quinta-feira, setembro 22, 2022

Segurança

Anda aí uma polémica sobre a adjudicação de um contrato para um regulamento municipal sobre trotinetas e coisas assim. A mim tanto me faz quem vai escrever o texto, desde que o faça bem. A única coisa que gostava (mas temo muito que não aconteça) é que a regulamentação não viesse a ter a menor ambiguidade que se refletisse na sua aplicação, não permitindo que alguém argumente que “o texto não é taxativo”, que “há uma margem de interpretação a considerar”, que “há zonas cinzentas que dão aso a leituras diversas” e outras pequenas armadilhas de “juridiquês” que podem impedir o fim da “selva” em que se vive.

País livre

Claro que devemos dar asilo político a quem foge do regime de Putin. Como devemos sempre ter as portas abertas e não criar dificuldades a todos os russos que queiram viajar para Portugal, sem lhes perguntar o que pensam sobre Putin ou sobre o que quer que seja. Essa é a diferença de um país livre.

Facha e bela


Alguém, ontem, falando de Giorgia Meloni: “A facha é bem gira!”. De facto, é, embora isto de dizer que alguma mulher ”é gira” deva desencadear um coro de acusações de sexismo, talvez por assim estarmos implicitamente a discriminar quem o não é. Ouvi responderem-lhe: “É gira mas é facha”.

Russos


Tal como acontece, por estes dias, com a maioria dos brasileiros com quem falo, é dificil conversar com alguém que seja russo e sentir que, ao comentar a situação do seu país, essa pessoa consegue ganhar alguma distância e objetividade. Mas, ao contrário dos brasileiros, que se estão nas tintas sobre o que pensamos dos políticos de topo do seu país, os russos pronunciam-se sempre, sobre Putin ou sobre o regime russo, tendo como ponto assente que, do nosso lado, há já um “partis pris” assumido. Daí que adequem o discurso à circunstância de andarem entre nós, o que artificializa os contactos. 

Do que escrevi pode deduzir-se que tenho o ensejo de andar aí a falar com imensos russos. Não ando. Nos últimos sete meses, falei com três. Mas tenho pena de não ter falado com mais.

Um deles reagiu como eu esperava: disse logo o pior possível de Putin, achando que eu ficava confortado. Mas pareceu-me muito sincero. 

O segundo russo, aliás, uma russa, nascida bem distante de Moscovo, reagiu, desabrida, contra uma leve menção à Ucrânia, tida como coio de nazis e fonte de todos os males que, nos dias de hoje, podem ocorrer à Rússia. Não falou nunca de Putin, mas admito que fosse fã. Sermos um país livre dá-nos a vantagem (alguns acham isso mal, mas não tenho o menor respeito por quem pensa assim) de poder acolher opiniões contrastantes. É uma frase batida, mas foi para isso que se fez o 25 de abril. 

Da terceira conversa, que tive muita pena pelo facto de ser tão breve como foi (todas foram, devo confessar), tenho uma recordação mais interessante. Essa pessoa, que não tinha a mais leve simpatia por Putin, com alguma não escondida emoção, falou-me da existência, nos dias de hoje, de “três Rússias”. 

Descreveu o sentimento dos russos mais velhos, muitos dos quais viveram adultos na União Soviética. A maioria não tem saudades do comunismo, têm saudades da segurança na vida quotidiana, ainda que espartana - na rua, no emprego, na saúde. Fez-me recordar o que li num livro que muito me impressionou: “O Fim do Homem Soviético”, de Svetlana Aleksievitch. Putin restituiu-lhes um pouco isso, bem como o sentimento de que no Kremlin está alguém que comunga com eles o sentido patriótico. Essa pessoa disse-me ainda uma coisa estranha: que, para essa gente, Putin é como que uma figura “religiosa”, que corporiza a nação. Será assim? Não fazia a menor ideia.

Depois, falou-me de uma outra Rússia, dos mais jovens, que abominam Putin e a clique dirigente, que são globais na cabeça, andam nas redes sociais e acham todo aquele aparato burocrático uma coisa sem sentido. Segundo ele, algumas dessas pessoas estavam com Navalny, mas “muito pouca gente conhece Navalny na Rússia”. É a espuma política urbana, gente que quer liberdade, viver à vontade, viajar e ser feliz. O regime detesta essa gente, porque a não consegue “agarrar”.

