sexta-feira, abril 13, 2018

A segunda fronteira da Rússia

Barack Obama afirmou um dia que a Rússia se tinha transformado numa potência regional. Tecnicamente, a “boutade” provocatória podia ter algum sentido, mas a região a que o antigo presidente americano se referia era então muito mais limitada do que aquela em que poder militar de Moscovo hoje se afirma. Por ironia, iriam ser as inconsequentes opções políticas do próprio Obama que acabariam por oferecer à Rússia um papel central numa área geopolítica onde a sua presença era até então bem menos relevante: o Médio Oriente. 

Obama herdou um mundo em que os Estados Unidos vinham a tentar libertar-se do custo político-militar de uma ocupação arbitrária do Iraque, sem mandato internacional, com as desastrosas consequências que isso veio a ter no equilíbrio estratégico da região. As pessoas podem já ter esquecido o Estado Islâmico, mas essa sinistra organização, responsável por inomináveis barbáries e por um proselitismo fanático que a Europa sentiu na pele, foi uma óbvia consequência dos vazios de poder gerados por aquela ação. E o perigoso “tandem” entre os turcos e os curdos mais não é do que uma decorrência disso mesmo.

Em cenários de elevada tensão, a vida internacional há muito que ensinou que há equilíbrios em que é irresponsável tocar, sob pena do resultado de uma rotura poder vir a desencadear efeitos mais gravosos do que a situação precedente. No limite, há mesmo que ter o realismo de admitir que determinados problemas não têm uma visível solução. Nesse caso, a sensatez recomenda que nos habituemos a viver com a existência dos conflitos, apenas garantindo que a sua baixa intensidade é preservada, sem prejuízo de continuar a tentar resolvê-los. 

Os Estados Unidos, contudo, parece não terem aprendido a lição do Iraque. Derrubar ditadores e provocar mudanças de regime é sempre uma opção tentadora e, em geral, traz aplausos fáceis. Mas o dia seguinte é imprevisível, como a História o tem demonstrado. George W. Bush colocou a América a cometer esse erro. E Obama repetiu, noutra escala: veio a dar cobertura ao grave erro estratégico de dois impulsivos líderes europeus que embarcaram numa acção na Líbia que, ninguém hoje o duvida, tornou a emenda bem pior que o soneto. O caos no Sahel e o agravamento exponencial do drama das migrações transmediterrânicas resultou diretamente daí. 

Convirá recordar que a aventura líbia havia sido abençoada por um mandato do Conselho de Segurança da ONU, aprovado com luz verde da Rússia. Mas o facto dos poderes ocidentais terem ultrapassado tal mandato, que simplesmente previa a defesa da Cirenaica contra a agressão da Tripolitânia, aproveitando para se verem livres de Kadhafi, fez a Rússia aprender a lição. Por isso, quando Assad, na Síria, esmagou violentamente os alvores de uma “primavera” política, a Rússia não permitiu, com o seu veto na ONU, a repetição do cenário. Terá feito isso apenas por “amor” a Assad? 

A Rússia não tem menos receio do que os ocidentais no tocante aos riscos do extremismo islâmico. Receia que uma eventual afastamento do poder de Assad possa vir a converter o espaço da Síria num terreno vizinho de instabilidade. Moscovo já percebeu que os EUA – e os seus aliados da NATO – vão deixar um caos no Afeganistão, onde foram à caça legítima dos responsáveis pelo 11 de setembro, e que isso acabará por sobrar para eles. Do Médio Oriente ao Cáucaso, que é a sua fronteira sul, a Rússia sabe que é um passo muito curto – e já viu o que sucedeu na Chechénia, no Daguestão e na Ossétia do Norte. O islamismo radical espreita também a Rússia na fragilidade da Ásia Central.

