas, foi o homem da Globo, reconhecido por ter ajudado a mudar radicalmente a face do jornalismo televisivo na capital federal. 

Era um homem encantador, uma figura cordialíssima, muito generosa, sempre com aquele sorriso bom, com histórias magníficas de um Brasil que passou por muitos e diversos tempos, de que foi testemunha e ator privilegiado. Guardo noites deliciosas a ouvi-lo, com o Tonico Portugal e o Pedro Borio, no jardim da nossa residência ou da sua belíssima casa junto ao lago. E recordo almoços que tivemos a dois no Piantella, o restaurante onde “tudo se passa” na capital brasileira, onde me apresentava àqueles que eu “também tinha de conhecer”, de deputados a “opinion makers”, refeições onde ele me “traduzia” a complexidade do emaranhado político local. Devo ao Toninho muito do razoável conhecimento de Brasília que consegui criar. Mais recentemente, no “gozo” das nossas mútuas reformas, juntávamo-nos em Cascais, na “multidão” selecionada dos excelentes amigos que por cá tinha.

Vou ter muitas saudades do meu amigo Toninho Drummond. Deixo um beijo de grande pesar à Palmira e a toda a família.

Mortágua


Joana Mortágua escreveu um post infeliz sobre o Cristo Rei. Podemos perceber que a estátua, e a sua simbologia, nada diga à deputada do Bloco de Esquerda. A mim também diz muito pouco, mas sinto-me na obrigação de respeitar quantos - e são muitos, sendo mesmo uma maioria, entre nós - alimentam crenças religiosas, as quais, goste Joana Mortágua ou não, são parte integrante e legítima do património de ideias deste país.

Em reação ao comentário, um menino conservador teceu graçolas no Facebook sobre o pai da deputada, Camilo Mortágua. Fê-lo utilizando o mesmo tipo de argumentário que a ditadura usava para desqualificar quantos lutaram contra ela, no mesmo registo que as folhas-de-couve do fascismo utilizavam para vilificar os lutadores pela liberdade. Lembro-me bem dos turiferários oficiais a espumarem raiva na única televisão, das “notas oficiosas” onde se falava do “denominado partido comunista” e misérias similares. Demos-lhes a resposta devida num certo dia de abril de 1974.

Camilo Mortágua, pai de Mariana Mortágua, foi e é - porque, felizmente, está vivo - um valente lutador contra a ditadura, participou no assalto ao navio mercante “Santa Maria”, no desvio do avião da TAP de Casablanca para Lisboa, no assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz, bem como em outras ações revolucionárias com as quais, como português e democrata, me sinto perfeitamente solidário e cuja execução lhe agradeço e louvo - e que isto fique aqui escrito, preto-no-branco, porque é preciso não ter medo de dizer as palavras justas.

Só a imprensa de uma ditadura que foi culpada por imensos mortos, por uma criminosa guerra colonial, por décadas de perseguições, torturas e prisões que arrasta no seu cadastro histórico, com a PIDE e a censura cobardemente a seu lado, teve o desplante de qualificar como crimes comuns alguns atos justamente praticados, como hoje está mais do que provado, para enfraquecer o regime que iria cair de podre e de ridículo perante a História no 25 de abril. E aproveito o ensejo para prestar uma homenagem a essa outra figura de homem de bem que se chamou Hermínio da Palma Inácio, diabolizado pelos caluniadores anti-democratas.

Alguma direita portuguesa, que nunca conseguiu fazer o exorcismo do Estado Novo, vive ainda uma orfandade envergonhada desses tempos, disfarçada na proclamação da “honestidade” de Salazar, nas acusações, canalhas e comprovadamente falsas, ao desvio das verbas do assalto na Figueira da Foz, numa equiparação miserável das ações da LUAR a delitos comuns - usando precisamente a mesma linguagem que a PIDE utilizava. Aqui pelo Facebook (como se verá em alguns comentários, de forma direta ou ínvia) há ainda muito quem se sinta solidário com a narrativa da António Maria Cardoso.

O meninote que impunenente ataca o nome honrado de Camilo Mortágua não tem culpa, foi provavelmente educado dessa forma. Seguramente que os pais não lhe ensinaram que foi graças a lutadores como Mortágua que hoje usufrui da liberdade que lhe permite escrever as patetices que escreveu. Ou talvez eu esteja enganado: se nada tivesse mudado, ele teria, com certeza, a hipótese de manter exatamente esse mesmo discurso, porque esse era o discurso da ditadura em que se sentiria bem.

Realismo socialista


Houve um tempo da vida em que, como muitos da minha geração e de outras antes, me deixei enternecer pela escola estética do “realismo socialista”, essa arte militante que nos pintava ora figuras prenhes de otimismo ensolarado, caminhando pelas sendas dos “amanhãs que cantam”, ora mostrando as vítimas dos algozes económicos e políticos, desenhadas nos tons sombrios das desigualdades. Na literatura, houve imensos romances maniqueístas, a-preto-e-branco ideológico, que adubaram, por décadas, o nosso imaginário revoltado. E houve imensa poesia, adjetivada de raiva, transbordando de “povo” e de revolução, declamável de peito feito, alimento rimado que nos conclamava a ajustar contas definitivas com o inimigo de classe, ao virar da esquina de uma História que (então) só tinha um sentido. 

Sobraram, é verdade, algumas (poucas) coisas bonitas desse tempo estético, mas outras (muitas) são hoje apenas uns monos que só a afetividade nos inibe de arquivar na prateleira medíocre do património do que, por cá, se chamou “neo-realismo” - porque, “no tempo da outra senhora”, designar isso por “realismo socialista” era insensata ousadia. Com os anos, confesso, passei a achar tanta graça à arte “política” como a alguma “música” militar...

Às vezes, pergunto-me se não teremos mesmo de atualizar a linguagem e se “realismo socialista”, numa “versão” moderna do conceito, não deve também significar, ironicamente, que temos de ser realistas quanto à “quantidade” de socialismo que afinal acabaremos por poder vir a ter...

sexta-feira, março 23, 2018

As soluções e os rótulos


Com assinalável elegância, o deputado europeu do CDS Nuno Melo expressou ontem neste espaço a sua discordância com o que entendeu ser a minha perspetiva “federalista” sobre o processo europeu. E reagiu à “farpa” que eu lhe tinha endereçado, por virtude da sua atitude perante as propostas do primeiro-ministro português.