Essa pessoa com quem falei (há mais de dois meses) não ia à Rússia desde abril, mas disse-me que, quando de lá saiu, entre os seus conhecimentos, não tinha encontrado ninguém que estivesse convencido da utilidade da guerra, mesmo que alguns subscrevessem a teoria do “cerco” pelo ocidente e pela América, e não tivessem particular simpatia pela Ucrânia (“A Ucrânia e os ucranianos nunca foram muito populares na Rússia”).

Na descrição que essa pessoa me fez de uma terceira Rússia, onde estavam bastantes amigos seus, recordei o estado de espírito de muita gente durante o Estado Novo: viviam à margem da política, evitavam “meter-se” com o poder, criticar ou apoiar quem está “lá em cima”, tentando apenas sobreviver entre as pingas e levar a vida o melhor possível. Alguns desses russos viajavam pelo estrangeiro e, sem serem ricos, tinham uma vida razoável. Talvez o efeito das sanções os venha a tirar da letargia em que vivem, disse-me o meu interlocutor.

Que pena tenho de não ter tido a possibilidade de prolongar a conversa com esse russo que conheci, uma tarde, no Porto, um homem lúcido e, talvez por isso, visivelmente triste. Não deve ser fácil ser russo, pelo mundo, nos dias de hoje.

quarta-feira, setembro 21, 2022

Élia



Tenho amigos que morrem discretamente. Agora, foi a vez da Élia Rodrigues.

Alimento a ideia de que cruzei a Élia, pela primeira vez, num corredor da nossa embaixada em Luanda, nos idos de 82. Era economista, "número dois” do recém-criado ICEP na capital angolana. 

A Élia era um mulher alta, muito bonita, inteligente e extraordinariamente simpática. Era então casada então com um meu antigo colega de "tropa", o Leonel, um amigo que viria a desaparecer nas vagas do tsunami, em 2004, na Tailândia.

Com naturalidade, a Élia passou a acompanhar-nos em todos os momentos em que, nessa Luanda de quotidiano difícil, inventávamos coisas para entreter o tempo que nos sobrava, entre os dias de muito trabalho e as noites de recolher obrigatório: almoços regulares na nossa casa no “compound” da embaixada (a Élia trabalhava no 2° andar, eu trabalhava no 3° e vivia, com a minha mulher, no 4° Andar), uma imensidão de jantaradas com amigos, idas ruidosas a Cabo Ledo, noites divertidas na casa dos "Guedais”, do Zé Guilherme Stichini Vilela, do Fernando Valpaços, da Alzira e João Sobral Costa, tardes serenas de conversa no Mussulo. Tenho uma fotografia com a Élia no monomotor em que o Pena nos levou a Benguela, ela divertida e eu num susto, pela consciência tardia dos riscos da viagem.

Nada fazíamos, nessa nossa Angola em guerra civil, sem a Élia. Na sua casa, num daqueles prédios luandenses imensos, em forma de "livro", creio que num 19° andar, frequentemente sem elevador, conheci gente interessantíssima, porque a Élia construía e cultivava amizades preciosas. Numa dessas noites, vivemos, esgazeados, em direto, as imagens televisivas da tragédia futebolística de Heisel. Às vezes, para a fazer sair de casa para um jantar, mobilizávamo-nos para arranjar alguém que ficasse com o seu “monstrozinho”, como ela chamava carinhosamente à pequenina Filipa, a quem mando um beijo saudoso, com o nosso pesar.

Depois, nas décadas seguintes, com a nossa mútua vida errante, encontrávamo-nos a espaços com a Élia - frequentemente em Lisboa, também em Londres, mais tarde em Berlim, onde ela veio a trabalhar, e em Viena, onde eu então vivia. Um dia, recordo a barulheira que fizémos ao cruzarmo-nos, por mero acaso, numa esquina do Sablon, em Bruxelas! 

Quando, em 2001, fui viver para Nova Iorque, a Élia lá estava a receber-nos, como depois esteve em Washington. Sempre igual, sempre calorosa, um esteio de amizade, de companheirismo. E sempre com uma imensa coerência, nas ideias e nas opções de vida.

Com a Élia, as conversas eram retomadas como se tivessem sido suspensas ontem, muitas vezes ao lado de pessoas que havíamos conhecido por seu intermédio. Quanta gente, ao longo dos anos, me surpreende ao dizer: “Temos uma grande amiga comum, a Élia”. Entre nós, foi uma amizade firme, sólida, sem sombras, feita da partilha de muitas coisas.

