Em tempos de pandemia, tenho um amigo que, sem falha, diariamente me telefona, às vezes mais do que uma vez. Acha estranho, aliás, que eu não esteja sempre do “outro lado” da linha, como se o confinamento fosse uma espécie de “Big Brother” televisivo.
Nas conversas, transmite-me preocupações sobre questões geopolíticas magnas, das divergências financeiras europeias ao conflito entre os EUA e a China ou à crise das viagens aéreas. No que cabe à pátria, cuja política sempre nos dividiu sem acrimónia, tem teorias sobre a partilha de poder, que vogam em torno do Centeno, do Costa e do Marcelo, ouvindo-me sempre replicar-lhe com ironias. Deve achar que eu “bebo do fino”, mas que não me abro, por mera tática.
Não obstante viver com o mundo “às costas”, sob o peso insuportável dessas angústias acumuladas, ele parece dormir bem. E, ainda assim, tem tempo para ler tudo, para o “zapping” dos noticiários, decantando um saldo sempre tremendista.
Não imaginam as coisas que ele sabe sobre o vírus, e a sua propagação, e o seu combate, e as suas curvas, e o respetivo achatamento, que deve ir desencantar a fontes raríssimas, para além de Paulo Portas, que tem como seu oráculo regular.
Atura, com bonomia, o meu alheamento sobre tudo isso, embora o sinta incrédulo quando, perante o seu explanar das perfídias chinesas na pandemia, lhe digo, com a maior sinceridade, que não tenho a menor opinião.
Acredita pouco na diretora-geral de Saúde e, ainda menos, na ministra da dita, tendo dificuldade em perceber quando asseguro que, pelo contrário, sigo cegamente o que delas ouço. Aliás, pensasse eu o oposto do que dizem as senhoras, o que é que, de importante, mudaria na minha vida? Passaria a preocupar-me, como acontece com ele. Ora eu tenho como lema firme de vida fugir a sete pés das preocupações.
Esse meu amigo também se faz eco de teorias conspirativas, de Bilderberg às máscaras e aos ventiladores, que, como é da natureza das ditas teorias, ajudam a explicar tudo, mesmo que não saibamos exatamente o quê. É que ele compra o único jornal diário que me teriam de pagar para ler, o que me habilita com o contacto indireto com o mundo dos títulos e dos escândalos, sem correr o risco de ser diretamente infetado.
Uma coisa esse meu amigo não deve perceber: como é possível eu continuar a ter temas para escrever uma meia dúzia de artigos por mês, bem como alimentar diariamente o meu blogue, sem a intensidade de informação que ele colhe. Talvez não devesse revelar o segredo: hoje, por exemplo, falando sobre ele...
1 comentário:
Personagens típicas dos tempos que correm.
A vida continua e as complexidades do mundo não entraram em quarentena, por isso escreva, pois escreve muito bem.
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