O senhor deputado está enganado. Nem eu sou federalista, nem a dicotomia europeia essencial, nos dias que correm, opõe os chamados federalistas aos que defendem outras perspetivas sobre o modelo futuro da União. No Parlamento Europeu, uma câmara onde as caricaturas mimetizam o mundo real, alguns desses mitos permanecem de forma retórica. Mas é preciso assumir que há muito mais Europa fora desse areópago viajante entre Bruxelas e Estrasburgo.

A Europa verdadeira já não é assim. Só alguns idealistas acreditam ainda que será possível chegar a uns Estados Unidos da Europa. Só uns escassos dependentes dos esquemas teóricos do passado estão convencidos de que o processo europeu caminhará para o modelo federal, no formato que “vem nos livros”. Os saltos e sobressaltos por que esse processo passou, nas últimas duas décadas, mostraram que o pragmatismo, mesmo no plano do desenho das instituições, é hoje a verdadeira regra do jogo. 

Por muito que isso desagrade a alguns, constata-se que a Europa, por estes dias, se dedica a uma navegação à vista. Os governos que se sentam à mesa do Conselho dependem, a nível nacional, de maiorias muito diversas, têm uma força relativa muito desigual, para além de serem democraticamente obrigados a ter de representar agendas de interesses ou preocupações muito díspares e, não raramente, contraditórias entre si. 

Por isso, os “mandatos” desses governos, autorizando-os a poderem agregar-se na defesa de políticas ou de desenhos institucionais ousados, são quase sempre muito limitados, muitas vezes gerados “à beira do abismo”, em situações limite de sobrevivência do projeto. Mas, por vezes, os países são mesmo confrontados com a necessidade de fazerem essas opções, se quiserem que a Europa realmente vá funcionando, na defesa daquilo que os protege.

Dentro em breve, ao que tudo indica, Portugal pode vir a ter de decidir se quer ou não vir a associar-se à criação de estruturas cumulativas às que hoje enquadram a gestão da moeda única. Elas acarretarão, naturalmente, novas partilhas de soberania. Também os efeitos do Brexit podem vir a justificar modelos criativos de financiamento do orçamento da União, essenciais para a sustentação de políticas que são vitais para os nossos interesses. É isso um salto federal? Confesso que, nos tempos que correm, estou bem mais interessado na eficácia soluções do que no peso semântico dos rótulos.

quinta-feira, março 22, 2018

So long, Dick Haskins!


Se eu escrever que morreu António de Andrade Albuquerque, um cavalheiro de 88 respeitáveis anos, que hoje será enterrado, quase de certeza que isso deixará muita gente indiferente. No entanto, se alertar para o facto de ter desaparecido Dick Haskins, haverá, provavelmente, algumas pessoas que lamentarão que um prolífico escritor de romances policiais nos tenha deixado.

Dick Haskins era o nome literário de Andrade Albuquerque - tal como Ross Pynn foi o de Roussado Pinto ou Dennis McSchade o de um belo escritor que muitos conheciam como Dinis Machado, o autor do magnífico “O que diz Molero” (com a qualidade, um pouco menos notável, de ter sido meu vizinho). 

A literatura policial, por uma qualquer razão, prestou-se bastante ao uso de pseudónimos. Desde logo, a grande Agatha Christie (Mary Westmacott) e Ellery Queen (os primos Manfred Lee e Frederic Dannay). Mas, tendo eu vivido a minha adolescência “embrulhado” em romances policiais (cheguei a ganhar um concurso da revista “Tintin” nesse âmbito), aprendi que alguns dos meus escritores preferidos nesse género tinham nascido com nomes que, eventualmente, achavam vulgares, optando por isso por coisas mais sonantes como S. S. Van Dine ou Ed McBain.

Dick Haskins publicou 24 romances e foi editado em 30 países, o que o coloca no grupo restrito dos escritores portugueses com grande difusão internacional. Ainda no estrangeiro, foram feitos um filme e uma série televisiva baseados em romances seus. O seu primeiro livro foi publicado em 1958, na coleção Enigma, criada na saudosa Ática (onde li Pessoa pela primeira vez e que recordo ter uma pequena e simpática livraria na rua Alexandre Herculano, em Lisboa). Haskins passou também, com naturalidade e justiça, pela histórica “Coleção Vampiro”, que foi, entre nós, um mostruário ímpar da literatura policial internacional.

Deixei há muito o “vício” dos policiais, não sendo mesmo grande adepto desses que agora vêm “do frio”, dos autores nórdicos. Às vezes, numas férias ou em casa de amigos, acabo por pegar num velho “Vampiro” e, nessas alturas, lembro-me de mim noutros tempos a devorar os Simenon ou um belo Hammett. Mas perdi para sempre, já há décadas, o vício de espiolhar os policiais que iam saindo e que, em Vila Real, procurava quase sempre no Libório. Porquê no Libório, o menos simpático dos livreiros da cidade, numa loja esconsa incrustada nas traseiras da Capela Nova? Nunca me esclareci.

Homenageemos Dick Haskins. Como? Lendo-o. Eu vou fazer isso.

quarta-feira, março 21, 2018

Haja memória!


Foi há quinze anos. Sob um pretexto reconhecidamente falso, sem nenhum mandato internacional legitimador, os Estados Unidos decidiram provocar a queda do regime iraquiano. Era presidente George W. Bush, uma figura política que, nos dias de hoje, face ao que Trump representa, já quase passa por “estadista” aos olhos de alguns.

À carnificina e caos político provocados no país, os EUA somaram uma pilhagem organizada e despudorada dos seus recursos, de que deram algumas “migalhas” a quantos tiveram a desvergonha de os seguir ou apoiar nessa aventura.

Naquele que constituiu o momento mais lamentável da história da política externa portuguesa em democracia, o governo de então, com pretextos que oscilaram entre o patético e o obsceno, deu o seu aval à operação americana e protagonizou, nas Lajes, um momento vergonhoso de subserviência.

A invasão do Iraque, como é hoje unanimemente reconhecido, foi o rastilho que lançou uma imensa tragédia na região, que proporcionou o surgimento do Estado Islâmico e que sacrificou um número incontável de vidas, agravando fortemente a instabilidade no Médio Oriente.

Convém não esquecer! Nunca.

terça-feira, março 20, 2018

Dez anos


Sarkozy acaba de ser detido. Lula da Silva, a quem se imputam vários crimes, estará, ao que tudo indica, prestes a sê-lo. José Sócrates já o foi e enfrenta uma pesada acusação. 

