quarta-feira, fevereiro 03, 2021

À flor da pele


Vivemos um tempo de tensões à flor da pele. O país responsável está visivelmente assustado com a pandemia, as pessoas vêem a sua vida subvertida, num horizonte que não conseguem limitar, e, não vale a pena esconder, paira uma erosão na confiança num poder público que, fazendo seguramente o melhor que sabe e pode, oferece um saldo efetivo de realidade pouco palpável. Morreu já muita gente, muita mais do que, há poucos meses, muito pensavam ser possível.

Politicamente, sente-se que as pessoas estão hoje acantonadas em trincheiras. As redes sociais, esses novos megafones da democracia, são disso um exemplo claro.

Os adeptos do governo, confortados pelas sondagens, entendem que seria impossível fazer-se melhor, que há razões externas e comportamentos sociais internos que ajudam a explicar o que se está a passar. Louvam as autoridades, a dedicação dos governantes, denunciam a falta de solidariedade subjacente às atitudes críticas, num momento coletivo desta gravidade, olham a comunicação social como abutres que exploram insegurança das pessoas, contribuindo para o desânimo coletivo.

Os críticos da governação apontam o lugar objetivo de Portugal no “ranking” triste da tragédia, sublinham as contradições e os vai-e-vem, denunciam a falta de rigor na questão das vacinas e dos seus fura-filas. E notam o caos em muitos hospitais, o que não foi feito e teria sido prometido. E porque o unanimismo, na sua perspetiva, nada resolve, acham que é democraticamente legítimo, e releva da transparência exigível, expor o que está mal e chamar à responsabilidade quem tem obrigação de responder pelo estado das coisas.

Até ver, a bissetriz possível, na terra de ninguém entre estas duas frentes, parece chamar-se Marcelo Rebelo de Sousa. Podemos imaginar que hoje, mais do que nunca, se sinta tentado a ser um verdadeiro provedor dos portugueses. Provavelmente, também ele se exaspera com as insuficiências evitáveis em alguns setores, mas igualmente se irrita com quem cavalga os percalços oficiais para alimentar a chicana política. Conhecendo, como bem deve conhecer, os erros cometidos, mas também as deficiências que pouco dependem das vontades, tendo ele próprio pisado o pé em ramo verde por palavras a mais, é dele que o país parece esperar alguma neutralidade, na abordagem, com a serenidade e equanimidade possíveis, do modo como a pandemia está a ser gerida. E o país parece entender que o seu papel tem sido positivo. Pelos vistos, seis em cada dez portugueses também terão achado isso.

terça-feira, fevereiro 02, 2021

Saudades do fumo


Tenho saudades de ir ao Brazen Head, em Dublin, quando o pub vivia cheio de fumo de tabaco. Como foi criado em 1198, alimentei a ideia de que, com um pouco de sorte, o dom Afonso Henriques quase podia ter passado por lá, numa aventura de turismo céltico. No Café Club, em Vila Real, que eu atravessava, fugidio e preguiçoso, para evitar dar a volta ao quarteirão, havia uma núvem de tabaco que quase escondia os cajados dos feirantes. Já para não falar da sala de dominó do Excelsior ou do Imperial do Lima, na noite de 24 de dezembro, também lá por Vila Real. Ou da sala de jogo por detrás dos bilhares no Montecarlo, ao Saldanha, em Lisboa, ou da cave com balcão do Montarroio, na Sampaio Bruno, no Porto, cidade onde a zona do strip da Candeia também pedia meças. Ou da zona do balcão do recém inaugurado Viana Mar, ou do Bar Oceano, lá por Viana do Castelo. Não guardei nenhuma imagem do Ronnie Scott’s, onde se ouvia bom jazz ou outro assim-assim, em Londres, sem estarmos todos a bufar uns para cima dos outros, com uma onda de fumo a encher o espaço. Havia também uma cave, em Luanda, abaixo do Trópico, cheia de “garinas” (connosco, os da embaixada, a portarmo-nos sempre bem, para que conste) com um ar quase tão espesso e irrespirável como o das noites da boîte do Méridien de Brazaville, onde histórias passadas (com outros, claro) não são para contar aqui. Já tive saudades (nos últimos anos, já não tinha, confesso) do branco fumarento do Procópio, nos tempos do Juvenal, quando a ASAE não nos poupava os pulmões, épocas em que ainda era “facilitado” tabaco ao balcão, em noites de carência extrema do Nuno Brederode. Para sempre, guardo na memória olfativa o cheiro do Blue Note, em Nova Iorque, onde o tabaco era “moderado” por alguma “green grass tea”. Curiosamente, o mesmo cheiro que havia no De Karpershoek, em Amsterdam e num restaurante abaixo de qualquer classificação, em Oslo, no final dos anos 70, local cujo nome esqueci (às vezes também tenho esse direito, caramba!), em que se passeava entre as mesas um tipo a tocar viola que, mal nos via, entoava o “¿ Ai Portugal por qué te quiero tanto?” 

Tenho saudades de todos aqueles fumos. Sei lá bem porquê! E, já agora, esclareço: eu não fumo nem nunca fumei!

Uma dúzia deles!


O avião chegou atrasado a Paris, nesse final de tarde do dia 2 de fevereiro de 2009. Os serviços do protocolo francês têm como regra receber na “sala VIP” os novos embaixadores. Naquele dia, no “Salão 500” de Orly, que eu bem conhecia das várias vezes que por ali tinha passado, em outras encarnações, até com a presença da simpática funcionária asiática que conduzia o carro dos aviões até lá, estava à minha espera o pessoal diplomático e técnico da embaixada e do consulado-geral, com quem eu iria trabalhar nos anos seguintes. Alguns conhecia, outros não. De todos fiquei amigo, diga-se.

Paris ia ser o meu último posto diplomático. Era interessante fazer parte de uma carreira na qual, no dia em que nela se entrava, se sabia a data exata de saída (hoje em dia, alguma coisa mudou nisso). Dali a quatro anos, quase dia por dia, sabia que regressaria a Lisboa.

Senti então pena, recordo-me, de que o meu pai, que tanto gostava da França e de Paris, já não pudesse ir lá visitar-me. Mas ele já se tinha ido “embora”, menos de dois anos antes.

Seguimos para a residência. Havia um jantar à nossa espera. Achei sempre muito curiosa a primeira refeição à chegada a uma nova embaixada: servem-nos o que entendem, o que há por lá resta, com o vinho simpaticamente deixado pelo antecessor. Só no dia seguinte é que vamos “às compras” e se começa a “orientar a casa”, como eu ouvia em criança.

Numa sala junto ao quarto, vi que havia um computador. Imaginei que houvesse. Ainda antes da meia-noite, abri-o, vi o meu correio e fiz aquilo que tinha pensado no avião: criei um blogue. Já tinha experiência disso e um blogue faz-se num minuto.

Em Brasília, de onde eu saíra algum tempo antes, tinha inventado um blogue “oficioso”. Era, creio, a primeira vez que uma embaixada fazia isso. Foi um sucesso: chegou a ter uma média de nove mil leitores diários. Escrevi-o, sozinho, durante dois anos. Depois, passei-o ao conselheiro de imprensa, que o continuou.

Em Paris, decidi que ia assinar um novo blogue com o meu nome. Seria um modelo diferente. Os textos iriam ser personalizados. Quanto ao estilo, logo se veria. Tinha intenção de falar das coisas da vida. Iria também contar algumas histórias da carreira, poucas. Enganei-me, afinal foram muitas, algumas centenas. Pensava ir escrever a um ritmo irregular, talvez de dois em dois dias. Por isso, subtitulei o blogue de “notas pouco diárias”. Enganei-me, também: iria escrever todos os dias. Todos? Todos. 4380 dias! Quase 8700 peças, quase dois posts por dia!

Dei ao blogue o nome uma parte do título de um filme de Jean-Luc Godard, que tinha muito a ver com Paris: “Deux ou trois choses que je sais d’elle”. Há tempos, o meu amigo Zé Ferreira Fernandes, mestre da escrita e “parisiense” a sério, lembrou-me cenas da fita, que eu já esquecera. E ali percebi melhor a razão subliminar da minha escolha.

Este blogue chega hoje, assim, à “dúzia” de anos. Se acharem graça, continuem a ler. Se se cansarem, não sejam piedosos. Amigos, amigos, blogues à parte!

Escrito em 14 de novembro!

