sexta-feira, maio 08, 2020

O Portugal de que gosto


Não alimento juízos definitivos de valor sobre o modo como os povos se relacionam uns com os outros, em termos de maior ou menor abertura para conviverem com as respetivas diferenças. Não entro na polémica, que alguns procuram trazer para a praça pública, sobre se Portugal é ou não um país racista ou xenófobo. Não faço parte de quantos acham que é útil fazer uma “sindicância” sobre o nosso passado colonial, lançando um debate auto-flagelatório sobre a nossa História. Já percebi que essa agenda anda por aí e, sobre ela, tenho a mesma teoria que as pessoas prudentes das aldeias têm sobre as queimadas: feitas sem ter em conta a força dos ventos podem dar origem a grandes incêndios.

Ao contrário do que acontece com muitos com o avançar da idade, sinto que tenho cada vez menos ideias gerais. Aprendi que as coisas são, em geral, muito mais complexas do que aquilo que uma abordagem impressionista parece indiciar. Talvez por isso, não alimento conversas de café sobre estados de alma nacionais. Vivi o suficiente para ter aprendido que se pode dizer uma coisa e o seu contrário e, no entanto, continuar a estar certo - porque a perspetiva é a do ponto a partir do qual se olha e não daquilo que está à vista.

Na vida que levei por algum mundo, representando Portugal, nunca ninguém me ouviu dizer que “os portugueses não são racistas” ou que a nossa colonização (e, já agora, a nossa descolonização) foi “exemplar”. Não é por Gilberto Freyre ser oriundo de uma antiga colónia que o “luso-tropicalismo” passou a ser uma categoria elogiosa, nem a nossa relação colonial ganhou uma suposta “bondade” graças a uma certa forma portuguesa de estar no mundo.

Somos hoje o que somos, como país. Mas de uma coisa tenho a certeza: seremos sempre um pouco mais se o nosso discurso assentar numa linha humanista e, em especial, numa firme vontade de fazer coincidir aquilo que fazemos com aquilo que, nesse domínio, defendemos.

Foi-me sempre agradável, como diplomata e como português, ver reconhecido nos fóruns internacionais, e no que os outros dizem sobre nós, a generosidade da nossa cultura de acolhimento dos estrangeiros que nos procuram, seja para melhorarem as suas condições económicas de vida, seja para se acolherem, para se refugiarem, quando perseguidos ou vítimas de situações de conflito.

Gosto muito de ver Portugal na vanguarda das atitudes internacionais em matéria de ações solidárias face aos migrantes e refugiados – da mesma forma que me envergonho ao ver certas forças políticas nacionais, com fortes responsabilidades democráticas, serem cúmplices pelo silêncio face aos comportamento miserável de alguns Estados europeus, só porque são dirigidos por partidos que pertencem à sua “família” política. Há famílias que não se recomendam!

Nesta crise da pandemia, senti um grande orgulho em ser português ao assistir ao gesto nobre, unilateral, do governo do meu país de legalizar todos os indocumentados estrangeiros. É deste Portugal que eu gosto.

9 comentários:

Luís Lavoura disse...

o gesto nobre, unilateral, do governo do meu país de legalizar todos os indocumentados estrangeiros

Portugal fez isso??? Não ouvi dizer nada disso nas notícias! (Embora me possa ter escapado.)

O que Portugal fez, em relação a estrangeiros tal como em relação a portugueses, foi permitir que um estado de indocumentação permaneça impune até 30 de junho. Ou seja, prolongou a validade da documentação expirada até 30 de junho. O que é muito diferente de "legalizar" quem está ilegal.

Anónimo disse...

precisamos de bom senso! e a perspetiva poderá ser deveras importante
e depois há aqueles que não são tido como racistas mas que mantém as cores bem separadas
muito branquinhos de um lado, escurinhos do outro lado, amarelos de outro
e há outros que falam com laivos de racismo mas que convidam toda a gente para o churrasco
e há outros sempre a atirar a primeira pedra, sejam eles amarelos, brancos ou negros

Anónimo disse...

Pois, é por causa desses enfados com os debates sobre o nosso passado que o conhecemos tão mal e subsistem certos mitos, como o da suave colonização, brandos costumes, etc, etc. Outros países, com passado e tradição de debate, feroz, por vezes, não têm medo e repensar a sua história. Estou a lembrar-me da França, a propósito do seu passado colonial, como a Argélia. É só um exemplo. Enquanto subsistir esta mentalidade de não debater, com medo, eventualmente, do que pensem de nós lá fora, ou do que pensamos de nós próprios, continuamos com um fraco sentido crítico da nossa história. Preferimos a conversa diplomática de salão, com suaves críticas e larachas. O Eça é que a sabia toda...

Francisco Seixas da Costa disse...

O Anónimo das 14:17 não deve esquecer-se de que o Eça era funcionário do serviço consular, isto é, diplomata.

Francisco Seixas da Costa disse...

Quando o Luís Lavoura escrever artigos nos jornais, sujeito a um certo número limitado de carateres, talvez perceba melhor a necessidade de simplificacão. Até lá...

Anónimo disse...

"O Anónimo das 14:17 não deve esquecer-se de que o Eça era funcionário do serviço consular, isto é, diplomata."

Não esqueci. E foi um poucochinho mais do que isso, ou já seria apenas agora um nome nos arquivos mortos do ministério dos negócios estrangeiros. Mas deixe-me continuar. Imagina porque é que será tão escassa a nossa produção literária e académica sobre o nosso passado colonial e a nossa relação com os povos que colonizámos, a escravatura, o racismo, etc? E, sobretudo, quando os estudos existem, porque são reservados para gabinetes e tertúlias privadas, e não atingem grande público? Obviamente, à excepção de uma certa elite nas redes sociais, a ideia dominante é que sempre fomos um povo de brandos costumes, que se miscigenou com amor e carinho com outros povos. Fora um ou outro caso, vá lá, de alguns abusos evitáveis… De resto, Deus nos livre da auto-flagelação. Assim, é um sossego.

Anónimo disse...

Ao anónimo das 14.17 gostava de perguntar se conhece África, para falar da colonização. É que para essas coisas dá jeito ter tido algum conhecimento directo, antes de fazer debates auto-flagelatórios e pretensamente históricos. Posto isto, é evidente que a nossa colonização não terá sido exemplar. Mas se é para discutir e julgar a colonização, sugiro que se julgue também a nossa descolonização " exemplar". Que tal?

Anónimo disse...

Subscrevo. A colonização não foi exemplar. Foi brutal como todas. Já a descolonização terá sido exemplara para os descolonizados. A culpa foi do regime anterior. E o 25 de Abril foi feito para acabar com as guerras coloniais. Por isso era impossível ter outra descolonização. Quanto ao racismo é claro para quem lá esteve no período colonial , que era generalizado. Mas a especificidade é que havia muitos racistas que se casavam (casar mesmo) com pretas. Acrescento que considero racista e sem sentido não se poder dizer preto e poder dizer negro. Nós EUA é o contrário
Fernando Neves

Unknown disse...

Fernando Neves: crê mesmo que a descolonização foi exemplar para os descolonizados?!

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António F...