Há uma década, Sarkozy era um líder central no processo europeu. Lula estava no auge da sua popularidade. José Sócrates liderava nas sondagens e tinha ainda o país aos seus pés.

Dez anos é muito tempo, cantava Paulo de Carvalho, com razão.

3ª Conferência de Lisboa


Nos dias 3 e 4 de maio, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, terá lugar a 3ª Conferência de Lisboa.

As Conferências de Lisboa, promovidas pelo Clube de Lisboa, realizam-se cada dois anos e têm como objetivo colocar a capital portuguesa e o país no centro dos grandes debates internacionais sobre as questões de desenvolvimento.

Algumas dezenas de especialistas, nacionais e estrangeiros, intervêm como convidados, nos dois dias de debates. 

O presidente da República, o ministro dos Negócios Estrangeiros, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa e, naturalmente, a presidente da instituição que nos acolhe, a Fundação Calouste Gulbenkian, estarão presentes em momentos da abertura e fecho da Conferência.

A conferência de 2018 tem como tema "Desenvolvimento em tempos de incerteza".

A incerteza é hoje a regra do jogo internacional. Com uma administração americana que faz da imprevisibilidade a sua imagem de marca, com uma Europa atravessada por dúvidas e receios, ainda sem instituições à altura dos seus desafios, com uma Rússia desafiadora dos equilíbrios do pós-Guerra Fria e uma China com uma inédita ambição global - estamos hoje perante um panorama de grande incerteza.

Além disso, a guerra prossegue no Médio Oriente, ameaça também no Nordeste Asiático e está apenas contida na fronteira russo-ucraniana. A paz nuclear está de novo em risco, a corrida aos armamento nunca foi tão grande, desde a Guerra Fria.

Na Conferência vamos discutir tudo isto. 

E vamos analisar os riscos dos extremismos, as ameaças terroristas, os desastres humanitários.

Vamos falar da Globalização e discutir o seu futuro, com o surto protecionista a ameaçá-la, com o questionamento dos tratados de livre comércio e as muitas ameaças que pairam sobre o multilateralismo.

Vamos falar da sustentabilidade, da transição energética, das alterações climáticas.

Vamos falar da pobreza, das ansiedades das classes médias, das migrações e dos receios de muitos perante aquilo que é diferente, facilitando a emergência de ondas populistas e xenófobas.

E, claro, vamos dar muita atenção à Europa, tentando perceber qual o seu papel no mundo diferente que aí vem e as linhas de força que podem dar um sopro de esperança ao seu projeto.

As incertezas que nos rodeiam, sendo preocupantes, tornam este debate muito rico e desafiante. 

Na qualidade de presidente das Conferências de Lisboa, deixo um convite para que se junte a nós nos dias 3 e 4 de maio, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa

Visite o site do Clube de Lisboa (clique aqui) e faça a sua inscrição. 

Gostávamos de contar consigo na 3a Conferencia de Lisboa.

O peso do tempo

Hoje, numa consulta de rotina, o médico especialista que visitei informou-me de que, de acordo com os seus ficheiros (que coincidem com a minha memória), eu havia recorrido aos seus serviços, pela primeira vez, em 1978. 40 anos! É obra! Até ver, médico e paciente encontram-se bem...

Na conversa, fez-me contudo notar que a minha condição física se tinha alterado significativamente desde então. Como sou hipocondríaco, quis tirar a limpo o que ele pretendia dizer com isso: “É simples! Tem mais dez quilos do que então tinha...”

segunda-feira, março 19, 2018

António Champalimaud


António Champalimaud foi uma figura muito importante no mundo empresarial português do século passado. Com fortes interesses nas colónias e em Portugal, construíu o seu próprio “império” industrial e financeiro, numa luta de afirmação que nem sempre foi cómoda para o regime de então. Quem o conheceu fala do seu mau feitio e de uma atitude permanentemente marcada por alguma aspereza comportamental. O 25 de abril viria a trocar-lhe as voltas, obrigando-o a recomeçar no Brasil a vida empresarial. Mais tarde, como sucedeu com outros grupos capitalistas nacionais, foi-lhe dada a possibilidade de retomar posições nos seus antigos interesses, na privatização de muito do que a Revolução tinha nacionalizado.

No final da vida, António Champalimaud surpreendeu Leonor Beleza, ao confiar-lhe a aplicação, numa fundação que agora leva o seu nome, de uma muito elevada quantia. Em relativamente poucos anos, com a ajuda de Daniel Proença de Carvalho, foi erguida uma obra notabilíssima, que hoje é um centro de referência na luta contra o cancro. Uma obra que orgulha e prestigia o país.

Se fosse vivo, António Champalimaud faria hoje 100 anos. Faz parte da História deste país e, com a sua Fundação, passou a fazer parte do nosso futuro coletivo.

domingo, março 18, 2018

Fechem as embaixadas!





“Não vale a pena tentar explicar, está criado na imprensa um ambiente adverso contra os diplomatas”, foi o que ouvi de antigos e atuais colegas, quando me propus escrever este texto, aproveitando a simpática abertura do CM, a propósito do artigo aqui publicado no passado dia 12, que tinha por título “Diplomatas ganham mais do que Marcelo”. Mas eu sou teimoso.

Desde logo, talvez nos devêssemos interrogar por que razão, se efetivamente há um “escândalo”, o Presidente da República e o Governo não atuam para lhe pôr cobro. Ou será porque, afinal, não há escândalo nenhum? Posso explicar, se o eventual leitor estiver de boa fé e disponível para ler para além dos títulos.

Comecemos por Portugal, embora essa não tenha sido a questão central do artigo do CM. Um diplomata português recebe, ao longo da sua carreira, um salário próximo de um qualquer outro técnico do Estado, embora a sua entrada na profissão o obrigue àquele que é, sem a menor dúvidas, o mais exigente concurso de toda a nossa Administração Pública. Aliás, acabam de ser recrutados novos diplomatas, depois de provas que se estenderam por quase um ano e para as quais se inscreveram 1800 candidatos. Entraram… 30! 

A carreira é longa e, nos casos escassíssimos dos diplomatas que conseguem atingir o seu topo, ao final de 40 anos, o máximo que podem conseguir vir a receber serão 4.362,00 euros ilíquidos - para valores de 5.011,00 para os militares, 5.401,00 para os professores universitários, 5.664,00 para os médicos e 6.130,00 para os magistrados. Se o leitor tiver uma explicação para estas disparidades, gostaria de conhecê-las.