 


segunda-feira, fevereiro 01, 2021

 


1 de fevereiro de 1908 - Uma vítima prematura da República



(Retirado do blogue “Memória de Saa” (www.memoria-de-saa.blogspot.com

”Entre os mistérios que atravessam os tempos conta-se o destino, por vezes trágico, de figuras que marcaram indelevelmente a sua época mas que a História, por acidentes inesperados, optou por não acolher no seu seio com a dignidade merecida. Augusto Maria de Saa está entre essas personalidades, para quem o destino foi cruel e a memória dos homens sumamente ingrata.

Augusto Maria de Saa teve a existência que hoje cada vez melhor conhecemos, nesse fresco renascentista que foi a sua vida de eleição. Da literatura à pintura, da filologia à música, da medicina à arte das viagens, da antropologia à ciência náutica, da agricultura científica à enologia, da astrologia às ciências ocultas, da física à matemática, por quase tudo passou o nosso Augusto, em todas essas áreas deixou a marca da sua inteligência e perspicácia. E tudo isto, imagine o leitor, para vir a morrer, de forma inglória, sobre a pedra fria da rua do Arsenal, na tarde fatídica de 1 de Fevereiro de 1908.

Este nosso relato, amigo leitor, poder-lhe-á parecer errático e incoerente, mas, depois de abordarmos, no texto anterior, as origens do nosso Augusto, talvez valha a pena, antes de detalharmos a sua existência, saber um pouco mais sobre as condições dramáticas da sua desaparição do mundo dos vivos. “Só a essência serena da morte é digna da graça efémera de uma vida”, diria, premonitório, esse grande clássico do nosso Augusto que foi Crabtree (*)

O apelo da família fizera Augusto regressar do Brasil a Portugal em finais de 1907, para ver, pela última vez, pelo Natal, a sua querida irmã Ephygenia, a esvair-se da vida, numa tísica sem remissão, no palacete à Junqueira, construído com os ouros do seu trabalho no Brasil. Tinha 54 anos, o nosso Augusto, e eles começavam a pesar-lhe, confessava. Nesse primeiro dia de Fevereiro, destroçado pelo espectáculo da crescente tragédia doméstica, Augusto toma uma caleche e decide apanhar o ar fresco do Terreiro do Paço, beber uma aguardente no Marinho da Arcada, que tanto alimentava as suas saudades nas tardes quentes das terras além do Atlântico. A essa hora, o Martinho regorgitava de caras que o nosso Augusto não reconhecia, figurões dos ministérios a fazer horas da preguiça, algumas personagens jovens com ar circunspecto, chapéu negro na mão e papéis no sovaco, graves nas suas bigodaças, em cujos murmúrios se pressentiam conspirações e incontáveis intrigas. A República rondava, a vida política sentia-se espessa.

Como que por contraponto, a certa altura, a notícia espalha-se: Suas Magestades estão a chegar de barca ao Terreiro do Paço, regressadas de Vila Viçosa!

O nosso Augusto vê, num segundo, o destino colocar-lhe perto, pela primeira vez, essas figuras que a História quisera símbolos do seu Portugal. No Brasil, o Império já se fora, a República estava vibrante, Augusto tinha ido com os ventos do tempo, mas a memória do Portugal eterno estava toda nessas personagens que breve iriam atracar ao Cais das Colunas. Segue o grupo que abandona o Martinho sob impulso da notícia e cruza, solitário, o Terreiro. Vai colocar-se, com alguns outros, na esquina com o Arsenal, na perspectiva poder gozar a passagem das Majestades por algum tempo mais. Do poste onde se encostara, via ao longe o Rossio, onde prometera encontrar-se ao fim da tarde com gente amiga, antes de uma jantarada no Grémio.

Do lado do cais, o movimento adensa-se. Suas Majestades avançam na carruagem, escoltada pelos guardas a cavalo. Alvoroçado com esse inesperado encontro com a História, Augusto logo descortina o recorte avantajado do Rei, nove anos mais novo do que ele próprio. Ao lado, a figura elegante da Rainha D. Amélia, acenando com estudada displicência. De costas na carruagem, uma figura jovem agita a mão em direcção de alguns populares que aplaudem. Deve ser o Príncipe D. Luiz Filipe, pensa. Eram os seus Reis, estava a vê-los pela primeira vez, com um orgulho patriótico de expatriado a agitá-lo por dentro.

Quase sem tempo para se descobrir, para saudar a sua Realeza, o nosso Augusto é impelido a abeirar-se da rua, por uma pequena multidão que largou o conforto da arcada para ver, ainda mais de perto, os passantes Braganças. É esse escasso grupo de pessoas, quiçá movidas mais pela curiosidade que pelo amor à Coroa, que agora faz quase alas à carruagem, roçadas pelos cavalos da Guarda, no curvar lento da saída do Terreiro.

O que se passa, de seguida, é tempo de segundos. Do lado contrário da rua, Augusto ouve o que lhe parece, distintamente, serem dois tiros, seguidos de um alvoroço surdo de gente. O Rei parece-lhe cair prostrado, a cabeça pendente sobre o encosto. D. Amélia soergue-se, lívida, do banco. Mais tiros, vindos sabe-se lá de onde, cruzam a esquina da praça, misturados com gritos e imprecações. Augusto vê surgir lesta, ao seu lado, uma figura esguia que avança com um revólver na mão, que aponta certeiro à figura de D. Luiz Filipe, que se deixa cair na base da carruagem. O homem continua, não desiste, aproxima-se mais das carruagem e D. Amélia, com a coragem da raiva, sacode-lhe o braço assassino com um ramo de flores. O braço desvia-se, o assassino desequilibra-se e do fuzil sai-lhe, enviezado, um último tiro, antes que um chanfalho da Guarda Real o atire ao solo. Esse tiro, o tiro errado, é o tiro certeiro que atravessa a nuca do nosso Augusto Maria de Saa.

A rua passa a um inferno de sangue e gritos. As Reais figuras são rapidamente recolhidas no Arsenal, o Buíça e o Costa – os regicidas que a História acolheria nas suas negras páginas – são trucidados, nos minutos seguintes, pela raiva impotente da Guarda, com a ajuda de populares enfurecidos. Ninguém se preocupa com o corpo exangue de Augusto Maria de Saa, com a face na pedra suja, a sobrecasaca cinza manchada pelo vermelho do sangue português que o Brasil alimentara. Na confusão trágica dessa tarde, o país perdera o Rei e o Príncipe herdeiro, mas a Monarquia continuava, pelo menos por ora. O que acabara, de vez, era o destino de uma figura ímpar que a História iria esquecer por muito tempo: Augusto Maria de Saa.”

[*] Crabtree, Joseph William, “The new global philosophy and the impact of the Cornwall school dissent”, London, Barley & Peacock, third ed, 1887, pg. 623

“Thriller”


Se se fizerem bem as contas, cá por casa, 70% do tempo passado em frente da televisão (e eu não coloquei um sujeito nesta oração, note-se) é para ver o 24 Kitchen e o Fox Crime. Neste último, se alguém se atrasa um minuto, é certo e sabido que já “perdeu” o primeiro morto. Se acaso houvesse no mundo aldeias como aquela que é pastoreada pelo padre Brown, já estavam no Guiness e a CMTV tinha lá um correspondente!

Para que é que estou a dizer isto? Para que fique bem claro que, hoje à noite, entre as nove e trinta e as 11 e picos, vou ver “thrillers” desses, em sequência: não atendo a telemóvel nem olho os alertas no iPad. Mais: vou ver filmes até às 11 e meia, porque, se o Benfica estiver a perder, é óbvio que vão prolongar o jogo até conseguirem um empate.

Depois dessa hora, sem som (era só o que faltava ouvir gente a falar de futebol!), vou ver os golos do Sporting. “Olha lá! E se o jogo te trocar as voltas e o Sporting perder?” Nesse caso, só vejo o resumo amanhã e assisto a mais um filme. Ser sportinguista dá-nos um mundo interminável de opções.

Marcelo: venham mais cinco!*


O “Diário de Noticias” pediu ontem a 22 pessoas, um muito curto depoimento sobre o que elas esperam do próximo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa.

Aqui fica o meu:

Nenhum governo sairia indemne de um trauma nacional como o que foi provocado pelos efeitos económico-sociais desta pandemia. Nesse contexto, um Presidente da República relegitimado por eleições tem excelentes condições para ser visto pela opinião pública como um fator de “acalmação” política. Marcelo Rebelo de Sousa pode vir a ficar na nossa História contemporânea como um presidente que soube fugir à tentação de sair de Belém arbitrando em favor da família política de onde é oriundo sem, para tal, necessitar de ser simpático ou acomodatício com os socialistas. Necessita apenas de ser percecionado pelos portugueses como alguém que, em cada momento, fez aquilo que o país sentiu como sendo o que era necessário.”

