sábado, março 31, 2018

Primos em dia de Aleluia


Não tenho uma “teoria geral” sobre primos. Tenho primos de todos os “feitios”. Os que me são muito próximos, que são quase os irmãos que não tive, os que vou vendo de quando em vez e, finalmente, aqueles que perco por muitos anos (“estás mais gordo, pá!”) em cujos abraços caio, a espaços muito longos, quase sempre em funerais ou em ocasiões um pouco menos funestas, como os casamentos. 

Primos tive de quem, em certas fases da vida, estive bastante próximo e que, com o tempo, se foram afastando, quase sempre por nenhuma razão especial, apenas porque sim, porque a geografia da vida não ajudou. E o contrário também é verdade: há primos que “recuperei”, em tempos mais recentes, retomando um contacto que se tinha diluído ou nem sequer densificado muito no passado. E isso foi ótimo. 

Apesar desta tipificação simples, não alimento nenhuma teoria geral sobre as “redes” de primos e, aqui entre nós, não fico muito impressionado quando vejo aquelas fotografias gigantescas de famílias, com tios e muitos primos, em jeito de encontro anual dos detentores do apelido. Eu, que não cultivo nem acho excessiva graça a esses momentos gregários de celebração, vivo muito confortável com o “modelo” de relação com os primos que tenho. E dou-me por feliz quando os encontro. E dou-me por triste quando os perco, mesmo que os já não via há muito. Porque isso significa que os perdi para sempre.

Foi agora o caso. Chegou-me a notícia da morte do filho de uma prima direita da minha mãe. Tenho fotografias de infância com ele, no terraço da “casa das tias”, nas Pedras Salgadas, uma espécie de lugar de culto familiar. Eu ainda mal andava, ele teria um ano ou dois mais. Para a história oral da nossa família ficou uma frase que ele teria dito, guloso, procurando mobilizar a famosa doçaria caseira das tias, usando-me como pretexto: “Este menino crescia bem era com bolos”. Muitos anos mais tarde, completámos juntos o “5° ano do liceu”, que ele veio fazer a Vila Real, depois de alguns percalços académicos, antes de eu começar a ter os meus. E divertimo-nos imenso! Devo-lhe, em meados dos anos 60, uma cuidada “introdução” à rua dos Caldeireiros, no Porto, num fim de tarde com uma agenda impublicável. Depois, a vida levou-nos para destinos diferentes. E nunca mais, nem um simples funeral, nos juntou.

O meu primo que agora se foi tinha um irmão ligeiramente mais velho, um tipo magnífico, “conquistador” nato de pequename, com uma vida errática e algo aventureira, que vim a reencontrar no Brasil, onde, por muitos anos, lutou duro pela existência e com quem, um dia, cruzei memórias de família, por horas perdidas, nas cadeiras da piscina do Copacabana Palace, no Rio, onde o tinha convidado para almoçar. Foi-se também da vida, já há alguns anos. 

Resta agora uma irmã, quase da minha idade, que ontem me deu conta de mais esta tristeza que agora passa a acumular, a somar-se a outros lutos de outra natureza. A vida não tem sido nada fácil para ela.

Para tentar atenuar o peso destas horas, vou agora lembrar-lhe, a ela, uma pequena história. Eu tinha sete anos (sei isso com precisão, porque nesse dia me tinha sido oferecido, por antecipação, o livro da “segunda classe”). Ela, ao que julgo, um ano menos. Tal como hoje, estávamos num sábado de Aleluia. Como à época ocorria, todos os sinos das igrejas de Vila Real tinham tocado em uníssono, logo pela manhã. O dia estava belíssimo e eu estava de cama, com uma maleitazeca qualquer, preso em casa. Os meus pais e os pais dessa minha prima tinham saído por algum tempo e deixaram-na a brincar no meu quarto. A companhia dela não me agradava nada, sei lá bem porquê!, essas idades têm dessas coisas patetas. E foi então que a ela lhe deu, imaginem!, para cantar. Muito alto. E não se calou, não obstante os meus protestos. Até que minha mãe regressou. Ela lembrava muitas vezes que, quando entrou em casa, ouviu logo um berro meu, vindo do quarto: “Tirem-me daqui esta Amália Rodrigues!”. 

Já não te deves lembrar, Bli! Imagino que, por estas horas de grande tristeza para ti, cantar é o que menos te apetecerá. Mas talvez te faça sorrir com esta memória carinhosa. Um beijo para ti.

3 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

"Devo-lhe, em meados dos anos 60, uma cuidada “introdução” à rua dos Caldeireiros, no Porto, num fim de tarde com uma agenda impublicável."

Creio que era a "rua das Caldeireiras" ...

Anónimo disse...

Ele há primos que são como irmãos...

Anónimo disse...

Caldeireiros (masculino)
seu Joaquim !

Rua onde se fabricavam caldeiras !!!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...