Na situação de reforma, no seu regresso a Portugal, não conheço nenhum embaixador, mesmo no topo da sua carreira, que receba um montante líquido mensal que atinja os 3.000,00 euros. E alguns desses embaixadores de topo recebem bem menos. Imagino que os leitores não saibam. E que até não acreditem. Mas é pura verdade.

Mesmo assim, dirão alguns, não é mau. Repito: estou a falar dos lugares mais elevados da carreira, atingidos por muito poucos. Uma carreira que, no total, não chega a 400 pessoas, num Ministério que gasta bem menos de 1% do OGE. 

Talvez o leitor deva saber que, se acaso um diplomata for casado, o cônjuge terá tido, provavelmente, de abandonar o seu emprego para o poder acompanhar nas longas permanências no estrangeiro. O que significa que, quando a carreira do diplomata chegar ao fim, apenas levará para casa uma única reforma e o seu cônjuge ficará numa total dependência. Sabiam que isto acontece muitas vezes? Tem já havido situações dramáticas de viúvas de diplomatas, vivendo em condições de grande dificuldade.

Mas falemos do estrangeiro, onde os montantes recebidos levantaram o tal “escândalo”. 

Começaria por lembrar que, quando é colocado no estrangeiro, o diplomata não deixa de ter necessidade de manter uma casa em Lisboa. E de a continuar a pagar ao banco. Depois, no posto onde for colocado, salvo se for embaixador, vai ter que alugar uma nova casa, aos preços de arrendamento locais, num mercado para expatriados geralmente bastante caro. Recebe, naturalmente, um abono específico de ajuda para tal fim. Os embaixadores, claro, não recebem esse abono.

O diplomata representa o seu país. No estrangeiro, tem obrigatoriamente de convidar pessoas, para casa ou para restaurantes - colegas de outras embaixadas, figuras locais, portugueses de passagem. Tem de fazer aquilo a que se chama “representação”, essencial para a sua atividade, e, por lei, deve explicar detalhadamente como e por que gastou um montante que, para esse fim, lhe foi destinado. 

Finalmente, se tiver filhos, tem de os colocar em escolas internacionais, mais caras que as restantes, por forma a permitir que, nas sucessivas transferências, haja a possibilidade de prosseguimento dos estudos. O Estado comparticipa naturalmente alguma coisa para esta despesa obrigatória e excecional.

O tal montante “escandaloso” atribuído ao diplomata é, assim, o somatório de tudo isso: do seu salário de base, do subsídio para aluguer de casa (que raramente cobre a totalidade da renda), do montante para representação social (repito, que tem de justificar caso-a-caso) e da ajuda às despesas de educação dos filhos (também parcial face às despesas). 

Se o leitor, o leitor de boa fé, chegou a esta parte do texto merece também que lhe seja explicado que esta é uma carreira que implica sucessivas mudanças de país, às vezes vivendo em cidades simpáticas, outras vezes em lugares insalubres e perigosos, por razões de saúde ou insegurança. Não existe, na Administração Pública portuguesa nenhuma profissão que obrigue a tão drásticas mudanças de vida, de climas, de continentes, a tão grande instabilidade das famílias, todos os quatro ou cinco anos. 

É talvez por saber muito bem tudo isto que o “Marcelo”, referido no título “Diplomatas ganham mais do que Marcelo”, não se cansa de elogiar fortemente o trabalho desta carreira de servidores do Estado, como também o fazem muitos empresários e portugueses espalhados pelo mundo. 

Então, leitor? Fecham-se as embaixadas?

(Texto publicado no “Correio da Manhã”)

Aos domingos


Lembrei-me ao passar por lá, há pouco. Exatamente no local onde fui agredido, por uma primeira e única vez, pela polícia da ditadura (sou um “antifascista” sem história de repressão: foi uma simples bastonada num ombro, que nem uma “negra” deixou), no funeral de Ribeiro Santos, nasceu agora um “Subway”. É no largo com o nome desse estudante, assassinado por um “pide”, em 1972, aqui em Lisboa.

Mas o que é que isso tem de notável? É porque estamos na madrugada de domingo e, em todas essas madrugadas de sábado tardio e domingo a despontar, em Londres, no início dos anos 90, aí pela uma da manhã, eu saía de casa e ia invariavelmente a uma loja da “Subway”, perto da estação de metro de Gloucester Road. Comprava uma braçada de todos os semanários (já) de domingo, acabadinhos de chegar para venda: “Sunday Times”, “Independent on Sunday”, “Observer” e “Sunday Telegraph”. E, sempre, uma bela baguette de pão francês, crocante, acabada de sair do forno. O indiano de turbante que me vendia tudo aquilo olhava-me com um sorriso divertido, estranhando os meus gostos (cumulativos) de imprensa.

Regressava deliciado a casa, sacava do frigorífico uma cerveja, e ali ficava eu “na engorda”, com uma pilha de quilos de jornais, a ouvir música e a ler pela noite dentro, no andar de baixo da minha casa em Elvaston Place. Tenho uma memória boa das noites desses dias.

A imprensa dominical britânica era muito interessante, viva, com “caixas” e extraordinários comentários, numa bela escrita. A vida política local era então movimentadíssima, com Thatcher em declínio, Heseltine e Major à espreita, o “Labour” de Kinnock e depois de John Smith a tentarem a sua sorte no pós “block vote”, que só viria a sorrir anos mais tarde a Tony Blair, acomodado que foi Gordon Brown, com o liberais-democratas de Paddy Ashdown no seu eterno caminho das pedras. E havia o Iraque, e a Bósnia em chamas, e o IRA, com Adams e McGuiness por detrás, a pôr bombas, e a Escócia a pedir ”devolution” e Joe Bossano a berrar em Gibraltar. E a “bloody” Europa, com o odiado Delors, a guerra dos “opt out”. Uma festa! 

Passado o tempo do “respeitinho” a Buckingham, a contenção informativa foi-se diluindo e a imprensa - particularmente a de domingo - “soltou-se” face à família real, começou a tratar das escapadas de Diana, das gaffes de Fergie e, finalmente, dos amores de Charles e Camilla. Foi muito curioso ver essa mesma imprensa hebdomadária - a que correspondiam, respetivamente, na ordem atrás mencionada, nos dias normais de semana, o “The Times”, o “The Independent”, o “The Guardian” e o “The Daily Telegraph” - começar a posicionar-se, no estilo e na ousadia jornalística, já um pouco entre os tablóides e o estilo mais sóbrio dos “jornais-mãe”. Muito iria mudar, nos anos seguintes, nesse mundo em crise dos jornais de papel.

