sexta-feira, março 09, 2018

O passado, hoje


Há dias, no parlamento, o CDS não se associou a um voto de pesar pela morte de Varela Gomes, um militar que combateu, de armas na mão, a ditadura salazarista. Imagino que o pretexto tenham sido as atitudes dessa figura, no período mais conturbado do pós 25 de abril. 

Alguma direita portuguesa passa o tempo a queixar-se de que a esquerda a acusa de colagem ao regime anterior mas, como se vê, perde ensejos preciosos para afastar esse estigma. Isso acontece tanto na ação política como na produção intelectual. Alguma nova historiografia edulcora os crimes do regime salazarista, carregando os tons, em contraponto ácido, nos malefícios da República que o antecedeu. O que esses historiadores dizem de Afonso Costa e correligionários não diverge muito da versão diabolizada que nos foi impingida pelos “historiadores” da ditadura. Depois, não se queixem! 

A eleição de Marcelo Rebelo de Sousa deixou alguma esperança de que, com o tempo, ele pudesse ajudar a direita portuguesa a sair desse seu complexado “guetto”. Nada era expectável de Cavaco Silva, por razões que escuso de desenvolver. Mas seria muito interessante que o segundo presidente civil oriundo da direita política usasse da sua autoridade para ajudar esse mesmo setor a distanciar-se do regime que vigorou até 1974.

Marcelo Rebelo de Sousa nasceu no seio de uma família do Estado Novo. O seu pai, governante com Salazar e Caetano, esteve, contudo, longe do perfil radical de algumas figuras desse tempo. Foi mesmo um governador colonial dotado de abertura de espírito e dimensão social na ação. O jovem Marcelo, ainda em ditadura, revelou-se moderadamente crítico do fechamento do regime, enquanto jornalista do “Expresso”. Mais de quatro décadas depois, o presidente Marcelo já teve gestos muito louváveis na denúncia de barbaridades coloniais e da escravatura.

Na morte de Varela Gomes, o presidente da República qualificou contudo o regime ditatorial com uma bizarra “trouvaille” semântica - uma “ditadura constitucionalizada”. O professor Marcelo prevaleceu sobre o chefe de Estado. Ora a ditadura foi “apenas” uma ditadura: com censura, polícia política, perseguições, prisões, torturas e mortes. 

Alguns dirão, em abono do presidente, que a personalidade de Varela Gomes não ajudava a uma generosidade no gesto. O militar foi um revoltoso no 25 de novembro e era defensor de um modelo de sociedade política muito diferente daquela em que hoje vivemos.

A dimensão das figuras de Estado mede-se precisamente pelo modo com sabem elevar-se acima das polémicas do passado. Esta foi, manifestamente, uma oportunidade perdida. Outras haverá. Esperemos o que o presidente dirá um dia ao país numa visita ao Aljube, a Peniche ou ao Tarrafal. 

10 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

“Esperemos o que o presidente dirá um dia ao país numa visita ao Aljube, a Peniche ou ao Tarrafal. “

Claro, irá talvez beber um café no…“Café do Aljube”, , com vistas para a Praça do Tarrafal (no centro da praça, em dias de calor haveria um lugar a que chamariam "frigideira"), à qual se acederia pela grande Avenida Oliveira Salazar, de sentido único, que, lá bem ao fundo, conduzia ao Beco Américo Tomaz (com Z).

Ah, o seu texto, Senhor Embaixador, de há um ano, “ A Cidade de Ontem”…a reler de urgência !

Reaça disse...

Se a ditadura durou 40 anos foi até os varelas e os cunhais e outros mais não se poderem desmultiplicarem.

Embora a cadeira se tenha descaído 4 ou 5 anos mais cedo do que o necessário.

E quando se fala em colónias e escravaturas, não foram criação do Estado Novo, é bom não confundir quem seja mais novo.

Anónimo disse...

@Sr. De Freitas

"conduzia ao Beco Américo Tomaz (com Z)."

Mas o Tomaz não só era escrito com Z como também com H. Ou seja Thomaz. Era fino ou então quando foi registado ainda não tinha havido o acordo ortográfico.

Anónimo disse...

O "9 de março de 2018 às 18:34" refere-se, obviamente, ao acordo ortográfico de 1945...

Joaquim de Freitas disse...

O Wikipédia escreve :


Américo de Deus Rodrigues Tomás, également écrit Américo Thomaz (Lisbonne, 19 novembre 1894 - Cascais, 18 septembre 1987), est un amiral et homme d'État portugais.

Limitei-me a transcrever a frase do Senhor Embaixador Seixas da Costa, que o conheceu de certeza.

Anónimo disse...

Se algum extraterrestre tinha dúvidas sobre a erudição do Freitas, ele "acaba de acabar" com elas! O homem consulta a Wikipedia (ele põe-lhe um acento, para dar mais graça), em francês! Para ler coisas sobre... portugueses!

É assim como ir à pastelaria e pedir um "Pastel 'au crème'".

Anónimo disse...

Pois...

Mas durante muito tempo não havia acordos como registar os nascituros e até houve um pai republicano radical que registou uma filha de nome: Viva a República Portuguesa. Este também era fino.

Anónimo disse...

@ anónimo de 10 de março 08:27

A da wikipédia é uma forma de cultura que nem sempre é segura.

Não é nem a Encyclopeadia Britanica nem a Larousse, com as respectivas actualizações, mas apenas fornece cultua de massas que muito convem aos nessecitados em desespero.
Serve apenas de apoio para um "general knowladge" pouco seguro e alguma propaganda.

Anónimo disse...

Os velhos reaccionários de esquerda a escrever o passado.....

Anónimo disse...

Os velhos reaccionários de esquerda que apagaram o passado.....

São os mesmos que se esqueceram dos goulags russos e dos nazis.



Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...