* Espero que os “velhoquistas” me não desiludam e mostrem a sua indignação pela “infelicidade” do título que escolhi.

domingo, janeiro 31, 2021

Uma entrevista de vida


Quem nisso tiver interesse, pode assistir a uma conversa, talvez mais do que a uma entrevista, onde se fala da vida e do papel que a diplomacia nela teve.

Pode ver, clicando aqui.

“Observare”


O último programa “Observare”, na TVI 24, onde se fala da Venezuela, do Brasil, das Primaveras Árabes e de alguns outros temas, pode ser visto clicando aqui.

Amândio Silva


Foi há menos de oito dias. Tinha no meu telefone nota de um telefonema do Amândio Silva. Como, muito pouco tempo antes, numa conversa com o Carlos Cristo, eu tinha perguntado se o Amândio não tinha ainda escrito as suas memórias - um relato, por mínimo que fosse, sobre a sua extraordinária vida - pensei que o circuito se tivesse “fechado” e ele me viesse falar disso mesmo. Foi nessa convicção que lhe liguei de volta!

Mas não! O telefonema era para me transmitir um convite para estar presente num debate ... que iria ter lugar em 10 julho próximo! Uma iniciativa organizada pelo seu querido “Mares Navegados”, um belo grupo de gente com farta memória democrática, para cujas publicações o Amândio já me tinha desafiado por várias vezes, ao longo dos últimos anos. Sem sucesso, porque a minha vida, feliz ou infelizmente, é o que é.

Depois do detalhe sobre o objeto da conversa, perguntei-lhe pela sua saúde. Senti-o hesitante, vago, como se fosse tema que não lhe interessava abordar. Respeitei e não insisti. Horas depois, relatei o episódio ao Carlos Cristo, seu grande amigo. E, comungando na pena de sentirmos o Amândio bastante “em baixo”, mudámos de conversa, porque a falta de saúde daqueles que estimamos é o pior assunto que se pode abordar.

Conheci o Amândio Silva no Brasil, numa visita que me fez na embaixada, depois da minha chegada, estimulado por amigos comuns. E amigos ficámos. Eu tinha o seu nome registado desde há muito, da História, da coragem da LUAR, do belo assalto ao avião da Tap entre Casablanca e Lisboa, de tantas outras saudáveis e corajosas aventuras contra a ditadura. O Amândio Silva fazia parte da minha memória admirativa dos combatentes pela liberdade. Pela nossa liberdade.

Pode dizer-se que o Brasil, que o tinha recolhido em tempos convulsos, nunca verdadeiramente tinha abandonado o Amândio. Ficara-lhe na fala, na fonética e na sintaxe. E na muita e vasta vida que teve por lá, que muitas vezes era evocada por quem o conhecia.

O Amândio era um homem grande, cordial, com um abraço apertado, imenso. Fazia parte de uma geração que, depois do 25 de abril, nunca se fixou bem nas prateleiras ideológicas com que o regime político se institucionalizou. Na luta contra o fascismo, houve alguma, não muita, gente assim. O Amândio era um democrata desalinhado. A LUAR, a sua LUAR, foi também isso mesmo. E ele tinha toda essa graça heterodoxa, a pairar sobre as convições profundas que o alimentavam. Como ele, houve várias outras pessoas que acabaram por ficar numa espécie de terra de ninguém, às vezes sujeita às diatribes dos ortodoxos e, claro, dos caluniadores daqueles que lutaram de armas na mão pela democracia. Tenho, porém, uma coisa por muito segura: ele esteve sempre do lado certo da História!

Passou uma semana sobre aquela minha conversa com o Amândio. Numa limpeza ao meu email, encontrei um texto que ele me tinha mandado, já há cinco anos. Era uma carta a José Pedro Castanheira, sobre uma questão de 1975, sobre a LUAR e a FUR. Um testemunho muito interessante, que não vem agora ao caso.

O texto ali ficou, sobre a minha mesa. Até hoje! Até à data em que soube, pelo Carlos Cristo, que o Amândio tinha morrido Apetece-me dizer um palavrão! Vou resistir. Vou apenas dizer o que agora me apetecia dizer-lhe: Adeus, Amândio! Muito obrigado por tudo quanto fez para que pudéssemos ser livres. E quem nos dera a nós ser tão livres como você sempre conseguiu ser.

O lixo político

As eleições presidenciais tiveram lugar há uma semana.

Acabaram mesmo? Anda-se pelas ruas do país e aí estão cartazes e mais cartazes, a poluir a paisagem, uns em cima dos outros. Ninguém obriga ninguém a retirar esse lixo. Há uma cobardia política coletiva que impede que acabe com esta vergonha!

Em Lisboa, no Marquês, no Saldanha ou no Campo Pequeno, é um mar de placards políticos. Já experimentaram ver se isso acontece na Praça da Concórdia, em Paris, na Trafalgar Square, em Londres, na Times Square, em Nova Iorque, ou junto ás portas de Brandeburgo, em Berlim?

Num livro há semanas publicado, um dirigente de um grupúsculo confessou que passou horas a andar de carro, para tentar encontrar um lugar “vago” para colocar um cartaz do seu bando. E até escreveu que achava a lei atual, na matéria, demasiado permissiva. Acabou por pôr o cartaz numa via rápida, embora com receio manifesto de criar acidentes.

Noutro episódio, contou que encontrou um lugar que achou adequado mas que a empresa de publicidade achou dasagradável ter de cortar vegatação para permitir a implantação do placard. 

Aconteceu-lhe alguma coisa? Foi multado? Qual quê! A selva da propaganda política permite isto! E o conluio objetivo das autoridades faz o resto.

Platitudes


Mais do que o cansaço que sinto nas pessoas, preocupa-me o desânimo. É que a falta de perspetivas não é boa conselheira.

Esta pandemia tem vários tempos e já percebemos que nenhum nos garante o sentido do seguinte. Todos experimentámos a descompressão que o fim do primeiro grande confinamento nos trouxe. O ar livre, as esplanadas, com mais ou menos erros. Os restaurantes abriram, o negócio retomou, adaptámo-nos a um tempo que, longe de ser livre, parecia promissor.

Depois, de súbito, surgiram números pouco sossegantes. Dados contraditórios. E novas preocupações. Fechámo-nos mais. Em muitos casos, (confessem lá!), já com menos uso de gel nas mãos, com menor cuidado com o calçado.

A esperança na vacina que aí vinha dava-nos, contudo, um horizonte, embora sem datas. (Mas a vacina, salvo para alguns poucos, já se percebeu, vai demorar. Há que saber viver sem ela, até ver. Até vir.)

Depois foram as festas, o Natal, o discurso voluntarista sobre o prazer da reunião, com cuidados ao sabor do bom senso de cada um. (Confesso que tive logo um mau pressentimento). E o amigo que nos dizia que a prima chegava ao aeroporto sem lhe perguntarem nada.

Agora, isto. E o presidente já avisou: está para durar. Imagino que alguns digam: ele sabe tanto como nós. Esse enfraquecimento nas certezas que o poder nos comunica também não ajuda muito. Não ajuda nada!

Olho para a cara das pessoas e, por detrás das máscaras, imagino empregos perdidos ou em risco, negócios arruinados ou em desespero, empréstimos com prestações apenas adiadas, miúdos em casa, em casas pequenas, sem condições, com nervos em franja, vontade de sair, o medo à doença, tensões à flor da pele. E, sempre e até ver, a falta de um horizonte, a reforçar o tal desânimo.

Isto não está fácil! (Ora bolas, ele está para aqui a escrever o óbvio! Filosofia barata, como antes se dizia, é o que isto é!). Caramba! Também tenho direito às minhas platitudes, ou não? Durmam bem, se puderem.

sábado, janeiro 30, 2021

“Observare”


Na TVI, depois do jornal da meia noite, de sábado para domingo, poderá ver o ”Observare”, um programa sobre temas internacionais.

Com uma convidada especial, iremos falar da Venezuela, do Brasil, dos 10 anos das primeiras “primaveras” árabes. Eu lembrarei ainda a crise política na Itália e a luta dos democratas na Bielorrúsia.

