Gerhard Schröder é, nos dias que correm, uma das figuras mais controversas da Alemanha. Administrador da Nord Stream AG, da Rosneft e da Gazprom, é visto como um “homem de Putin”, o que, no atual contexto, é, porventura, a “recomendação” menos recomendável.
Schröder foi líder dos social-democratas alemães e primeiro-ministro entre 1998 e 2005, numa coligação entre o SPD e os Verdes, então dirigidos por Joschka Fischer, que derrotou a CDU de Helmuth Köhl.
Na memória económica europeia mais liberal, Schröder é creditado como tendo sido responsável pela introdução de importantes reformas, que, para muitos, terão contribuído para um ciclo de prosperidade económica do seu país. Para a esquerda dos social-democratas alemães, porém, o tempo de Schröder é visto como o de uma forte descaraterização ideológica do SPD, um pouco ao jeito daquilo que Tony Blair fez com o “Labour” britânico.
As eleições legislativas de setembro de 1998 deram a maioria absoluta à coligação SPD-Verdes. O novo governo tomou posse em outubro e Schröder, como novo primeiro-ministro, veio a Lisboa, logo no início de novembro, visitar o seu homólogo, António Guterres, num périplo por todos os parceiros.
O principal dossiê europeu de Portugal era, à época, a negociação da programação financeira plurianual da União, a chamada “Agenda 2000”, que deveria passar a vigorar entre 2000 e 2006.
Desde há meses que me competia andar num incessante “shuttle” pelos vários Estados europeus, tentando “vender” a nossa perspetiva sobre a repartição de fundos. Como a Alemanha iria ter a presidência da União no primeiro-semestre de 1999, competindo-lhe então fechar a “Agenda 2000”, ela era, naturalmente, um dos nossos principais interlocutores.
Uma semana antes de Schröder visitar Guterres, eu tinha estado em Bona (é apenas no primeiro semestre de 1999 que a capital alemã se muda definitivamente para Berlim), chefiando uma delegação técnica. Os temas agro-alimentares eram então uma nossa importante prioridade. Já esqueci o que então “sabia” de trigo duro e de quotas de leite…
Schröder jantou com Guterres em S. Bento. Conheciam-se menos bem. Só trazia pessoas do seu gabinete, nenhum ministro ou vice-ministro.
Guterres, ao lado de quem eu estava sentado no jantar, disse-lhe ter sido informado por mim de que havia muito boas perspetivas de as pretensões portuguesas, no quadro das negociações da “Agenda 2000”, estarem a ser bem acolhidas pelo novo governo alemão. Os contactos que eu tinha tido em Bona iam nesse sentido.
Vimos Schröder ficar com um fácies fechado e, voltando-se para mim, inquirou:
- Falou com quem, em Bona?
Disse-lhe que tinha reunido no ministério dos Negócios Estrangeiros, com uma delegação de vários departamentos alemães.
- E quem é que chefiava a delegação alemã?
A cena estava a ser algo surrealista! Expliquei que tinha sido o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Hans Von Ploetz.
Schröder voltou-se então para a sua delegação e, em alemão, em voz alta, pergunta: “Quem é esse Von Ploetz?”. De um extremo do seu lado da mesa saltou alguém para explicar, já em voz um pouco mais baixa, ao recém-empossado chanceler, que se tratava de um dos seus dois vice-ministros dos Negócios Estrangeiros, um diplomata de carreira.
Guterres olhou-me com um discreto sorriso. Eu também estava divertido, mas mantinha-me impassível, a observar a cena.
O chanceler olhou para mim, através da mesa, e disse: “Quando é que pode voltar a Bonn? Este assunto tem de ser visto na chancelaria federal, não no AA” (abreviatura de Auswärtiges Amt, nome do MNE alemão).
(Note-se que a diplomacia alemã era dirigida pelo líder do seu parceiro de coligação, os Verdes, Joschka Fischer. Schröder tinha colocado “ao lado” de Fischer, como outro vice-ministro, um seu homem de confiança, Günter Verheugen. Semanas depois de entrar em funções, Verheugen, que eu conhecia de outras circunstâncias, tinha-me confidenciado que as suas relações com Fischer não eram as melhores. Dois anos mais tarde, Schröder nomeá-lo-ia comissário europeu.)
Olhei de viés para Guterres, que continuava a sorrir beatificamente, e respondi a Schröder, arriscando uma graça: “Até posso ir hoje à noite no seu avião, se tiver lugar para mim…”
Schröder deu uma risada e disse: “Não! Não é preciso! Marque depois uma data com o meu conselheiro europeu”, apontando para um tipo gordo e pesado, que viria a ser uma das “chaves” do nosso (por todos reconhecido) sucesso no compromisso final em Berlim, em março de 1999. Infelizmente, não me recordo agora do seu nome.
Dias depois, lá fui de novo a Bona. Com o meu novo interlocutor, fizemos uma revisão criteriosa de tudo o que havia sido acordado na reunião anterior. Ele disse-me que Schröder lhe havia recomendado que devia “ser tão simpático quanto possível, para tentar resolver o ‘problema português’ “. E foi-o.