Um dia, já há bastantes anos, chegou-nos a notícia: a Élia estava com sinais de Alzheimer. Lembrámo-nos então, de imediato, da doença que afetara a sua mãe e de que ela nos contara o calvário. Já depois da deteção da doença, encontrámo-la ainda em algumas escassas ocasiões, por Lisboa. Assumia, com coragem, a situação que em si galopava, brincando mesmo com os seus lapsos. Mas aquele sorriso, bom e bonito, ia ficando mais triste, o olhar mais distante, pressentia-se que a estávamos lentamente a perder. Como veio a acontecer.

Deixo uma palavra de imensa admiração para os amigos mais próximos, que a acompanharam até ao fim, e que, durante muito tempo, insistiram em fazê-la conviver e viver o mundo que lhe era ainda acessível.

A Élia, que já tínhamos perdido há muito, desaparece agora de vez. Ficam-nos histórias, conversas, cumplicidades, gestos. A tristeza que sinto, ao saber da morte física da Élia, leva a que me apeteça dizer um palavrão, de raiva.

Rigor

Quando é que os nossos jornalistas e gente aqui pelo Twitter aprende, de vez, que “Financial Times” se esteve com “c” e que não é “Finantial”? (Já que estou com a mão na massa: é “wishful” e não “wishfull” e é “welcome” e não “wellcome”. Pronto, andava para dizer isto há muito…)

Ainda a tempo: num âmbito diferente, não traduzam “eventually” por “eventualmente” e “actually” por “atualmente”.

terça-feira, setembro 20, 2022

À espera de Putin

 A Rússia pode não estar a ter muitas vitórias militares por estes dias, “to say the least”. Mas, ao fazer “desesperar” todos os serviços noticiosos pelo seu discurso, Putin “invadiu” as direções de informação do globo.

Brasil a uma só voz?

Eu sei que não vai bem com o “ar do tempo” dizer isto, mas o que Jair Bolsonaro disse na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a questão ucraniana e a Rússia não me parece diferir, um milímetro que seja, daquilo que Lula da Silva pensa.

segunda-feira, setembro 19, 2022

Coroa

Os monárquicos portugueses tiveram, por estes dias, momentos de forte visibilidade. É irónico pensar que é preciso que morra alguém para ficar evidente que o ideal monárquico continua vivo entre nós

domingo, setembro 18, 2022

O empresário e a diarista


As eleições brasileiras entraram na reta final. Os candidatos da “terceira via”, como era expectável, apagaram-se. Na arena - porque é quase disso que se trata - ficam Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Parte do eleitorado que, em 2018, ajudou Bolsonaro a derrotar Fernando Haddad, o candidato “suplente” de Lula, então na prisão, estará agora inclinado a dar o seu voto ao antigo presidente.

Gostava de poder estar dentro da cabeça dessas pessoas. Não será difícil conseguir entender que estes anos com Bolsonaro tenham desiludido muita gente que nele votou. Bolsonaro acabou por sair muito “pior do que a encomenda”. Mas é-me menos fácil entender como é que alguém que, em 2018, fez essa opção, muito para afirmar a sua rejeição daquilo que considerava ser a “banditagem” do PT, que achava Lula um ladrão e um corrupto, faça agora o salto de campo e, num ato de contrição, seja capaz de dar o seu voto àquele que, há muito pouco tempo, diabilizou e que, se for eleito, trará o PT de regresso aos corredores do poder. 

Essas pessoas vão mudar de sentido de voto por considerarem Lula inocente das imputações de que se viu formalmente exonerado? É que, em 2018, a grande maioria das pessoas que votou Bolsonaro não parece ter chegado hesitante à boca da urna. Um voto em Bolsonaro, mais do que a confiança naquele antigo capitão, que ostentava um discurso de extrema-direita e de elogios à ditadura militar, foi um voto afirmadamente contra Lula e contra o PT. Lula santificou-se assim tanto aos olhos dessas pessoas? E o PT, foi lavado em água-benta?