O poder em Moscovo explora o sentimento de humilhação que os russos sentem pela derrota na Guerra Fria. E usa bem o espetro de cerco que derivou da chegada da NATO e da União Europeia a escassas centenas de quilómetros da sua capital. Depois da descarada tentativa ocidental de instabilizar a Ucrânia em seu favor, a Rússia “empatou” o jogo por ali, criando um “conflito congelado”. Mas percebeu que vale mais ser temida do que respeitada. Já tinha testado os ocidentais na Geórgia, e ganhou. Tomou a Crimeia com um custo razoável – as sanções e o afastamento do G8. A Síria transformou-se agora na sua segunda fronteira. 

Não perceber a Rússia é meio caminho andado para não a conseguir enfrentar.

8 comentários:

Luís Lavoura disse...

Pela primeira vez, que eu veja neste blogue, o Francisco reconhece que os disparates feitos pelo "Ocidente" não terminaram no Iraque. Ainda bem.

Joaquim de Freitas disse...

Eles querem a guerra ! Não aceitam a derrota dos islamistas na Síria. E por isso inventam, como sempre os álibis para dar a volta à situação na qual se encontram.

Martin Luther King disse, "a mentira é uma bola de neve que cresce à medida que rola”.

Parece que esta citação sábia é aplicável em toda a parte, não importa quando. Na verdade, os governos de alguns países estão cheios de mentiras. Mentir, para eles, é uma segunda natureza, que a necessidade lhes dita.

Com efeito, a mentira praticada por certos Estados-membros permanentes do Conselho de segurança tornou-se numa espécie de arma de destruição maciça.

Foi pela mentira que eles roubaram a Palestina, ao povo palestiniano.

Foi pela mentira que eles lançaram a guerra na península coreana.

Foi pela mentira que invadiram o Vietname

Foi pela mentira que eles invadiram a Ilha da Granada.

Foi pela mentira que eles despedaçaram a Jugoslávia.

Foi pela mentira que eles ocuparam o Iraque.

Foi pela mentira que eles destruíram a Líbia.

É pela mentira que criaram as organizações de terroristas takfirists tais como Al Qaeda, Taliban, Daech, Nasra, Jaïch Al Islam e a lista continua.

E é pela mentira que eles tentam demolir e preparar, hoje, uma agressão contra a Síria.

O que é notável é que hoje a retórica negativa fornecida pelo delegado americano na ONU, está em total contradição com a do Ministro da Defesa do seu país, General Mattis; que deu uma entrevista ao jornalista Ian Wilkie, publicado no Newsweek ;-

“Mattis admite que não há evidência de que Assad usou gás venenoso contra o seu povo.”

Ron Paul, antigo candidato à presidência disse exactamente a mesma coisa.

Na ONU, ontem, o delegado Russo disse aos Americanos: Vejam o resultado da vossa política de geo estratégia no Médio Oriente, depois de terem invadido o Iraque? E que contam fazer para apagar o incêndio que provocaram? Um incêndio maior?

Por que é que Trump quer a guerra a todo custo na Coreia do Norte, Irã, Rússia ou China? Depois do Vietname, Camboja, Iraque, Líbia, Síria, Iémen.... os EUA estiveram em guerra por mais de meio século e por que é que os cidadãos americanos apoiam a agenda militar do seu país?


Mas não, a explicação é outra! O facto que Bush , Obama e agora Trump gostam da guerra tem a ver com o sistema económico americano. Este sistema -uma variante americana do capitalismo funciona em primeiro lugar para enriquecer ainda mais os membros já riquíssimos das dinastias financeiras americanas, como a do Bush.

Sem guerras quentes ou frias, este sistema não pode continuar a produzir os resultados esperados na forma de lucros exponenciais que estes americanos consideram como um direito de nascença.

A grande força deste capitalismo americano é também a sua grande fraqueza: a sua produtividade muito elevada. Na história do desenvolvimento deste sistema económico internacional, que chamamos de capitalismo, uma série de factores causaram enormes saltos de produtividade, bem como a mecanização dos padrões de produção na Inglaterra, logo no século XVIII; Então, a partir do início do século XX, a introdução, pelos industriais americanos, como Henri Ford, do "Fordismo", ou seja, a automação do trabalho pelas técnicas das linhas de montagem, a inovação que fez explodir a produtividade das grandes empresas americanas. Andei por là muitos anos e pensei frequentemente nesta imagem.