No caminho de carro entre a chancelaria federal e a nossa embaixada, onde eu iria depois ter de explicar a um grupo de jornalistas portugueses a razão de duas idas a Bona em tão curto prazo, o meu telemóvel tocou. Era Von Ploetz: “Já sei que estiveste na chancelaria. Houve alguma novidade?”
Disse-lhe que não, mas percebi que ele estava “no escuro”. Naturalmente, evitei dizer-lhe que Schröder, em Lisboa, não sabia bem quem ele era. Para seu percetível contentamento, disse-lhe que ficara com a sensação de que o gabinete do primeiro-ministro me havia confirmado, no essencial, aquilo que, dias antes, ele combinara comigo.
Devo dizer que, nesse momento, senti uma satisfação interior: afinal, os alemães, com toda a sua fama de eficácia, ainda eram mais descoordenados do que nós.
Anos mais tarde, vim a cruzar Hans Von Ploetz, que entretanto fez uma bela carreira como diplomata, julgo que numa conferência em Baku, no Azerbaijão. Não resisti a relembrar-lhe esse episódio, de que ele se lembrava.
Schröder acaba de sofrer, há horas, pela boca do novo ministro alemão das Finanças, a ameaça de lhe cortarem os privilégios que ainda terá como antigo chanceler, tal a fúria oficial que está a cair sobre a sua cabeça, em especial depois de uma entrevista, um tanto arrogante, que deu ao “The New York Times”. Fala-se também de poder ser expulso do SPD.
Para o que aqui me importa, apenas recordo que Schröder se portou impecavelmente com Portugal, durante todo o tempo que pude testemunhar - da “Agenda 2000” às negociações institucionais europeias. O resto é lá com os alemães.
5 comentários:
Andava eu lá por Wolfsburg , chez Wolkswagen, nesses anos Schröder, e assisti a algumas violentas manifestações contra as reformas Schroder, Em particular a lei de flexibilidade do mercado de trabalho Hartz IV que incentivavam as pessoas a assumirem-se e que teve um certo sucesso.
Mas também tiveram consequências negativas para os mais mal remunerados. Houve muitos abusos por parte dos empregadores, que evidentemente “preferiam” os “empregos de um euro” por hora, que era mais que insuficiente para viver. Milhões de pessoas eram obrigadas a ter dois “jobs” para chegar ao fim do mês…
Para um social-democrata, não foi glorioso! Como se a social-democracia estivesse condenada a gerir a economia como a direita mais reaccionária.
Tendência, que levou alguns partidos socialistas europeus para a derrota…e para a longa caminhada no deserto…Conheço pelo menos um, que não está prestes de voltar ao poder!
Eu chamaria essa época Schröder como uma página negra do mundo do do trabalho.
Houve um escândalo que atraiu a atenção do mundo, nessa época, foi a revolta do sector da carne, onde, numa certa empresa importante, em Oldenburg, os trabalhadores dormiam em quartos de 4 ou 5 pessoas, em dormitórios que pareciam uma prisão, cercados por arame farpado.
Esses trabalhadores da Roménia ou da Bulgária esperavam encontrar um emprego adequado. Na realidade, cortavam a carne a 3 ou 4 euros por hora e deviam estar à disposição do seu empregador. "Às duas horas da manhã, mandavam ir trabalhar três horas num lugar s e depois mandavam regressar a casa, onde ficavam duas horas. E aí eram de novo solicitados para trabalhar. na linha de montagem.
Se essa escravidão moderna foi possível, foi por várias razões. Em primeiro lugar, na Alemanha não existia o salário mínimo e, portanto, os trabalhadores só podiam ganhar 300 ou 500 euros por mês Esse tipo de sistema permitiu que a Alemanha pratique preços hiperatractivos no sector de carnes. Isso era concorrência desleal para outros países.
Os mesmos abusos existiam na constrição civil e mesmo nas indústrias de manufactura. Excepto na industria automóvel, onde o sindicato da metalurgia é muito forte e participa à co-gestão das empresas.
Como o seu texto bem evidencia solos luz e sombra...Infelizmente o resto não é só lá com eles. A dependência ocidental (da energia russa e em breve da indústria chinesa) vai tocar-nos forte e provavelmente muito feio.
João Ferreira
Pois, como se vê houve muito «capital» que comprou um carro em segunda mão ao Schroeder.
Para as pessoas, democratas e defensoras de moralidade e princípios na política, a criatura é uma vergonha, não apenas para os socialistas da Alemanha.
Embaixador Seixas da Costa
Os seus posts, em que partilha connosco todas estas peripécias da diplomacia político-económica, que viveu ao longo da sua carreira, são para mim (e creio que para todos aqueles que acompanham o seu blog) o que me dá mais prazer em acompalhá-no
Ao que parece, o seu amigo Schroder não parece estar em bons lençóis no seu país (ao querem retirar-lhe os privilégios de ex-chanceler) por causa das suas relações com Putin.
Cumpr.
Business as usual.
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