Chinas

Ninguém de bom senso pode dizer que o sonho chinês de unificação com aquilo que é hoje Taiwan é uma ideia ilegítima. Ninguém com um mínimo de respeito pela democracia deve aceitar que isso possa ser feito sem ter em conta a vontade expressa de quem vive hoje em Taiwan.

Lei eleitoral

Quando não se quer fazer uma coisa, utiliza-se o estafado argumento de que há coisas mais prioritárias para fazer. José Magalhães já denunciou: os partidos vão uma vez mais arrastar os pés para não rever a lei eleitoral: voto da emigração, voto eletrónico, etc. Ninguém reclama?

Salvação?

Miguel Sousa Tavares, que tem muitas vezes razão, desta vez, no “Expresso”, não tem nenhuma: o PR criar um “governo de salvação nacional” é uma péssima ideia. Daria, a quem dele ficasse de fora, à esquerda ou à direita, uma arma demagógica e populista muito perigosa.

sexta-feira, janeiro 29, 2021

Já agora...

Nos Bilhetes de Colares, José Cutileiro falava muito do seu amigo Lowater, o “sábio de Kew”, um liberal que andava cá por Portugal, sem sucesso aparente, a sugerir a privatização dos cemitérios. Estranho muito que nenhum liberal da nova fornada tenha ainda avançado com a ideia.

Vacinas

Devo confessar que estou espantado - para dizer pouco - com a decisão de alargar a vacinação a um tão largo número de cargos públicos. Quem decidiu isso não se deu conta da polémica que ia criar? Não há um mínimo de bom senso?

Lei do mercado

Se Adolfo Mesquita Nunes assumir a liderança do CDS, uma “start-up” política que por aí anda vai entrar em falência rápida.

Decência

Gente que tenho por decente diz esta barbaridade: a única maneira de afastar o PS é, por muito que custe ter de concluir isso, fazer uma aliança com o “diabo”, isto é, com o Chega. É falta de confiança em conseguir vir a conquistar o eleitorado do PS e falta de ética política.

Escumalha

A melhor punição para a escumalha que “fura fila” na hierarquia de aplicação das vacinas é muito simples: assegurar que não tomam a segunda dose. Ficariam depois à espera da sua vez...

Liberais

Na história das ideias, o liberalismo foi uma doutrina política muito estimável e bem útil à fundação das democracias. Desde há uns anos, a sua filosofia foi praticamente capturada pela direita e vive um percurso extremado e radical, muito distante dos seus princípios fundadores.

Governo

Já aqui disse que tenho a profunda convicção de que, nas atuais circunstâncias, ninguém faria melhor à frente do governo do que António Costa. Mas não quero deixar de lamentar que o governo não assuma abertamente onde falhou e por que falhou, pedindo desculpa por isso.

“Pega na lancheira...”

A um comentário “escandalizado” por os deputados terem refeições, quando trabalham fora de horas, perguntei por aqui se se esperava que levassem lancheiras. Caiu o Carmo e a Trindade, como se fosse um insulto a quem usa lancheira! O miserabilismo é a doença infantil da demagogia.

Alertas

Àqueles “alertas” na internet do género “já há um golo na Mata Real”, com a espertalhice de nos quererem obrigar a abrir o link, para poderem contabilizar o clickbait, já tenho uma resposta: desligo a origem dos alertas. Há mais quem nos diga de quem foi o golo.

Eutanásia

Há questões, óbvias para muitos, que para mim o não são. A eutanásia é uma delas. Aceito sem dificuldade o princípio, mas interrogo-me sobre os possíveis abusos. Porque não sei, confio em quem tem obrigação de saber ou toma decisões bem informado. E não mando “bitaites”.

Liberdade, liberdade...

Olhando a comunicação social, fica a ideia de que qualquer titular de uma chefia no SNS se sente como o inalienável direito se queixar dos meios de que dispõe ou das orientações oficiais. Um embaixador ou um cônsul que experimente atuar assim e logo verá que há uns mais iguais do que outros...

Ainda Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa deu-se ao luxo de se “estar nas tintas” para aqueles que, sendo embora do campo político de onde ele era oriundo, estavam imensamente furiosos com o seu primeiro mandato. Não é segredo revelar que foi também por isso que muita gente de esquerda votou nele.

Brasil

Atenção à política brasileira: para Bolsonaro conseguir “emplacar”, como por lá se diz, o seu candidato à presidência da Câmara de Deputados, garantindo alguém que não aceitará o processo do seu “impeachment”, terá de abrir o governo à “velha política”, renegando o prometido.

Venezuela

Há um tema de aberta dissonância entre a UE e os EUA. O novo “MNE” americano, Blinken, anunciou, no Senado, que Washington continua a considerar Juan Guaidó “chefe de Estado“. A Europa já não lhe reconhece esse estatuto e trata-o apenas como “interlocutor privilegiado”. A seguir.

quinta-feira, janeiro 28, 2021

A vida relativa


Eu andava nos últimos anos do liceu. Uma noite, a rádio, no dia seguinte a televisão, no outro dia ainda os jornais do Porto que se liam lá por casa, em Vila Real, trouxeram o relato dramático do desastre. 

As fotografias, no preto e branco da época, mostravam as imagens de uma parte de um comboio que embatera contra uma ponte. Era em Custóias, junto ao Porto. Morreram 90 pessoas, que vinham da Póvoa e de Vila do Conde, depois de um domingo de praia.

Para mim, esse número pareceu-me sempre uma monstruosidade. Quase 100 pessoas! Caramba!

No ano anterior, a cobertura de cimento da estação do Cais do Sodré, em Lisboa, tinha caído, provocando meia centena de mortos. Um número impressionante! Mais ou menos o mesmo número de pessoas (o número exato nunca se soube, ao certo) que, duas décadas depois, não muito longe de Viseu, em Alcafache, viriam a morrer num acidente com o Sud Expresso, a caminho de França.

Trago comigo na cabeça esses números, desde sempre, como uma espécie de “benchmark” negativo das nossas tragédias coletivas. 

Hoje, ao ouvir que, só no dia de ontem, a pandemia levou mais de 300 vidas, não tive nenhum arrepio, só senti imensa pena. Como a gente se habitua às coisas, como tudo se torna tão relativo!

quarta-feira, janeiro 27, 2021

Um outro país que aí existe


Numa destas noites, para escapar ao debate político nas televisões, nas margens das regras de confinamento, saí a pé uns quarteirões. Deparei, numa porta iluminada, com uma loja de produtos de alimentação e de primeira necessidade. Não precisava de nada, mas entrei. Uma cara escura, com uma máscara negra, deu-me um “boa noite” com sotaque. Para justificar a incursão, comprei qualquer coisa, de que, verdadeiramente, não sentia falta. Ao contrário do que costumo fazer com os estrangeiros com quem calha cruzar-me no mundo do comércio, nos restaurantes ou nos Uber, não perguntei de onde era. Sri Lanka ou Bangladesh ou Paquistão seria, com certeza, a resposta. Mas podia ser o Nepal, mas raramente a Índia.

Desde que me conheço, tenho um sentimento muito sincero de simpatia pelos estrangeiros que trabalham entre nós. Sinto-me feliz por ser parte de um país que acolhe gente vinda um pouco de todo o mundo, fazendo nós assim, sem o assumirmos, uma espécie de retribuição pelo facto de, desde há séculos, muitos compatriotas nossos terem andado fora de fronteiras à procura de melhor vida e de aí terem tido, com maior ou menos dificuldade, oportunidades para navegar o seu destino.

Quando por aí me cruzo com caboverdeanos ou angolanos ou santomenses, a esses quase que os não coloco nesse mundo de forasteiros imigrados. São “da casa”, tal como muitos brasileiros. Mas acho imensa graça ao facto de haver chineses um pouco por todo o lado, de ter migrantes do Leste europeu quase confundidos connosco, de poder ter gente do Industão no nosso comércio de bairro. Encontrar gente diversa a partilhar a nossa vida, saber interagir com eles, respeitá-los e dar-lhes oportunidades de mostrar que são bem vindos e que gostamos de os ter por cá torna-nos um país melhor.

Por que é que falo disto agora? Porque Portugal, gostemos ou não de ouvir isto, vai entrar numa crise económica, e que, por muitas “bazucas” que houver, elas só terão efeitos a prazo pelo que, no imediato, virá por aí algum desemprego. E o desemprego que, como é sabido, afeta, em prioridade, os imigrantes, cria pobreza, instabilidade social e criminalidade, não sendo de excluir que alguns estrangeiros possam ser apanhados nessa malha. E como sabemos que a imprensa do crime não tem a menor ética anti-xenofóbica ou anti-racista, sendo mesmo atiçada pela onda nacionalista que agora chega, as pessoas decentes vão ter a obrigação de assumir uma resposta política a uma rejeição dos estrangeiros, que pode estar aí ao virar da esquina.

terça-feira, janeiro 26, 2021

Já é azar!