Joaquim de Freitas disse...

SUITE: Por exemplo, a partir do início dos anos 1920, todos os dias, das linhas de montagem das fábricas do Michigan, que conheci muito bem, todas, particularmente em Detroit, saiam grande quantidade de veículos. Mas quem ia comprar todos esses carros? A maioria dos americanos não tinha meios para pagá-los. Na época, muitos outros produtos industriais inundaram o mercado, criando uma ruptura entre uma oferta superabundante e uma demanda estagnada. Assim nasceu uma crise económica conhecida como a grande depressão. Foi essencialmente uma crise de superprodução.

Como os armazéns estavam cheios de não vendidos, as empresas metiam os seus empregados no desemprego, reduzindo o poder aquisitivo dos americanos e agravando ainda mais a crise.

O que veio salvar a situação foi a GUERRA. É inegável que a grande depressão na América acabou apenas por causa de e durante a segunda guerra mundial

A demanda económica levantou-se espectacularmente quando a guerra, que tinha começado na Europa e na qual os EUA não tomaram nenhuma parte activa antes de 1942, permitiu à indústria americana de produzir quantidade ilimitada de equipamentos de guerra.

O problema fundamental da grande depressão – o desequilíbrio entre oferta e demanda – foi resolvido porque o Estado iniciou a bomba da demanda económica por meio de enormes encomendas militares.

Quanto aos americanos ordinários, esta orgia de gastos militares por Washington introduziu não somente o pleno emprego, mas introduziu salários muito mais elevados do que antes. Foi durante a segunda guerra mundial que a miséria geral associada com a grande depressão terminou e a maioria do povo americano atingiu um nível nunca igualado de prosperidade.

Os ricos e privilegiados da América são viciados pela guerra. Sem as suas doses regulares e sempre crescentes de guerras, não pode funcionar correctamente. A partir de agora, esta dependência, esta necessidade, está a ser satisfeita pelo conflito no Iraque, que também satisfaz as aspirações dos barões do petróleo. No entanto, quem acreditaria que o anseio pela guerra iria parar quando o couro cabeludo de Saddam se juntou aos turbantes talibãs entre os troféus de George W. Bush?

Entretanto, com Obama, houve a Somália, a Líbia e a Síria.

Hoje é Trump que já apontou para aqueles que esperam na fila: especialmente os países do "eixo do mal": Irã, Síria, Coreia do Norte e também este abcesso no flanco da América: que nunca sarou:- Cuba. E talvez a Venezuela…

Bem-vindos a este século XXI, bem-vindos a este "admirável mundo novo" da guerra permanente de Trump, que tendo prometido, para ser eleito, o pleno emprego aos americanos, vai procurar cumprir a promessa. Mesmo se isso deve custar uma terceira guerra mundial.

Só que, desta vez, a guerra entrará pelas portas dentro da própria América.

Anónimo disse...

Sinceramente, não percebi o que quis dizer com as duas últimas frases do seu texto.

Francisco Seixas da Costa disse...

Ao Anónimo das 13:23. A primeira fronteira da Rússia é da sua periferia imediata. Atendendo à importância daquilo que está em jogo na Síria, com potencial impacto sobre essa mesma “primeira fronteira”, a Síria passou a ser uma segunda fronteira. Quanto à última frase, ainda é mais simples: só se enfrenta com êxito um adversário conhecendo-o bem. E não é por ser um poder hostil que não devemos ter em atenção as suas preicupações de segurança.

Joaquim de Freitas disse...

Os Americanos sempre consideraram que as Filipinas , o Vietname e a Coreia eram a sua segunda fronteira. Por isso levaram a guerra a esses países em datas diferentes.

Fernando Frazão disse...

Às vezes tenho saudades da Guerra Fria quando os cães, ou se quiserem os ditadores, estavam presos e tinham a trela curta.

dor em baixa disse...

"As desastrosas consequências" da Guerra do Iraque não foram só no "equilíbrio estratégico da região", foram antes de mais os 140 000 mortos.

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...