O nosso “Subway” de Santos nem deve ter o “Expresso”, ou mesmo o clandestino “O Sol”. Mas, verdade seja, a julgar pelas sondagens, com isto por cá está transformado numa pasmaceira política, só animada pelo inacreditável grupo de que Rui Rio se rodeou, para que é que são precisos jornais?

sábado, março 17, 2018

Ó vizinha!



Há um belo e muito lisboeta hábito que é chamar ao vizinho ... “vizinho”! Esta prática era e é muito comum nos bairros populares, mas aquele onde eu vivo tem pouco dessa qualidade. Com escassas embora magníficas exceções, a gente que vive nas minhas vizinhanças é, em geral, distante, não se cumprimenta entre si e tem um limitado sentido de solidariedade gregária. Pelo contrário, noto que algumas dessas pessoas, à medida que o tempo lhes foi entrando na vida, se tornaram mais azedas, mais trombudas e visivelmente menos amáveis. Que se há-de fazer?!

Imediatamente ao lado da porta de uma garagem, há um espaço que, nas mais de duas décadas em que por aqui vivo, foi sempre um lugar de estacionamento. Quem quer que ali coloque um carro, não prejudica nunca ninguém. Quando a EMEL, há meses, marcou a zona, esse espaço adquiriu o estatuto de zona “cinzenta”. Seria usável? As pessoas continuaram a colocar lá os carros, sem o memor problema, naturalmente desde que pagassem o estacionamento ou tivessem selo de residente. Já nos bastava a EMEL e um parque diplomático nos terem privado de uma boa dúzia de lugares...

Há semanas, de repente, mas só para mim, as coisas mudaram. Coloquei lá um carro e ele foi bloqueado e rebocado. Paguei a multa. Nos dias seguintes, vi que toda a gente voltou a ali estacionar. Pensei que tivesse sido um infeliz acaso. Por lapso, o meu carro voltou a estar lá umas horas e... surgiu de novo bloqueado. Chamei a EMEL e paguei nova multa.

Na conversa com o homem da EMEL, ficámos a saber: trata-se uma vizinha que telefonou e se queixou de que aquele espaço não é para estacionamento. Terá descoberto isso agora, depois de décadas. O funcionário da EMEL, que reconhece a absoluta inoquidade do uso do lugar, terá interrogado por que razão só se queixava da presença do meu carro, dado que nunca isso acontece aos muitos outros que por lá param. A mulher não o esclareceu sobre esta sanha persecutória, personalizada em mim. O homem da EMEL comentou-nos: “será alguma coisa política?” 

Nã sei, nem quero saber, nem sequer quero conhecer a cara da ácida mulher que, pelos vistos, me “tomou de ponta”. Até para não ter de lhe chamar outras coisas, para além de “vizinha”...

Como as cerejas...


O “Betanzos”, nome de uma simpática vilória da Galiza, é também o nome de um barco que esteve encalhado até há dias junto ao Bugio lisboeta. Agora, resgatado do problema, regressa à sua viagem para Marrocos, com a sua carga de ... areia! Areia para Marrocos? É verdade! É assim a modos como mandar migas para Elvas...

A areia a viajar entre países faz parte de uma das historietas que sempre ouvi na minha família. 

Era o episódio sobre um fulano que, todas as manhãs, se apresentava numa fronteira, de bicicleta, com um saco de areia às costas. Os guardas fronteiriços faziam sempre uma vistoria muito cuidada ao saco, na expetativa de aí encontrarem algum produto de contrabando. Mas nada! Sempre e só areia. E, ao final do dia, lá regressava o tipo, sem o saco, com a cena a repetir-se no dia seguinte.

Terão sido anos a fio nesta saga. Até que, um dia, um dos guardas fronteiriços se reformou e decidiu tentar pôr fim ao mistério que, por tanto tempo, o assaltava. Falou com o misterioso transportador de areia e, garantindo-lhe segredo absoluto, perguntou-lhe o que é que aquilo significava, por que diabo levava ele, dia após dia, um saco de areia para o outro lado da fronteira.

O homem, garantido no seu segredo, explicou. E era muito simples. O saco de areia servia apenas para distrair as atenções. Ele contrabandeava, na realidade, bicicletas. Levava de manhã uma bicicleta velha, que já nada valia, e trazia, à noite, do outro país, uma bicicleta nova, “em folha”, que vendia com grande lucro.

Isto (não) veio a propósito da areia do Betanzos. Porquê? Sei lá! Isto é como as cerejas...

sexta-feira, março 16, 2018

"Um Português brasileiro"

Faria hoje 100 anos Valentim dos Santos Diniz, um cidadão português a quem, em 2009, dediquei, no Brasil, um artigo, sob o título em epígrafe, no "Mundo Português" onde refleti um pouco sobre a comunidade luso-brasileira. Aqui o deixo reproduzido, pro memoria:

"Com a morte de Valentim dos Santos Diniz como que se atenua um pouco a imagem daquilo que Portugal representou para a formação do Brasil, de tudo quanto a matriz lusa contribuiu para marcar a identidade deste país.

Nestes tempos em que dom João e a sua corte por aqui são revisitados com curiosidade, o desaparecimento de um dos últimos grandes patriarcas portugueses no Brasil é talvez um momento adequado para reflectirmos um pouco sobre o que Portugal aqui ainda representa, para além da retórica das caravelas que pontua os discursos nas solenidades.

Passou já algum tempo desde o período áureo em que a comunidade portuguesa tinha uma forte expressão no Brasil – económica, social e até política.

Em particular no Rio de Janeiro e em S. Paulo, personalidades e instituições cuidaram sempre em manter bem alto o orgulho de terem feito parte de gerações que aqui construíram o seu futuro e que, simultaneamente, aqui construíram o seu próprio país.

Com a mudança dos fluxos migratórios portugueses para o espaço europeu, no final dos anos 60, o Brasil deixou de ser o destino prioritário de quantos, em Portugal, recusavam a modorra de uma sociedade fechada e partiam à busca de melhor sorte.

