sexta-feira, maio 15, 2020

A segunda morte do caixeiro viajante


Quando dirigi cursos universitários de preparação para candidatos à carreira diplomática, um dos conselhos que sempre dava aos aspirantes à profissão era evitarem responder, se acaso lhes perguntassem por que razão queriam ser diplomatas, que “gostavam de viajar”. Essa tinha sido uma recomendação que me tinha sido dada antes do meu próprio exame de acesso, pela má impressão que a resposta causava, porque associada a uma vocação apenas lúdica.

O “glamour” das viagens, tal como a vida social dos cocktails e receções, está no imaginário que o comum dos cidadãos liga à diplomacia. Não nego que isso tem alguma razão de ser, porque, de facto, esses aspetos faziam parte da coreografia da profissão. Escrevi “faziam” porque, com o decurso dos anos, a liturgia social foi-se atenuando, muito do protocolo foi-se aligeirando e a diplomacia cada vez mais se aproximou de uma comum atividade técnica, marcada apenas pela dispersão dos seus atores pelo mundo, comum a outras profissões.

Durante as décadas que permaneci na carreira, as viagens foram uma constante em certos tempos da profissão. A entrada de Portugal para as instituições europeias fez disparar as deslocações entre as capitais e Bruxelas. Mas se, no início da profissão, o cosmopolitismo das viagens tinha um aspeto sedutor, devo confessar que, nos últimos tempos, era bastante mais sofrido do que apreciado. O peso da burocracia e da segurança nos aeroportos, as distâncias entre estes e os hotéis, tudo isso foi convertendo as viagens de trabalho numa tarefa cansativa e incómoda, que, para muita gente, era cada vez menos ansiada. Mas não escondo que, por vezes, dar uma saltada a uma cidade diferente daquela onde vivíamos refrescava os dias e espairecia o quotidiano.

A vídeo-conferência raramente fez parte do meu tempo diplomático. Era um método pouco utilizado, obrigava a uma logística algo pesada e sofria de deficiências técnicas muito limitativas. De facto, não fazia parte da nossa cultura de trabalho. Curiosamente, só a vim a encontrar com maior frequência, e, mesmo assim, sempre como solução alternativa de recurso à prática presencial, nas atividades no setor privado que hoje exerço.

Com os efeitos previsíveis da pandemia que se instalou, há duas realidades que, claramente, vieram para ficar: vai passar a haver menos viagens de trabalho e o recurso aos meios de comunicação à distância tenderá a generalizar-se. Estes últimos, contudo, têm rapidamente que dar um “salto técnico”, porque, nas últimas décadas, a sua evolução foi muito escassa. O Skype de hoje é muito parecido com o que tínhamos há quase 20 anos e todas as outras plataformas similares, algumas que só conhecemos nas últimas semanas, têm ainda fortes defeitos, que se tornam incómodos e cansativos. Verdade seja que, muito rapidamente, temos também de interiorizar regras comportamentais próprias da gestão desse tipo de reuniões.

Mas sejamos honestos: ter uma reunião presencial, com pessoas à volta de uma mesa, ou ter uma sessão por vídeo-conferência, está longe de ser a mesma coisa. Nada, repito, nada substitui o contacto pessoal, da mesma forma que o telefone nunca foi um meio alternativo ideal do cara-a-cara. Há conversas e cumplicidades que, em especial na vida internacional, no lidar com gente de culturas diferentes, só se ganham com o diálogo frente a frente, com o copo no bar ao final do dia, com um almoço calmo e descontraído. 

Talvez o fim da banalização do “presentismo” acabe por valorizar mais as ocasiões em que as viagens e o contacto pessoal são, de facto, indispensáveis, fazendo-nos refletir duas vezes sobre se esta ou aquela deslocação não será, afinal, desnecessária. 

Uma sensível melhoria técnica nos meios de trabalho à distância talvez nos torne assim mais conscientes de que esse mundo de “caixeiros viajantes” executivos, trazendo à trela aquelas caixas com rodas, com as medidas da IATA, que cruzávamos aos milhares, entre aviões, por corredores sem fim, gerando um peso ecológico insuportável, tem mesmo de ir acabando.

6 comentários:

Anónimo disse...

As pessoas têm a memória curta e adoram fazer previsões catastrofistas.
Já se esqueceram da SIDA e de como ela ia mudar radicalmente o nosso mundo. Viu-se...

Luís Lavoura disse...

O peso da burocracia e da segurança nos aeroportos, as distâncias entre estes e os hotéis, tudo isso foi convertendo as viagens de trabalho numa tarefa cansativa e incómoda, que, para muita gente, era cada vez menos ansiada.

Concordo consigo. Também eu atualmente considero viajar um grande stress, que prefiro em geral recusar.

Luís Lavoura disse...

Nada, repito, nada substitui o contacto pessoal

Concordo. Tendo eu atualmente que dar aulas via internet, considero muito desmotivador o não sentir a presença dos alunos ali ao pé de mim, observando eu as reações deles e eles as minhas. Dar aulas para uma câmara de filmar é uma coisa totalmente desumana.

Luís Lavoura disse...

os meios de comunicação à distância têm rapidamente que dar um “salto técnico”, porque, nas últimas décadas, a sua evolução foi muito escassa

Pois se quando agora se quer introduzir a 5G, os governos "ocidentais" recusam-na por temer a dominância da tecnologia chinesa... Em vez de aceitarem o salto técnico que a tecnologia da Huawei traz, recusam-na...

Anónimo disse...

Por falar em viagens, como é que está a questão da discriminação contra "não residentes" a ser praticada nos Açores? Está tudo caladinho para não levantar ondas?

Anónimo disse...

Bem viato!

Parabéns, concidadãos !