Um dia, no final de 2006, num daqueles imensos (e, em geral, muito simpáticos) jantares em que Brasília era fértil, a uma figura do empresariado local, ao ver-se obrigado a ter de aceitar a reeleição de Lula, ocorrida uns dias antes, ouvi este desabafo: “Embaixador, não votei no Lula: não consigo ter o mesmo candidato que a minha diarista”. (“Diarista”, no Brasil, é a palavra para mulher-a-dias). Imagino que a frase possa chocar, pela arrogância classista que lhe está subjacente. Mas o Brasil (também) é assim. Essa pessoa terá então votado em Geraldo Alckmin. Infelizmente, a pessoa já morreu: é que eu gostaria de perguntar-lhe o que acha do facto de Alckmin ser, nos dias de hoje, candidato a vice-presidente na “chapa” de Lula…

Para além dos novos eleitores, para Lula ser eleito vai ser necessário que muitos dos que, em 2018, votaram Bolsonaro, acabem por se reconciliar com a ideia de que, desta vez, vão votar ao lado da sua “diarista”. Embora a esmagadora maioria dos brasileiros não tenham “diarista” e, além do mais, esteja por provar que muitas “diaristas” não tenham escolhido Bolsonaro… Enfim, como disse um dia António Carlos Jobim, “o Brasil não é para principiantes”.

sábado, setembro 17, 2022

Alemanha

Acredito que esta geração política alemã esteja, com sinceridade, ancorada nos princípios da paz e da democracia, pelo que não me assusta a recuperação do seu poderio militar. Mas não sei se, por essa Europa, nas capitais de alguns dos aliados da Alemanha, todos pensam como eu.

sexta-feira, setembro 16, 2022

Paulo Pitta e Cunha


1975. Creio que foi em maio. Com a gravata então de regra e uma forte bigodeira, fui fazer as provas orais do concurso para entrada na diplomacia. Tinha ultrapassado as provas escritas e, pelo caminho, para as vagas existentes, já tinham caído algumas centenas de candidatos.

Posso não estar a ser totalmente rigoroso, mas creio que havia, num saco, 99 bolas numeradas, correspondentes a outros tantos temas: 33 de Direito Internacional, 33 de Economia Política e 33 de História Diplomática. Cada candidato metia a mão no saco e tirava uma bola. Saiu-me um tema de Economia Política. Era sobre o processo de construção europeia. 

À época (noto que estávamos no início do “Verão Quente” de 1975), a ideia de Portugal poder vir a aderir às então designadas Comunidades Europeias nem sequer era objeto de discussão. Ninguém, que me recorde, falava sobre isso.

Eu tinha exatamente quatro horas para me preparar para conseguir fazer uma exposição de vinte minutos sobre o tema sorteado, após o que, ainda sobre o mesmo, seria interrogado durante mais vinte minutos. (Resta dizer que, ao final do dia, havia ainda uma segunda prova: dos 66 temas das outras duas categorias de temas, tínhamos de indicar um, sobre o qual éramos interrogados por mais vinte minutos). 

Recordo haver colegas que tinham preparado pequenos dossiês sobre cada um dos 99 temas! Eu, que fazia o concurso no meio do meu serviço militar e com um emprego que me ocupava todas as manhãs, não levava uma única linha preparada sobre nada! Comigo apenas tinha um livro de Ramón Tamames sobre economia internacional, o clássico manual de Direito Internacional de André Gonçalves Pereira e dois pequenos volumes da “Larousse de poche” sobre História do século XX. Sobre a temática europeia, eu nada tinha à mão para consulta. 

Cheguei à biblioteca do MNE e descobri um único livro relevante. Não consigo recordar o título (se alguém o encontrar, completarei esta nota), mas era um conjunto de estudos sobre a questão europeia. Assinava-os o professor Paulo Pitta e Cunha.

Eu pouco sabia sobre o assunto, que pouco me motivava, pelo que, naquelas quatro horas, absorvi daquele livro tanto quanto pude. Fui para essa prova oral com umas notas apontadas numa folha A4. E fiz o exame. O professor universitário, membro do júri, que me calhou em rifa, no fim desses difíceis quarenta minutos, considerou que eu era digno de ser aprovado. Como esse professor, como viria a constar, nunca tinha dúvidas e raramente se enganava, presumo que terá tomado a decisão certa.

Fiquei assim a dever a Paulo Pitta e Cunha a “ciência” que me valeu ser escolhido nessa prova decisiva para o acesso às Necessidades. Um dia, contei-lhe pessoalmente esta história. Ele, supreendido e risonho, exclamou: “Não me diga! Fico muito satisfeito por ter tido essa contribuição para o início da sua carreira”.