A teimosa ilusão colonial do Estado Novo fez mesmo com que fosse estimulada a migração para a África, que viria a provar-se muitas vezes sem futuro. Foi um erro que alguns pagariam em meados da década seguinte, tendo de sair à pressa de sociedades em convulsão política e social. O Brasil voltou então a ser, para muitos, o porto de abrigo seguro, como o foi para quantos então se sentiram ameaçados pela Revolução dos Cravos.

Essa era já, porém, uma imigração algo diferente da que, durante décadas, ajudara a construir a sociedade brasileira, lado a lado com outras nacionalidades que geraram o “melting pot” da brasilidade contemporânea.

Durante muitas décadas, das aldeias do Portugal profundo, partiram muitos jovens simples à procura do direito à esperança. Os “Brasis”, como a memória portuguesa celebra as Pasárgas de muitas dessas gerações, eram a terra prometida onde tudo era possível, para quem quisesse, com trabalho árduo, deitar a mão ao destino.

Para além da caricatura que o marcou, que sempre por aqui foi uma espécie de humor amargo que o descendente do colonizador originário teve de suportar com esforçada bonomia, creio patente que o imigrante português criou no Brasil uma imagem geral de labor e seriedade, de uma forma de estar na vida que caracteriza aquilo que se viria a decantar como o conceito de pessoa de bem.

Valentim dos Santos Diniz é um bom expoente dessa métrica pela qual se medem os homens de carácter. Empenhado, trabalhador e com uma seriedade à prova de bala, construiu um império de negócio, empregou milhares, ganhou e deu a ganhar dinheiro, foi um notável exemplo de sucesso com seriedade. Foi brasileiro na obra que erigiu, sendo sempre português na alma que estava por detrás desse empreendimento, na saudade da sua Beira natal e na sua crença num certo Portugal.

Encontrei-o algumas vezes, desde que cheguei ao Brasil. Pude expressar-lhe a minha admiração por tudo quanto ele representava para a memória da presença portuguesa neste país. Recordo-me de lhe ter dito que, como embaixador de Portugal, só esperava que os nossos compatriotas que agora iam aportando ao Brasil, com outras motivações e expectativas de vida, pudessem continuar a ser dignos da imagem de seriedade e respeito que os anteriores imigrantes portugueses haviam sabido construir e fixar por aqui.

Valentim dos Santos Diniz foi a prova mais concreta de que a melhor maneira de ser um bom português no Brasil é assumir este país em pleno, é ser e afirmar-se como um leal cidadão brasileiro."

A novela americana


Não se pode dizer que a demissão do chefe da diplomacia dos EUA, Rex Tillerson, tenha constituído uma grande surpresa. Escolhido por ser um nome forte da indústria e uma boa “ponte” para a Rússia de Putin, sabia-se que o antigo CEO da Exxon nunca havia criado com o presidente Trump uma relação de confiança. Tillerson, que era hierarquicamente o primeiro dos membros do gabinete ministerial, constituía um peso demasiado independente para um presidente que gosta de funcionar rodeado de “yes-men”, que detesta quem ponha reticências ao simplismo das suas ideias e à espontaneidade irresponsável dos seus “tweets”. Trump necessitou dele para credibilizar inicialmente a sua equipa, mas sente-se agora suficientemente à vontade para o dispensar.

Ao longo deste tumultuoso ano, várias foram as vezes em que transpiraram diferenças entre os dois homens. Trump ter-se-á cansado de alguém com quem não tinha a menor intimidade, que discordava abertamente de algumas das suas posições em temas internacionais e que, de forma clara, mantinha com ele alguma procurada distância. O facto de Tillerson nunca ter negado que chamou “imbecil” ao presidente num contexto privado, também não deve ter ajudado...

Tillerson saiu, entra Mike Pompeo, até agora diretor da CIA e conhecido membro do Tea Party, ala radical dentro do Partido Republicano. Alguém que tem um historial de ideias confrontacionistas, que se afigura menos adequado a quem vai ter por missão dialogar pelo mundo em nome da América. Mas este é talvez o perfil que, nesta fase, Trump deseja ao seu lado.

Nos meios internacionais, estava criada, ao longo dos últimos meses, a convicção de que, à volta de Trump, independentemente da ciclotímica estrutura, dia-a-dia mutante, da Casa Branca, permaneciam quatro personalidades que funcionavam como uma espécie de “rede de segurança”, compensatória da imprevisibilidade do presidente. E o mundo respirava de alívio por assim ser.

Uma dessas figuras era claramente Tillerson, sendo as restantes militares: o secretário de Defesa, James Mattis, o chefe da Casa Civil, John Kelly, e o assessor para a Segurança Nacional, H. R. M Master. Crescem agora rumores sobre uma possível saída de McMaster, cujos conselhos parece irritarem Trump, falando-se para o substituir do nome do “falcão” John Bolton, antigo e controverso embaixador na ONU, na era George W. Bush. E, no tocante a Kelly, diz-se haver um crescente desagrado por parte de Trump - em especial depois daquele ter decidido retirar a acreditação de segurança ao seu genro. Só Mattis parece de pedra e cal, o que não deixará de ter a ver com o interesse de Trump de manter o melhor relacionamento possível com o setor militar – o único que ele parece respeitar, em particular se olharmos o que fez ao “State Department”, ao FBI e à própria CIA.

Esta coreografia de caras teria muito escassa importância, e seria reduzida a uma curiosidade  à escala americana, se dela não pudessem resultar consequências muito sérias para o mundo exterior. Há dossiês temáticos, como as “guerras” da política comercial ou a atitude face às alterações climáticas que impactam, de imediato, nos interesses dos amigos da América. Há temas vitais para a segurança global, como a articulação com a China ou o formato de relacionamento com a Rússia, bem como a forma de gerir a tensão com a Coreia do Norte ou a atitude perante o acordo nuclear com o Irão, que têm um potencial fortemente disruptor dos equilíbrios internacionais. 

Neste último caso, que Trump deixou já a entender ter sido uma divergência profunda mantida com Tillerson, há que temer que os EUA possam estar prestes a pôr em causa o compromisso laboriosamente conseguido com Teerão, com o apoio dos seus parceiros europeus. Mais do que isso: Trump pode vir a dar, por essa via, luz verde a que Israel faça um “preemptive strike” sobre as instalações nucleares iranianas, hoje sob vigilância da AIEA e, conjugadamente ou não, estimule a Arábia Saudita para titular uma aventura militar sunita contra esse seu comum inimigo. Imagina-se o que poderá ser o “day after” desse conflito.

