sexta-feira, março 30, 2018

Carta sincera a um amigo íntimo


Estou contigo. Entendo que merecias ser tratado de outra forma. O modo, ainda que simpático, como o polícia te interpelou, há tempos, soou-nos a estranho. Que diabo! Chamar-te a atenção pelo fumo! Como se isso fosse um grande crime, no meio de uma rua, com a tua idade...

Faz agora precisamente 28 anos que nos encontrámos pela primeira vez, em Londres, estavas recém-chegado da tua Alemanha natal. Durante mais de quatro anos, tivemos um convívio muito agradável, quase quotidiano. Deste mostras de te adaptares bem aos costumes britânicos. Diria mesmo que, embora arraigadamente germânico, te sentias por ali quase em casa.

Mudaste-te depois, ao mesmo tempo que nós, para Portugal. Cuidámos em encontrar lugar para te acolheres e teres uma regular ocupação, embora nem sempre contínua. Em certos períodos, é verdade, convivemos pouco, andávamos mais com outros. 

Havias-te habituado, desde muito cedo, a ir, de forma muito radical, pelos caminhos da esquerda. Cada um é como é, mas essa tua idiossincrasia teimosa, posso agora dizer-te, chegou a preocupar-nos, temendo que pudesse ter consequências nefastas, que te levasse a inconvenientes choques, que não te adaptasses ao novo ambiente por cá prevalecente. Gostes tu ou não, as coisas, em Portugal, ainda são o que são: a direita usufrui de uma prioridade, no dia a dia coletivo, que já vem de longe...

Passaste muitas férias connosco, fizemos imensas viagens em conjunto. Porém, com a nossa vida saltitante, tempos houve em que nos separámos, por longos meses. Mas sempre nos reencontrávamos, pelas nossas idas a Lisboa. E foste uma nossa companhia regular, por esse país fora. Testemunhaste alegrias, estiveste presente em alguns momentos menos bons. Mostraste ser um amigo fiel e seguro. 

Às vezes, encontrávamos-te um pouco em baixo, sem energia, o teu estado preocupava-nos, pregaste-nos alguns sustos, mas, no final, acabavas sempre por te recompor. Não vale a pena esconder que tens alguns persistentes vícios - para além do fumo! -, porque pertences a uma geração marcada pelo excesso do consumismo. Infelizmente - sei que não vais gostar que diga isto, mas aqui vai! -, bebeste sempre um pouco demais. Nunca vimos remédio para isso, gastámos muito para te alimentar esse vício, mas, reconhecerás, sempre tentámos conduzir-te da melhor forma que sabíamos, levar-te por bons caminhos. Convirás que te demos tudo quanto foi necessário para que nada te faltasse, para o teu pleno bem-estar. E sempre te perdoámos os teus excessos, porque gostávamos muito de ti.

Mas a vida é o que é. Ou melhor, o que foi. Hoje, vais deixar-nos, de vez. Podes crer que já estamos a ter muitas saudades tuas.

(Carta aberta ao meu BMW, de 1990, com volante à direita, que, na tarde de hoje, sexta-feira santa do ano da graça de 2018, acaba de partir para o abate)

3 comentários:

Anónimo disse...

A "história" é para todos e também para os automóveis!...

Anónimo disse...

DELICIOSO texto!

Beijos para ti e Gina e Boa Páscoa por aí

São Jordão

Anónimo disse...

Ao amigo que recordo com saudade "Vorsprung durch tecnik"

Ate sempre

F. Crabtree

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