Conseguir um estacionamento perto do oculista, com uma farmácia em frente, onde “aviei” uma receita que trazia à mão desde ontem, prenunciava um bom início de tarde. Esta Lisboa pandémica, tem uma vaga em cada esquina. Função executada, regresso ao carro. Não abre! Não abre? Não abre! Ó diabo! Será a pilha?

O Smart tem 10 anos, 20 mil quilómetros e faço trinta por uma linha com ele, nesta quarentena, pelos altos e baixos da cidade. A chave tem essa idade e a pilha, imagino, não é, com certeza, mais nova. Comprei-o em Paris, um ano e pouco antes de regressar a Lisboa. Foi num stand junto ao Trocadéro, a um luso-descendente simpático e falador (em francês), satisfeito por vender um carro ao embaixador da terra dos pais. Nunca nos deu problemas. Só hoje!

Ainda bem que a EMEL está de férias! Se o carro não arrancar, fica mesmo ali. Há, lá por casa, outra chave. Se não, avança o reboque do ACP. De qualquer forma, é uma chatice! Agora, lá tenho de ir à vida de Uber ou de táxi. Usar o mínimo possível transportes alheios tem sido a minha regra nesta época. Mas lá terá de ser!

À lisboeta clássica, chega-se um transeunte, pelo passeio. “Então não abre, é? Deve ser da humidade”. Sei lá se é! Só sei que o carro não dá sinal! Vou à porta contrária, forço a fechadura. Nada! Passaram-se, entretanto, cinco minutos, comigo a hesitar sobre o que fazer.

Aproxima-se, entretanto, outro cidadão, este atravessando a Avenida António Augusto de Aguiar: “É capaz de ser da chave!”. Olha o espertalhote! Até aí chegou o Neves! “Com esta deve dar!”, diz o homem, com o que devia ser um sorriso por detrás da máscara: “É que este é o meu carro. O seu deve ser aquele, que está ali, um pouco mais acima, farto de acender as luzes...”

E lá fui para o meu carro.

segunda-feira, janeiro 25, 2021

Rosalina Machado


Era uma mulher-sorriso, uma presença muito agradável, a simpatia em pessoa. Conheci-a, há muitos anos, através de amigos comuns. Era uma figura solidária, uma empresária corajosa. Na última década, encontrámo-nos na tertúlia “Grupo Amizade”, sob o simpático acolhimento do João Flores, que há meses desapareceu. A Rosalina, no dia seguinte ao seu marido Francisco, sai hoje de cena. Muito triste.

Para os próximos anos

Já muita gente disse isso, mas acho que é importante repetir que os fascismos e populismos são respostas erradas para problemas reais. Se não se perceber isto, os Venturas e quejandos continuarão a progredir e a ser vistos como a solução.

Uma leitura (útil) de Paulo Querido

“A recomposição da direita portuguesa não se fica pelo Chega. O partido Iniciativa Liberal tem feito um caminho praticamente simultâneo. 

Ambos nasceram dentro de um período de dois anos a tempo de disputar as eleições de 2019, ambos elegeram um deputado à Assembleia da República, ambos sangram os outros dois partidos da direita, ambos têm crescido em reconhecimento e em intenções de voto. 

O IL tem tido uma subida menos acentuada, refletindo a diferença entre populismo e responsabilidade, bem como a diferença entre grunhice e educação. Por cada eleitor educado que o IL tirou ao CDS, o Chega tirou três eleitores arrivistas e topa-tudo ao PSD. 

Mas o IL é um poço de equívocos. Muitos vêem nele uma movimentação tão ou mais perigosa para a democracia que o Chega. A hiper-valorização do capitalismo enquanto valor é a principal responsável por essa visão redutora. Os valores sociais que estão presentes no IL raramente ou nunca afloram no confronto de argumentos. Os mantras do “mercado”, do “capitalismo” e da meritocracia e a aversão, ódio mesmo, ao setor público conspurcam de tal forma as conversas que o liberalismo de costumes não tem a menor hipótese de comparecer na mesa. 

Socorro-me da Wikipedia para estabelecer que as ideias e partidos que adotam o liberalismo social são considerados de centro. Assim, os liberais sociais encontram-se entre os mais fortes defensores dos direitos humanos e das liberdades civis, embora combinando esta vertente com o apoio a uma economia em que o Estado desempenha essencialmente um papel de regulador e de garante do acesso de todos (independentemente da sua capacidade económica), aos serviços públicos que asseguram os direitos sociais considerados fundamentais. Todavia no liberalismo social, o Estado não tem obrigatoriamente de ser o fornecedor do serviço público, tendo apenas de garantir que todos os cidadãos têm acesso a serviços públicos básicos, independentemente da sua capacidade económica. 

Ora, o Iniciativa Liberal nasceu agrupando liberais puros e impuros. Estes dois grupos têm um passado pouco recomendável: ambos estiveram na fissão do PSD, empurrando o cabide sublimemente formado na juventude do partido para todas as ideologias, Pedro Passos Coelho, para a liderança, encomendando-lhe uma cartilha neo-liberal bem robusta. (A troika diz mata? Meninos do coro! Moles! Nós dizemos esfola! Nem mais um feriado para a corja!)

O neo-liberalismo — a desregulação selvagem somada à destruição de direitos do trabalho e, em países sem tradição liberal como Portugal, à canalização dos recursos públicos para a iniciativa privada — dominou os primeiros passos da geração de liberais impuros, empolgados com o empoderamento que a blogosfera lhes concedeu no início do século.

Os que andaram com Passos ao colo nos media e chegaram ao tristemente célebre governo de desnorte nacional de Passos/Portas, entre ministros, secretários de Estado, gabinetes e comissões de serviço na Imprensa, eram mais thatcheristas e reaganistas que os próprios mãe e pai do neo-liberalismo. Finda, com traumático estrondo, a irrepetível deriva neo-liberal do PSD, os que não se tinham comprometido demasiado na aventura foram à procura de nova saída. Como deviam. 

À sua espera de braços bem abertos estavam os liberais puros — tão puros que não se tinham metido no comboio de assalto ao PSD e à Assembleia da República. Outros nem sequer andaram alguma vez com o crachá da esfinge de Reagan nem com o pullover estampado com o icónico rosto de Thatcher a vermelho e azul. 

Um pouco como o Bloco de Esquerda a reunir tribos com práticas divergentes, o partido Iniciativa Liberal reuniu tribos liberais com passados divergentes: liberais sociais misturados com neo-liberais duros. 

Ora, enquanto na direção (da fundação aos atuais corpos) pontificam os puros, o combate nas ruas tem estado a cargo dos impuros, muitos dos quais não conseguiram despir a tempo o fato-macaco passista. O grosso da imagem do partido resulta da atividade destes nas redes sociais. Os cartazes irreverentes não se sobrepõem, muito menos o discurso ponderado do presidente do partido e deputado à AR — e do candidato à Presidência da República, já agora. 

Não admira, portanto, a confusão. E a desconfiança.”


https://pauloquerido.medium.com/

10 “tweets” da noite eleitoral


* A direita não ganhou esta eleição. O vencedor matemático desta eleição chama-se bloco central e concorreu sob o heterónimo de Marcelo Rebelo de Sousa.

* Muito a sério: é importante que Ana Gomes tenha ficado à frente de André Ventura. (Porque há prioridades em política, não contribuí para isso). Pode ser só simbolismo, mas o simbolismo é significativo em política.

* Marcelo Rebelo de Sousa (31.5.19). ”Há uma forte possibilidade de haver uma crise na direita portuguesa nos próximos anos. (Por isso é que) “o Presidente (...) é importante para equilibrar os poderes”.

* No dia em que Rio sair (o que pode acontecer com um resultado desastroso nas autárquicas), o “passismo” (com o próprio ou alguém por ele) regressará. Nessa altura, a IL desaparecerá e o balão Ventura desinflará. Mas o Chega veio para ficar e será com certeza aliado desse PSD.

* Com sincera pena o digo: o CDS é, nos dias de hoje, uma mera realidade virtual.

* O discurso de Rui Rio é das maiores ficções políticas desta temporada.