O mundo está perigoso e o perigo tem um nome.

Regresso à Europa


O discurso que António Costa proferiu em Estrasburgo, somado ao de setembro, em Bruges, representa um momento importante na afirmação europeia de Portugal. O primeiro-ministro de um governo cuja sustentação parlamentar passa pelo apoio de dois partidos anti-europeístas deu uma prova insofismável da sua determinação em colocar de novo Portugal no coração da política europeia. E deixou claro que, não obstante essa aliança conjuntural no plano interno, não prescinde de ter as mãos livres para atuar com imaginação e audácia no quadro europeu. E isso são muito boas notícias para Portugal.

Há que reconhecer patéticas as vozes da oposição neste debate. O CDS europeu está hoje refém, e assim vai continuar, do radicalismo de Nuno Melo, com aquele estudado ar zangado, em busca dos adjetivos mais desagradáveis que consiga descortinar, no seu baralho de acrimónia lexical. Ao seu lado, Paulo Rangel, um homem que, quando quer, pensa bem e tem, a espaços, fogachos europeístas, parece ter já iniciado um percurso tático para a sua recandidatura a cabeça da lista PSD ao Parlamento europeu, o que o obriga a esforços artificiais de demarcação do governo. É em figuras como Carlos Moedas, no seu modo clarividente de olhar o projeto europeu, que hoje assentam as esperanças nessa área política. Rui Rio, se quiser retomar o caminho de um PSD europeísta, não deveria desprezar os conselhos do comissário europeu indicado por Portugal.

Portugal regressou à Europa. Depois de alguns anos de “silêncio” europeu, António Costa tem sabido colocar a voz portuguesa no lugar certo, em Bruxelas e em Estrasburgo. Ao reconhecimento do esforço macro-económico feito por Portugal, surpreendendo pela sua compatibilização com as reposições de rendimentos, somou-se a consagração de Mário Centeno na coordenação do euro. Para quem pensava que o primeiro-ministro português era apenas um pragmático à cata do vento dominante, o seu discurso revelou uma visão ousada dos interesses europeus – das exigências na governação do euro ao imperativo de novos recursos, passando por um conjunto coerente de opções sobre o futuro de certas políticas e sobre a necessidade de uma Europa “ética”.

O nosso país sempre ganhou quando, na Europa, defendeu perspetivas de aprofundamento e de reforço da integração. E quando colocou as suas credenciais europeias sobre a mesa, como António Guterres soube fazer, como António Costa agora fez, por exemplo, ao afirmar que Portugal estava disposto a aumentar a sua contribuição para o orçamento comunitário. 

O primeiro-ministro está, neste domínio, acompanhado, com toda a certeza, pelo presidente da República. Não sendo possível contar com o PCP e com o Bloco, com o radicalismo soberanista do CDS a fechar a porta a qualquer compromisso, que tem a dizer o novo PSD a tudo isto?

quinta-feira, março 15, 2018

Ai Brasil!


As estranhas condições em que teve lugar a morte da vereadora do Rio de Janeiro, atentas as tarefas de contestação da presença militar na cidade a que se dedicava, suscitam sérias interrogações.

O Brasil é uma das maiores democracias do mundo. A imprensa é absolutamente livre, não há presos políticos, os órgãos constitucionais funcionam. Há quem conteste o modo de funcionamento do sistema político e judicial? Claro que sim, mas quem o faz fá-lo sempre com total liberdade. É isso uma democracia.

Por isso, porque a democracia brasileira tem de estar acima de toda a suspeita, e antes que renasçam por ali velhos fantasmas, é muito importante para o bom nome do Brasil que este assunto seja esclarecido com a maior brevidade.

Autónoma


Nos últimos dias tem-se falado por aí da Universidade Autónoma de Lisboa. Prolonguemos essa fala.

Durante quase dez meses, em 2017/2018, o Ministério dos Negócios Estrangeiros organizou um concurso para admissão de 30 novos diplomatas. Inscreveram-se inicialmente para esse concurso 1800 candidatos.

A Universidade Autónoma de Lisboa organizou um curso intensivo de preparação para esse concurso, a exemplo do que outras universidades também fizeram. Coube-me dirigi-lo, com a colaboração de um grupo selecionado de professores, que cobriam todo o espetro de matérias das diversas provas: de Português a Inglês e Francês, de Economia Política a Direito Internacional, de assuntos europeus a temas de segurança, etc. 

Cerca de 20 candidatos escolheram o curso ministrado pela Autónoma. E, desse número, foram admitidos três. Isto é: 10% dos candidatos admitidos pelo MNE foram preparados por nós. Como já no anterior concurso, há dois anos, havíamos tido o gosto de ajudar aquele que viria a ser então o primeiro classificado.

É muito bom ouvir boas notícias sobre a minha Universidade. Onde ainda hoje irei dar aulas de Diplomacia e Negociação Internacional, na excelente licenciatura de Relações Internacionais.

quarta-feira, março 14, 2018

Dietas

Aquele núncio apostólico, o embaixador da Santa Sé num determinado país, apesar de um comportamento irrepreensível, mantinha uma imagem exterior de “bon vivant”, que não se importava de deixar explorar. 

Um dia, entrou numa receção acompanhado por duas belas mulheres, uma de cada lado. Os amigos não tardaram em mandar-lhe umas “bocas”, conhecedores que eram do seu poder de encaixe. 

E ele revelou-se, com esta resposta: “O facto de ter de fazer dieta não impede ninguém, num restaurante, de poder ler e apreciar o menu”...

terça-feira, março 13, 2018

O papel do DN

Por razões que não vêm à liça, não vou aqui falar, como me apetecia, do papel que o “Diário de Notícias” representa, nos dias de hoje, no panorama mediático português.

Mas, como habitual ”consumidor” (pode dizer-se isto?) do jornal, acho que tenho o direito a perguntar: o papel em que o DN anda a ser impresso, nos dias que correm, é o quê? 

A gente pega naquilo, naquelas folhas já a caminhar para o leve cinza, com a consistência dos apertos de mão sebosos e sem garra, e pergunta-se: não há um papel decente onde imprimir o “diário da Moagem” (como lhe chamava Artur Portela Filho)? Não estou a pedir folhas de gramagem quase “almaço”, daquelas em que o fascistóide “A Rua” era impresso nos anos ”da brasa”, mas um papel consistente, que adira ao tato, em que o mudar a folha não nos dê a ideia de estar a enrolar um charro.