Há minutos, acabado de chegar a Lisboa, ao abrir uma revista, li a notícia da morte, há dias, do professor Paulo Pitta e Cunha. Deixo aqui esta nota singela de memória e de homenagem a um grande europeísta e insigne académico, com um abraço amigo de pesar ao seu filho Tiago.

quinta-feira, setembro 15, 2022

Seleção


Em matéria de camisolas para a seleção, pelos vistos, já tudo é possível. Não tenho nada contra, mas, por muito que me esforce, não consigo ter nada a favor disto.

Companhias aéreas


Estou a entrar num avião, de regresso a Lisboa, com Nova Iorque ao fundo.

As viagens aéreas são, para mim, momentos "sagrados", em que, quando não passo "pelas brasas", aproveito para ler coisas que tenho em atraso. Com esta última finalidade, levo sempre comigo quilos de jornais e revistas, dois ou três livros dentre a dezena que ando simultaneamente a ler. O que carrego para uma viagem, se acaso chegasse ao fim da respetiva leitura completa, equivaleria, no mínimo, ao tempo de três percursos. Mas é assim mesmo: sou um otimista da leitura.

Porque as viagens são isso - um incomparável tempo descansado para ler, sem ser interrompido por telemóveis ou conversas -, detesto diálogos com os parceiros do lado, a menos que, por uma qualquer razão, seja eu a ter a iniciativa de os encetar. Mal me sento (e luto pelos locais de janela, para poder "blindar-me"), evito reagir a qualquer casual comentário do viajante próximo, do tipo "está muito calor, não acha?" ou "cada vez há menos espaço entre as cadeiras" ou "será que ainda nos vamos atrasar muito?" ou outras vetustas "alavancas" análogas, usadas para iniciar uma troca de palavras. É que, se a minha resposta ultrapassar um seco monossílabo, a possibilidade de vir a ter de entabular uma conversa que afeta o meu tempo de leitura torna-se imensa. 

O período da refeição é, de longe, o mais perigoso, porque geralmente estamos desmunidos de peças de escrita, razão pela qual cuido sempre em deixar um pedaço de jornal a espreitar por debaixo do tabuleiro, fingindo que nele me concentro (assim evitando elaborar na resposta ao "que tal achou o tinto?"). Devo dizer que, com as "horas de voo" que tenho no currículo, considero-me já um "profissional" batido nesta matéria, conheço "de ginjeira" os truques todos e, quase sempre, tenho garantido sucesso neste meu (por vezes, artificialmente pouco simpático, reconheço) procedimento, conseguindo escapar aos palradores aéreos. 

Historicamente, tive um dia um azar que para sempre me ficou gravado na memória. Ia, precisamente ao contrário de hoje, de Lisboa para Nova Iorque e tinha preparado tudo para as minhas cinco horas e tal de viagem (ah! porque não durmo bem em aviões, eu também sou "aquele" passageiro incomodativo que leva sempre a luz de leitura aberta, mesmo no bréu coletivo da cabine, durante as noites, para grande raiva dos restantes viajantes): jornais, livros de vária espécie (recordo que havia poesia pelo meio) e até banda desenhada. Tinha também um "laptop" para escrever uma coisa em atraso e havia prometido a mim mesmo aproveitar para nele arrumar fotografias. Tudo estava preparado para uma bela viagem, no incomparável prazer da solidão aérea.

Acrescia a constatação feliz de que o lugar ao lado do meu iria ficar vago, o que me permitiria, desde logo, fazer nele um estendal da parafernália de leitura que transportava. Nessas ocasiões, devo confessar, passo minutos de angústia até confirmar o fecho da porta do avião, momento de alívio a partir do qual sei que ninguém mais virá ocupar esse espaço. E assim aconteceu, nessa ocasião. Como nesses tempos a classe executiva era de regra (há muito tempo que isso acabou!), até aceitei uma taça de champanhe, mais para brindar ao lugar vazio ao meu lado do que por devoção ao dito.

O avião descolou, recostei-me e comecei a sessão de leitura, saltitando entre o muito que trazia. De súbito, ouvi: "Meu caro, vi que você estava sentado aqui. Eu ia ali atrás. Importa-se que eu ocupe este lugar vago ao seu lado?". O que é que se responde a isto? "Importo, claro, desampare-me a loja, não me chateie"? Não é possível. 