* Ventura teve um excelente resultado mas isso não deve ser lido em termos de eleições legislativas. Nele votou muita gente PSD que quis punir não só Rio mas também Marcelo, na certeza que tinha de que este último ganharia. Em legislativas, tudo será diferente.

* O PCP tem hoje um dia histórico, mas não pelas melhores razões.

* Ventura deve fazer parte dos “homens de bem” que o slogan do Chega apregoa. E, como é sabido, as pessoas de bem cumprem sempre a sua palavra. Assim, se ficar atrás de Ana Gomes, o seu partido fica esta noite sem líder, porque vai demitir-se, não é?

* Brinquem, brinquem, mas se não fosse o apoio do CDS, Marcelo estava agora a lutar pelo segundo lugar. Essa é que é essa!

domingo, janeiro 24, 2021

“Observare”


Pode ver aqui o último “Observare”, o programa de relações internacionais da TVI 24.

Dias de presidenciais


Baptista-Bastos tinha, como pergunta sacramental das suas entrevistas, o “onde é que você estava no 25 de Abril?”. Hoje, deu-me para perguntar a mim mesmo onde estava nas datas das nove eleições presidenciais até hoje realizadas em democracia.

Em 1976, estava em Lisboa, já era funcionário diplomático, e a vitória de Eanes não me sossegou nada. Achei que poderia vir aí o pior. O futuro veio a provar que estava errado! Cinco anos depois, votei nele, sem entusiasmo mas com convicção, contra um Soares Carneiro que - esse sim! - me assustou muito. Hoje, tenho grande consideração por Ramalho Eanes, não obstante algumas críticas que nunca escondo.

Com Mário Soares, em 1986, na disputa contra Freitas do Amaral, a noite da sua vitória foi uma imensa alegria. O pessoal de chapelinhos de palha à volta do candidato da AD causava-me forte urticária política. Eu, que nem sequer era então um soarista, senti um grande alívio ao vê-lo entrar em Belém. Não tenho memória de ter tido a menor reação aquando da sua natural reeleição, em 1991, comigo já a viver em Londres.

Verdadeiramente empolgante foi, para mim, a campanha de Jorge Sampaio, em 1995/96. Tinha-me envolvido no lançamento da candidatura, entrara entretanto para o governo e lembro-me bem da grande satisfação que senti nessa noite! Se a vitória de Soares, uma década antes, era quase “existencial” (porque achei, sem razão, que a democracia podia estar a correr riscos), a de Sampaio representava colocar mais uma pedra sobre o cavaquismo, o qual, três meses antes, já tinha sido afastado do poder executivo. Para pessoas como eu, eleger Sampaio era o culminar de um projeto geracional. Mais tarde, a sua reeleição, em 2001, foi um “passeio”. Nem recordo essa noite, num tempo em que eu estava a mudar de vida e de geografia, com problemas familares graves a preocuparem-me muito.

Em 2006, estava embaixador no Brasil quando Cavaco Silva chegou a Belém. Não era uma data feliz, mas era a democracia a ser cumprida. Recordo, nessa tarde, ter encerrado as urnas, na embaixada em Brasília, e ter partido para o Amapá, no extremo norte do país, onde tinha uma cerimónia no dia seguinte. Cheguei lá de madrugada e esqueci o sufrágio. Meses depois, passei por Lisboa, e fui o primeiro embaixador a ser recebido por Cavaco Silva, com quem tive um relacionamento sempre muito correto, durante a sua década em Belém. Mas não esqueço, em 2011, comigo embaixador em Paris, o incrível discurso azedo de Cavaco no CCB, na noite da sua reeleição. Costuma dizer-se que há candidatos que não sabem perder. Cavaco provou, nessa noite, que não sabia ter grandeza na vitória.

Em 2015, não votei em Marcelo Rebelo de Sousa. A minha aposta foi Sampaio da Nóvoa, que fez uma campanha com grande dignidade, tal como a minha amiga Maria de Belém Roseira. Nunca tive dúvidas sobre o sentido de Estado de Marcelo, pelo que, sem hesitação, lhe dei o benefício da dúvida, desde a posse. E ele mereceu em pleno essa minha confiança, por muitas críticas que se possam fazer ao exercício do seu mandato. Por isso, é com satisfação que hoje vejo a sua reeleição.

Carlos Antunes


Não sei exatamente quando conheci o Carlos Antunes. Ele era, para mim, uma figura quase mítica, desde antes do 25 de abril, na oposição violenta contra a ditadura.

Nos “anos da brasa” de 1974/75, não me recordo de nos termos cruzado alguma vez, embora isso pudesse ter acontecido. 

Tenho, assim, quase a certeza de que foi o Nuno Brederode Santos quem nos apresentou, numa noite dos anos 80, na Mesa Dois do Procópio, na primeira das vezes em que o encontrei por lá, quase sempre com a Isabel do Carmo.

A partir daí, nas ocasiões em que por acaso nos juntávamos, belas conversas pela noite dentro fomos tendo! O Carlos era um conversador magnífico, tinha um estilo, ao mesmo tempo empolgado mas com grande serenidade, de contar histórias, sempre com um sorriso a acompanhá-las! E que vida para contar que ele tinha!

Seria também no Procópio, em inícios de 1995, e isso recordo muito bem, que o Carlos se envolveu numa discussão acesa com o Agostinho Roseta, a propósito de um episódio passado em 1975, cujos pormenores não vêm para o caso. Seria essa, aliás, a última noite em que eu vi o Agostinho, um grande amigo, antes dele morrer.

O Carlos e a Isabel passaram a fazer parte da lista de convivas que, desde 2004, eu convocava para o jantar anual da Mesa Dois, uma organização que assegurei por uma década. Lembro-me de, por duas vezes (no “Manel” e no “Vírgula”), o ter deliberadamente colocado ao lado do Caetano da Cunha Reis, testando assim a convivialidade obrigatória do grupo: o Carlos vinha das pontas extremas da esquerda política, o Caetano havia sido fundador da Juventude Centrista. Deram-se lindamente! Tenho prova fotográfica disso! Essa era uma das “artes” da Dois!

Guardo, em especial, um almoço magnífico com o Carlos, organizado pelo António Dias, também com o José Manuel Correia Pinto, no restaurante do Teatro Aberto, numa data do início do século que não consigo precisar. Foram quase três horas memoráveis (o restaurante queria fechar e nós continuávamos vidrados na conversa), com o Carlos, naquele seu jeito suave e envolvente, a contar-nos os seus tempos da clandestinidade, de Bucareste a Paris, de Argel a Moscovo, com histórias passadas em reuniões com Álvaro Cunhal, em países do Leste europeu, quando ainda andava nas águas do PCP. Fiquei com pena de não ter ali um gravador, porque só aquilo tinha dado um livro muito interessante. Depois disso, várias vezes o estimulei a um exercício desse género, com o qual a história da oposição à ditadura e das dissidência do PCP muito ganhariam. Não sei se o fez.

Vi o Carlos, pela última vez, no Chiado, já há uns tempos. Meia hora de conversa na rua do Carmo soube a pouco. Ficámos de marcar, para um dia futuro, mais um almoço. Afinal, não há futuro para esse almoço. Acabo de saber que o meu amigo Carlos Antunes morreu do vírus que por aí anda. Começo a ficar muito chateado com o destino!

“Casa Carlucci”


Não tinha notado que, à residência do embaixador americano em Portugal, havia sido dado o nome de “Casa Carlucci”, como se vê num azulejo na parede. (Passei por lá há pouco).

Constato que essa foi uma decisão do representante diplomático que Trump manteve por cá nestes quatro anos.

Daqui a uns meses, chegará a Lisboa um novo embaixador americano.

Depois de escolhido pela nova administração, o novo representante passará por um escrutínio parlamentar, como é de regra em algumas democracias presidencialistas, e por um “curso” acelerado de diplomacia no “State Department”. Oriundo da sociedade civil, o novo nome será uma escolha política da equipa do novo presidente. Será, como é de regra, acolitado por uma equipa competente de profissionais, na excelente escola da diplomacia americana, que o ajudarão à sua tarefa em Lisboa.

Dada a importância do país que vai representar, o novo embaixador americano vai encontrar, no seio da sociedade portuguesa, todas as portas abertas, desde logo começando pelas institucionais.