Eu sei que o “Le Monde” hebdomadário também nos chega naquele género desvirilizado de folhas, uma versão mixuruca e subdesenvolvida de papel bíblia, mas isso é para poder ser enviado pelo correio, um sistema de distribuição que, como alguns se recordarão, foi também utilizado em Portugal - quando por cá havia Correios! E ninguém hoje confia nos “nossos” Correios, nem para cartões de boas-festas, quanto mais para enviar o DN do dia! 

E o DN não é o “Le Monde”! Mudem-me esse papel, antes que todos nos tenhamos que perguntar qual é, afinal, o papel do DN na imprensa que aí anda.

A noite arménia



“Pede uma mesa no andar de cima, junto à janela. Já não está tempo para se jantar na esplanada”, foi o conselho que dei, pelo telefone, de Lisboa. 

Aquele meu colega chegaria a Yerevan, na Arménia, ido de uma bela cidade europeia, um dia antes de mim. Eu iria daqui. Foi há cinco anos. Ao tempo, eu era diretor-executivo do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. Ambos intervínhamos numa determinada Conferência internacional. Combinámos jantar juntos no dia da minha chegada. Eu tinha-lhe recomendado um restaurante local.

“Como é que se pode saber, de fonte segura, onde jantar decentemente, lá em Yerevan? Se perguntarmos no hotel dizem-nos uma espelunca qualquer", tinha-se ele questionado.

“Onde se come quase sempre bem é no Ai Leoni. E não fica muito longe do nosso hotel”, respondi.

“Mas tu conheces Yerevan?”, surpreendeu-se ele.

“Conheço lá eu outra coisa! Marca uma mesa no Ai Leoni e vais ver que não te arrependes. O Bruno cozinha lindamente!"

O meu colega tomou nota e, com lógica, levou a minha sabedoria da restauração arménia à conta da minha consabida "mania" dos restaurantes e também dos tempos que eu tinha passado na OSCE - essa organização de segurança sedeada em Viena, cuja representação portuguesa eu tinha chefiado por alguns anos, e que tinha as confusões do Cáucaso, em particular a velha crise entre a Arménia e o Azerbaijão, por virtude do território do Nagorno-Karabakh, na sua agenda prioritária de interesses.

Dias depois, após umas viagens atribuladas, cada um ido do seu lado, lá nos encontrámos no hotel de Yerevan. E, perto do jantar, partimos, com um amigo francês comum, para o “Ai Leoni”, onde a nossa mesa estava devidamente reservada.

Não era muito longe, aí uns dez minutos a pé. Fui indicando o trajeto. “Conheces bem isto”, comentavam, à medida que eu apontava a direção do restaurante, pelas ruas da capital arménia. Eu servia de cicerone, até para as estátuas que íamos cruzando.

Entrámos finalmente no restaurante, a nossa mesa lá estava, chegaram os menus. O nosso amigo comum, francês, pediu conselho: “O que é que recomendas?” Desfiz então o embuste: “Eu? Sei lá! É a primeira vez que venho à Arménia!” 

E, entre gargalhadas, expliquei. Tinha descoberto o restaurante num guia que comprara em Londres. Depois, na internet, vi as fotografias do lugar, bem como o nome do “chef”. Com o mapa da cidade, identifiquei (e decorei) facilmente o trajeto, "apimentando" a história com uns monumentos que também vinham assinalados no guia. 

Contei-lhes então a história de um jornalista americano que tinha escrito um guia sobre um país da América Central, sem nunca lá ter posto os pés. Nos dias de hoje, tudo é possível!

segunda-feira, março 12, 2018


Gastronomia & escritas



Foi em 2010 que a revista “Sábado” me desafiou, através de Edgardo Pacheco, para escrevinhar um conjunto de textos de análise da oferta gastronómica em alguns restaurantes portugueses. Fazia-o sob pseudónimo, tal como o haviam feito, cada um durante um semestre, outros companheiros daquela “aventura”: Daniel Proença de Carvalho, Paula Teixeira da Cruz, Miguel Esteves Cardoso e Ruben de Carvalho. A tarefa ficou concluída no ano seguinte, precisamente como ficara acordado desde o primeiro dia.

Anos mais tarde, regressado de vez a Portugal, a revista “Epicur”, na sua nova versão, publicada quatro vezes por ano, desafiou-me para uma aventura idêntica, através de Mário Rui de Castro.

Também a revista “Evasões”, dirigida por Catarina Carvalho, publicada semanalmente com o “Diário de Notícias” e o “Jornal de Notícias”, me fez idêntico convite.

Nos três casos que referi, as crónicas eram pagas, bem como o custeio de uma refeição para duas pessoas. 

Nenhuma das publicações - e isto é pura verdade - me deu alguma vez a menor dica sobre restaurantes que desejassem que eu escrutinasse. Todas as escolhas foram sempre minhas, com completa liberdade.

Como referi, o meu trabalho para a “Sábado” acabou em 2011. Chegou agora a hora de pôr um ponto final nas outras duas colaborações que mantinha. 

Embora não fosse uma atividade muito intensa, escrever sobre 16 restaurantes diferentes em cada ano, procurando ser rigoroso e justo nas apreciações, constituía já uma tarefa algo pesada. Tivémos assim dois “divórcios amigáveis”, porque com bons amigos fiquei sempre em todas as revistas com as quais colaborei.

Aqui entre nós, devo dizer que sinto uma sensação de recuperação de alguma “liberdade”. Já não vou precisar de fotografar com o iPhone os menus dos restaurantes, pedir à pessoa que partilha a refeição comigo para pedir coisas diferentes das minhas, estar atento e anotar os pormenores do ambiente e do serviço, escrevinhar umas notas para não me esquecer do que pensei de certos pratos. Isto é, vou comer com total à vontade, sem a obrigação de escrita no “day after”. (E também, é verdade, sem me pagarem as refeições e os escritos - mas a liberdade tem o seu preço!)

Significa isto que vou deixar de mandar “dicas” sobre restaurantes? Longe disso! O meu blogue “Ponto Come”, esse lugar errático onde, há bem mais de uma década, tenho deixado notas sobre esta coisa importante que é saber onde se pode comer com satisfação, por aí continuará. Não terá a regularidade do “Duas ou Três Coisas”, mas posso assegurar que continuará a ser “alimentado” - destino natural de um blogue de gastronomia..

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...