Era um político português, um homem simpático mas um falador endémico, aquilo a que os brasileiros chamam "um chato de galocha", o qual, começou por me explicar que também ia para Nova Iorque (como se eu suspeitasse que fosse para Ulan Bator...) e que, praticamente durante as cinco horas da viagem, me atazanou os ouvidos com historietas, perguntas e comentários. De rastos ficou todo o plano de leituras que, com imenso critério, eu tinha premeditado para esse voo. Ainda hoje, muito tempo depois, não me recompus do trauma, como se vê.

quarta-feira, setembro 14, 2022

O outro lado

Ontem, ao ouvir uma intervenção, num determinado contexto, lembrei-me do famoso comentário de Margareth Thatcher de que gostaria que todos os seus assessores fossem manetas. Explicava a antiga primeira-ministra britânica: "quando me dão um parecer, para se não comprometerem, apresentam logo uma outra possibilidade oposta: ‘on one hand’ e ‘on the other hand’ “.

Lembrei-me então dos tempos em que algumas "informações de serviço" no MNE assumiam um estilo formalmente subserviente, marcado por um tom modestamente auto-dubitativo. Às vezes, o autor do texto sugeria opções possíveis, não raramente em contraste, e, no final, qual Pilatos, "lavava as mãos", com a frase clássica: "V. Exª, no seu alto critério, melhor decidirá".

Como devem imaginar, a apresentação de várias opções, sem coragem para as hierarquizar valorativamente, dá um jeitão, a quem tem de decidir...

terça-feira, setembro 13, 2022

Godard


Morreu Jean-Luc Godard. Tinha 92 anos. Marcou uma geração do cinema francês. Nos meios certos, em Portugal, foi uma venerada referência. Em 2009, quando criei este blogue, chamei-lhe “Duas ou Três Coisas” em homenagem ao seu “Deux ou Trois Choses que je sais d’elle”.

Cruel dilema


Continuo a trabalhar na preparação de uma intervenção que tenho de fazer daqui a horas ou espiolho a biografia do genial Art Buchwald, que há pouco descobri numa livraria?

segunda-feira, setembro 12, 2022

O tempo e o modo

Troca de palavras, ontem à noite, em Kansas City, com o motorista que me levava do aeroporto ao hotel. Falei da data, 11 de setembro, há precisamente 21 anos. Resposta: “In New York? Sad! But I like the new building!“. Idade do motorista: 20 anos.

Trivialidade

Aprendi hoje que cada monarca britânico, na efígie que dele surge nas moedas ou selos, tem a cara voltada sempre e só para um dos lados, alternando com a mudança dos titulares. Isabel II olhava para a direita, Carlos III olhará para a esquerda. O que nós temos ficado a saber sobre a família real britânica que não tínhamos a mais leve necessidade de saber! É o esplendor da vitória da trivialidade, da cultura de almanaque.

domingo, setembro 11, 2022

Tanner


Alain Tanner apaixonou-se por Lisboa. Filmou ali e chamou-lhe “A Cidade Branca”. Lisboa não é uma cidade branca, como Argel. É a cidade da cor. Tanner enganou-se, mas isso é desculpável. A luz de Lisboa encandeia naturalmente um suíço. Tanner morreu hoje.

Meio século


Fui aos Estados Unidos, pela primeira vez, em 1972, há precisamente 50 anos. 

Por essa época, os amigos e conhecidos da minha geração andavam mais pela Europa. Eu também já tinha feito a peregrinação clássica às “Mecas” do tempo, Paris e Amesterdão, com naturais “expedições” complementares à Suécia e Dinamarca. Tinha ido à boleia, de Portugal, por duas vezes. 

Um dia, aproximando-se as primeiras férias do meu primeiro emprego, dei por mim a pensar que era capaz de ser “giro” ir aos “States”. Nova Iorque era um mito como cidade (se eu escrevesse que era um “mito urbano” iria criar uma confusão conceitual, pela certa!). Tinha tantas daquelas avenidas e esquinas dentro da minha cabeça, dos filmes, que achei imperioso colar a realidade ao mito. Na saudosa agência de viagens Mundial de Turismo, na António Augusto de Aguiar, 6.800$00 era o custo de uma viagem de ida-e-volta a Nova Iorque, na Pan American, com alojamento! É verdade! E lá fui eu, por uma semana, com um grupo do Autoclube Médico Português, em que até me dei ao luxo de dar uma saltada a Washington, naqueles famosos autocarros da Greyhound.