Se souber transmitir uma mensagem de simpatia e respeito pelo país onde está acreditado, pode vir a criar um terreno muito positivo de trabalho. Muitos dos seus antecessores souberam fazer isso, criaram uma excelente relação com Portugal, ganharam aqui amigos, prestigiaram o nome dos Estados Unidos entre nós e, dessa forma, foram muito eficazes.

Se, pelo contrário, o futuro embaixador, a exemplo de outros de quem não ficam saudades, optar por uma outra atitude, as coisas não se passarão assim.

Ao seu lado (geograficamente, quase em frente, como se vê na outra fotografia, também de há pouco), a embaixada e o seu titular terão a FLAD, a Fundação Luso-Americana, uma instituição que liga os dois países e que pode ter um papel muito interessante na relação bilateral. Nenhum outro Estado tem, por cá, uma instituição similar, com o prestígio que a Fundação tem sabido ganhar, embora apenas em alguns dos seus ciclos, como é o caso atual. Aproveitar bem a FLAD é algo que muito poderá contribuir para uma sã e proveitosa relação bilateral.

Termino com um mistério, na presença diplomática americana em Lisboa, que nunca consegui desvendar.

Com muito raras exceções, nunca vi os representantes diplomáticos americanos a associar-se à promoção da fantástica literatura que se produz no seu país, nunca ligamos a sua imagem à divulgação dos artistas plásticos americanos, nunca os colamos à sua extraordinária produção musical, da música clássica ao jazz e a tudo o resto. E o cinema? Onde é que vemos a embaixada americana dar nota de interesse pelo ímpar cinema que se produz no seu país? Onde para a cultura na ação diplomática americana em Portugal? Digo isto também na qualidade de frequentador do Centro Cultural Americano que existia na Avenida Duque de Loulé, em Lisboa, nos anos 70.

A América oficial que por aqui, em regra, se mostra parece sempre muito longe disso. Fala de comércio e de investimento, fala da NATO e das Lajes, refere-se à nossa diáspora por lá e aos políticos com origem portuguesa que vão emergindo. E de pouco mais. Os amigos portugueses da embaixada são, por regra, gente ligada à política, raramente à cultura. Será que o futuro embaixador (ou embaixadora, como já aconteceu no passado) nos vai surpreender?



sábado, janeiro 23, 2021

 


“Observare”



Depois do noticiário da meia-noite, de sábado para domingo, na TVI 24, Carlos Gaspar, Luís Tomé e eu, sob a moderação de Filipe Caetano, estaremos em mais um “Observare”, onde analisaremos a posse e o início da presidência Biden, a prisão de Alexei Navalvy e o que isso pode revelar da atual situação política na Rússia.

Pela minha parte, salientarei também duas questões africanas: a possível recandidatura presidencial de Sassou Nguesso, no Congo-Brazaville, depois de 37 anos de exercício do cargo, e a deslocação do MNE português, Augusto Santos Silva, a Moçambique, representando a União Europeia, com vista a dialogar sobre o que a Europa poderá fazer para acorrer às dificuldades humanitárias e securitárias no norte daquele país.

Por razões óbvias, mas muito especialmente para enviar um sinal público para a necessidade de prudência nos contactos físicos, o programa foi feito com meios telemáticos.

Máscaras de pano

Não sei se já notaram que, em vários países europeus, começaram a ser desaconselhadas as máscaras de pano. Desde há muito que gente qualificada afirmava que esses trapos de cores, às vezes a “rimar” com a roupa, eram um adereço pouco eficaz. Agora, ao que parece, essa ineficácia tende a confirmar-se!

Reconhecimento

Seria justo que as autoridades manifestassem publicamente o reconhecimento da comunidade aos cidadãos que fazem parte das mesas de voto, neste momento complexo. Por muitos cuidados que existam, atendendo à exiguidade de muitos espaços, alguns vão correr riscos. 

Eu agradeço-lhes.

Incivilidade espertalhota

Devia ser tornado público o “quadro negro” dos espertalhões que, usando abusivamente as suas funções, “furaram a fila” para se poderem vacinar antes de quem tinha prioridade.

Neste tempo difícil para todos, não me repugnaria ver legislação de exceção para punir essa gente.

Larry King


Aprendi muito sobre o mundo e a política a assistir às entrevistas de Larry King na CNN. Vou ter saudades daqueles suspensórios. A pandemia levou agora Larry King.

Olrik por Védrine



Para parte da geração portuguesa que teve a infância ou juventude nos anos 50 do século passado (por alguma razão, custa-me sempre escrever a expressão "do século passado"), as aventuras de "Blake et Mortimer", da autoria de Edgar P. Jacobs, são, ainda hoje, uma recordação muito viva.

Figura importante da excelente escola belga de banda desenhada, de que Hergé é, sem a menor dúvida, o maior expoente, Jacobs abria-nos o mundo através de álbuns de uma fantástica qualidade e fruto de cuidado estudo, que agarravam a nossa imaginação e nos transportavam para cenários muito realistas, às vezes quase plausíveis.

Quando vivi em Londres, não resisti a reproduzir a pé os percursos do "Marca Amarela" e do Dr. Septimus. Ao entrar, um dia, no museu do Cairo, no Egito, a figura do Professor Grossgrabenstein (que só pode ter sido inspirada, "avant la lettre", no meu amigo Caetano da Cunha Reis) veio-me logo à memória - este último saído desses dois álbuns sem par que constituem "O Mistério da Grande Pirâmide". Até os Açores passaram pelas histórias de Jacobs, no "Enigma da Atlântida".

A trama jacobiana centra-se sempre numa dupla de amigos, um militar e um cientista, envolvidos na luta eterna, pelo lado do "bem", contra um inimigo permanente, Olrik, que encarna os vários males e que tem uma capacidade de sobrevivência que acaba por nos causar mesmo alguma admiração. As mulheres, confirmando uma misoginia muito própria de um certo período da banda desenhada europeia (mas não, curiosamente, dos "comics" americanos, sendo embora da mesma época), têm sempre um papel muito escasso nestas tramas, surgindo apenas com algum relevo nos álbuns desenhados pelos seguidores de Jacobs, já após a sua morte, em 1987.

A que propósito vem esta evocação? É que, há dias, dei conta de que tinha sido publicada uma “biografia” dessa “infamous” figura que é Olrik. E quem é que a escreve? O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Hubert Védrine e o seu filho Laurent, cineasta.

A Amazon fez-me hoje chegar o livro, num pacote de “takeaway” livresco que, às vezes, me dou ao luxo de consumir, nestes tempos de confinamento.

Hubert Védrine foi ministro dos Negócios Estrangeiros de França, durante o governo Jospin. Antes, havia sido íntimo colaborador de François Mitterrand, em torno de cuja figura fez um livro que considero essencial para melhor se perceber o antigo presidente - "Les Mondes de François Mitterrand".

É um homem sereno, que pensa a política externa com grande cuidado, sublinhando as vantagens de olhar os tempos em perspetiva, evitando juízos radicais ou moralistas, mas não caindo nunca num relativismo de "realpolitik".

Conheci-o bem quando, ao tempo em que ele era homólogo de Jaime Gama, nos cruzámos em dezenas de horas de reuniões, nos idos de 90, e, em especial, no processo de sucessão das presidências portuguesa e francesa, em 2000.

Foram tempos complexos, em que nem sempre estivemos de acordo, antes pelo contrário. Mas guardámos uma excelente relação pessoal, que prolongámos em encontros em Nova Iorque e, mais tarde, por várias vezes, em Paris. Falámos de muitas coisas, mas nunca calhou falarmos de Olrik...

Aproveito para contar um episódio passado com Védrine, há 21 anos, quase dia por dia, em Paris. 

Estávamos em finais de janeiro de 2000. Como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, eu tinha ido a Paris, a convite do meu contraparte Pierre Moscovici, ministro-delegado para os Assuntos Europeus. Reuni com ele no Quai d’Orsay, onde almoçámos. Durante a refeição, chegou a indicação de que Hubert Védrine queria ver-me, no final da refeição.

Notei que Moscovici ficou intrigado. Védrine era o seu chefe, mas não era segredo para ninguém que as relações entre ambos eram muito difíceis. Imagino que, no momento, lhe tivesse passado pela cabeça que o ministro, que ele sabia que me conhecia pessoalmente muito bem, quisesse dizer-me algo à sua revelia, em particular. Porque sempre gostei de jogar com as cartas em cima da mesa, Lancei-lhe, de chofre: “Não queres vir comigo?” Hesitou, mas foi.

