Não guardo papéis e, muito menos, comunicações oficiais. Tenho pena, no entanto, de não ter ficado com fotocópia de um determinado “telegrama” que enviei de Londres, ao tempo em que era “encarregado de negócios”, na ausência do embaixador. Mas ele estará nos arquivos da embaixada e do MNE.
O tema era Gibraltar e o eterno problema que o rochedo constitui para as relações do Reino Unido com a Espanha, que reivindica a posse do território. O governo de Londres instituiu, desde o final dos anos 60, um dispositivo legal que condiciona qualquer evolução do estatuto de Gibraltar à decisão maioritária dos gibraltinos. Como estes, à evidência, preferem manter-se sob a tutela britânica a fundirem-se com a Espanha, o impasse está garantido.
Num dia dos anos 90, o “chief minister” de Gilbraltar, o trabalhista Joe Bossano, foi notícia em Londres, por umas quaisquer declarações, fortemente anti-espanholas. Como a presidência portuguesa das instituições comunitárias de 1992 iria ter esse tema na sua agenda, decidi referir o incidente numa comunicação a Lisboa.
Nesse tempo, os “telegramas” seguiam por fax. Escrevendo nós o texto em computador, dentro de um modelo pré-arranjado, sabíamos exatamente o formato em que Lisboa iria ler os nossos textos e em que página exata ficaria cada linha que escrevêssemos. O meu telegrama tinha uma primeira página de texto e, depois, apenas umas escassas linhas na segunda página. Eu medira tudo ao milímetro e já verão porquê.
Na página principal, descrevi a questão que o “chief minister” de Gibraltar tinha suscitado. Depois, aproveitei para traçar um perfil do político gibraltino. Nas última parte dessa primeira página, devo ter escrito qualquer coisa como isto: “Joe Bossano é um populista, quase demagogo, de verbo fácil, de quem localmente é arriscado discordar. Detém um desmesurado poder sobre o serviço público de Gibraltar, com fama e proveito de ser praticamente o “dono” da região. Tem, além disso, uma palavra muitas vezes cáustica para os adversários, agressiva para a comunicação social que não lhe agrada e, quando lhe apraz, o seu discurso volta-se com facilidade contra o país de que a região depende, bem como contra os políticos da sua capital. Com este perfil, V. Exa. não estranhará, com certeza, que esta mercurial figura, autoritária, arrogante e de uma proverbial rudeza, nos convoque imediatamente à memória um outro líder político bem conhecido, de uma ilha dirigida, anos e anos, sob forte arbítrio pessoal, num estilo desafiador dos próprios equilíbrios democráticos”.
A primeira página terminava aqui. Um amigo, no Ministério, em Lisboa, disse-me, que sentiu um frémito pela espinha, no dia seguinte, ao ler este texto, e pensou para consigo: “Este tipo endoideceu! Fazer estas insinuações, com o governo PSD no poder, é suicida!”
E lá foi, já em pânico, ler a segunda e última página do “telegrama”. Tinha poucas linhas e dizia qualquer coisa como isto: “Refiro-me naturalmente ao antigo líder de Malta, Don Mintoff, cujo estilo autoritário e o modo atribiliário de governo se constituiu num fator de tensão permanente, na gestão local e na agressividade constante perante Londres, que deu origem a crises recorrentes nas relações com os governos britânicos”. E fechava o texto com a minha assinatura. E o meu amigo logo reduziu a taquicardia que o tinha assaltado...
Dizem-me que o meu telegrama foi lido, com algum gozo, em vários setores do MNE. E não querem ver que, entre algumas pessoas, naturalmente com óbvia má fé, houve mesmo quem pensasse que, no que eu havia escrito na primeira página, podia haver alguma insinuação sobre a figura de um lider regional português?! Há imaginações delirantes!
5 comentários:
As pessoas são mesmo más.
É por textos como este que não passo sem o ler. Obrigado.
Embaixador, penso que ele seja do seu tempo no Liceu em Vila Real. Morreu hoje o Avelino Amaral, que foi diretor do centro de emprego de Vila Real.
Lembro-me de ter encontrado há muitos anos uma aplicação desta técnica numa carta inserida n'O Leopardo, de Lampedusa.
Batota!
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