Quando entrámos no gabinete de Védrine, ainda nos não tínhamos sentado, este, sorrindo, disse-me: “Sabes que este é um momento quase histórico?”. Não percebi, mas ele explicou, com o esgar “mitterrandiano” que tinha: “Porque esta é uma das muito raras ocasiões em que o Pierre aqui veio, desde que ambos estamos no governo.” Moscovici riu, mas o riso foi bastante amarelo.

sexta-feira, janeiro 22, 2021

O novo amigo americano


Os Estados Unidos da América são um país amigo de Portugal. A nossa relação é muito assimétrica: para Portugal, a ligação transatlântica é um eixo central da nossa postura externa - o único que sobreviveu ao 25 de abril. Para os Estados Unidos, Portugal tem uma escassa importância como aliado. Pelo meio, estão, claro, as Lajes, mas até aí as coisas são o que são: para Washington já não é um dossiê vital, para Lisboa é um tema com diversos impactos, em especial internos. Por isso, existe sempre a expetativa de que uma nova administração o venha a tratar de uma forma que leve em conta os interesses que temos por relevantes. As desilusões, neste domínio, costumam ser bastantes, vale a pena dizer.

Não estou no segredo dos deuses, mas posso crer que foi imensa a satisfação, nas Necessidades e em S. Bento, pela saída de cena de Trump. E, em Belém, não deve ter havido luto.

Para aquilo que é a aposta externa portuguesa, o multilateralismo é uma doutrina que Lisboa de há muito cultiva. Ora Trump tinha enterrado essa via. Por isso, e porque a reeleição de Guterres é algo que agora também renasce com grande plausibilidade, a chegada de Biden é mais do que bem vinda. Custa-me dizer isto com estas palavras, mas, para nós, é muito confortável ver um país amigo, com a importância dos Estados Unidos, chefiados por um homem decente.

A administração Biden, muito “graças” a Trump, criou grandes expetativas por todo o mundo. Muito provavelmente muito maiores do que aquelas que conseguirá concretizar. A América de Trump não é a mesma de Biden, mas é importante ter presente que muitos dos interesses americanos, que a este vai cumprir defender, são precisamente os mesmos s que, de uma outra forma, Trump prosseguia. Por isso, para além do imenso mundo de mudanças que uma nova e constrastante administração acarretará, há “adquiridos” consagrados nos último ciclo político que não serão deixados cair nos anos que aí vêm. E a área das relações externas é, muito provavelmente, aquela onde isso poderá ser mais sensível. Posso estar equivocado, mas o Médio Oriente é o terreno onde, provavelmente sob uma nova linguagem, a fórmula clássica de Lampedusa tem mais condições para ser aplicada.

A Europa sofreu um trauma profundo com Trump. A Alemanha, em especial, ficou muito marcada pelo descaso a que foi votada pelos EUA, nos últimos anos. Enquanto que, num país como a França, Macron pode ter tido ainda a ilusão fátua de que poderia ser singularizado como o interlocutor europeu - como único poder nuclear e com capacidade militar significativa, depois do Brexit -, na Alemanha, a atitude de Trump foi sentida como uma rutura com os EUA. Há a sensação de que, mesmo que Biden possa tentar recolar o que se partiu, nada será igual no futuro. A menos que um pós-Merkel nos possa trazer sinais diferentes. A pressão alemã para fechar, mesmo à pressa, o acordo económico europeu com a China, sabida a importância que ao assunto seria sempre dada pela futura administração Biden, parece revelar que a ferida é muito profunda. 

Quando se acorda de um pesadelo, há uma sensação imediata de bem estar. Depois, damo-nos conta de que, embora tudo podendo ser pior, como no pesadelo, afinal, no dia a dia, também temos de reduzir ou atenuar as nossas ambições, porque a vida é o que é e não aquilo para que os sonhos apontam. A América de Biden é, antes de tudo, a América. Mas, para já, os aliados dos EUA parece terem ganho um novo amigo americano. E isso, aconteça o que vier a acontecer, é uma excelente notícia!

Lembrei-me do Luís


O Luís morava num primeiro andar na esquina da rua das Trinas com a rua das Praças, por cima do Berimbar. (Passei lá, há pouco, na minha caminhada noturna). O Luís era arquiteto e vivia com o Afonso, um brasileiro divertido, amigo de Malú Futscher Pereira. Com eles e com ela, algumas vezes, fomos jantar à “Adega dos Macacos”, uma tasca na praça dom Luís, que, por razões misteriosas (e gastronomicamente injustificáveis), a todos eles, que não a mim, caíra no goto. 

Um dia, em Angola, nos anos 80, o José Guilherme Stichini Vilela, que, como eu, era diplomata na embaixada, revelou-me que conhecera, já não sei por que luas, um arquiteto, a quem tinha encarregado da renovação de um velho apartamento que comprara, em Lisboa (e que, curiosamente, fica hoje a menos de 100 metros da minha casa, porque isto é uma aldeia). Olhei os desenhos e vi que estava perante um homem de extremo bom gosto. Chamava-se Luís Gomes de Abreu.

Nesse entretanto, também eu acabei por comprar um apartamento antigo, para os lados do Campo Pequeno, que queria remodelar. Escrevi ao Luís uma carta com 27 páginas dactilografadas, dizendo, com precisão, o que queria fazer na casa, que visitara por um quarto de hora e de que apenas tinha uma planta e fotografias. Respondeu-me com uma de 15, manuscrita, com uma letra curiosa. (Ele, entretanto, também escreveu ao Zé Guilherme, perguntando se “o seu amigo por acaso não é maluco”. Eu tinha era tempo!).

Fiz de conta que não sabia do comentário. Numa vinda a Portugal, conhecemo-nos e acordei tudo quanto ao trabalho. O vai e vem da mala diplomática já tinha arrumado todos os pormenores.

Não podia ter feito melhor opção. O seu profissionalismo era imenso, a sua engenhosidade era inesgotável, embora o seu preço não fosse nada barato. A obra saiu mesmo muito bem.

O Luís era uma figura interessante. Pesado, jovial, com um sorriso aberto, um pouco sarcástico, o que me dava justificação para o provocar. Andava sempre impecavelmente vestido. Não tinha um feitio fácil, era muito teimoso, muito orgulhoso daquilo que fazia, renitente, até à exaustão, às sugestões dos "donos das obras". Mas eu conseguia ser ainda mais obstinado e, como cliente, era “chatíssimo” (expressão dele, assumida). Exigi-lhe pormenores impensáveis: "nunca encontrei um cliente que me pedisse um desenho de uma sanca em tamanho natural, sem aceitar um desenho em escala", disse-me um dia: "só você!".

Tinha um atelier no Bairro Alto, ao lado de um dos mais sinistros restaurantes de Lisboa, o “Pucherus”, pouso de dias pouco abonados no final dos anos 60. Às vezes, partíamos do ateliê para jornadas bem divertidas. Ah! E, politicamente, o Luís era um reacionário “de primeira”. Discutíamos imenso e acho que ele se vingava cobrando caro. Mas as nossas "pegas" foram sempre cordiais, em noites de conversa e copos, divertidíssimas, em que ficámos amigos e, depois, quase vizinhos.

Recordo uma noite nossa com o Luís, no velho "Botequim", da Graça. Havia eleições uns dias depois, e, a certa altura, ele disse, em voz alta, que se ia abster. O que ele foi dizer! A boquilha da Natália avançou logo para nós, com o Luís a envolver-se numa homérica discussão com ela, que acabou por se mudar para a nossa mesa. A certa altura, o Luís disse para a Natália: “Mas nós até estamos de acordo na política! Este meu amigo é que é de esquerda!” Desastre! De repente, passei a alvo de Natália Correia, com o Luís divertido e o meu argumentário já um pouco debilitado pelo consumo líquido da noite. Já nem sei como aquilo acabou, lá para as quatro da manhã! Até o Dórdio a veio chamar várias vezes!

Voltei a ter o Luís como arquiteto, na casa onde hoje vivo. E, claro, voltámos a "pegar-nos" sobre a obra... Mas continuámos amigos. E ele continuava a fazer as coisas sempre muito bem.

Desde sempre, o Luís tinha uma rotina ímpar: era a primeira pessoa a mandar-nos boas-festas. Chegavam sempre no início de Dezembro. Já não chegam. O Luís morreu em 2012. A casa lá está, como a fotografia, de há minutos, mostra. Lembrei-me dele.

Hoje, aqui na Haia

Uma conversa em público com o antigo ministro Jan Pronk, uma grande figura da vida política holandesa, recordando o Portugal de Abril e os a...