O hotel onde fiquei em Nova Iorque, o Edison, tinha sido um dos cenários de “O Padrinho”. Era muito próximo da Times Square, a dois passos do falso fumo a sair da boca do anúncio com um cavalheiro, com ar do americano “nice guy”, de gabardine e chapéu, que víamos nas “Seleções” e que ali fumava cigarros Camel, na altura um “landmark” publicitário da cidade por todo o mundo. 

Recordo-me bem da noite da chegada em que, pela primeira vez na minha vida, tive à disposição, no meu quarto, uma televisão com uma multiplicidade de canais a cores! Nós, em Portugal, por essa altura, tínhamos um único canal a preto-e-branco da RTP “e viva o velho!”, como então se dizia. Não havia por ali, contudo, qualquer comando do aparelho à distância, pelo que, durante horas, até que o “jet lag” ditou a sua lei, fiz um “shuttle” entre a cama e o televisor, para ir apreciando, deslumbrado, aquela inédita diversidade de opções. Tempos ingénuos!

Nesse ano de 1972, só uma das Torres Gémeas estava construida, com a outra ainda a caminho de ser completada. Nesse tempo, nem sonhava que iria estar a viver em Nova Iorque no dia 11 de setembro de 2001, no dia em que o ódio iria deitar abaixo as torres e algumas certezas.

Hoje é dia 11 de setembro. E hoje vou partir, daqui a horas, em trabalho, para os Estados Unidos, para falar numa conferência sobre a América e o modo diferenciado como a Europa (as “ Europas”, para ser mais rigoroso) para ela olha, nos dias de hoje. A curiosidade é a viagem ter lugar meio século depois de lá ter estado pela primeira vez.

sábado, setembro 10, 2022

Um ano sem Jorge Sampaio

 


(Fotografia de João de Vallera)

“The Crown”


A série televisiva “The Crown” tem um imenso e perverso defeito. Ao dar um tom de verosimilhança a cenas que mais não são do que um mero produto de ficção, esses filmes podem levar os espetadores incautos a tomarem por verdadeiro o que mais não é do que uma mera suposição, por muito imaginativa que esta seja, sobre o caráter das pessoas ali retratadas, sobre a plausibilidade das cenas e diálogos apresentados. Para quem não possa ter tido acesso a outras fontes de informação, a rainha Isabel II ou o seu marido, o príncipe Carlos ou Margareth Thatcher, a princesa Ana ou Diana Spencer, são “mesmo assim”, comportaram-se “dessa maneira”, tanto mais que os filmes, para credibilizarem os seus argumentos, colam factos verdadeiros com outros totalmente inventados, à luz da criatividade dos escribas do “script”. E, deste modo, na cabeça de milhões de visualizadores da série, tudo isso passa logo a ser “História”. Por muito bem construída que a série esteja, um seu espetador mais atento deve ter sempre a consciência de que aquilo a que está a assistir não é um documentário e que há um elevadíssimo grau de arbítrio interpretativo - e, às vezes, claramente preconceituoso - no modo como a família real britânica e outras figuras surgem caricaturadas. No sentido positivo ou negativo, note-se.

(Há dois anos escrevi isto aqui. Repito-o agora.)

sexta-feira, setembro 09, 2022

“A Arte da Guerra”


O legado de Gorbachov, a nova primeira-ministra britânica e périplo de Erdogan pelos Balcãs, são os temas de “A Arte da Guerra” desta semana, o podcast em que converso com o jornalista António Freitas de Sousa, para o “Jornal Económico”. Pode ver aqui.

quinta-feira, setembro 08, 2022

Isabel II e as mãos de Paredes


Carlos Paredes tinha acabado de tocar para Isabel II, acompanhado por Luisa Amaro, naquela noite de 1993, antes do jantar no Guildhall, em Londres. Esse era um dos pontos do programa da visita de Estado que Mário Soares então fazia ao Reino Unido.

Um grupo selecionado de entre os convidados para o jantar tinha tido o privilegio de acompanhar a rainha e Soares, numa sala mais privada, para esse curto espetáculo. Haviam sido uns minutos extraordinários, com a genialidade de Paredes a emergir nos sons que saíam da sua guitarra. Anos antes, em 1985, a rainha já tinha ouvido Paredes, pela primeira vez, na visita de Estado que fez a Portugal.

Acabada a música, toda a a gente se levantou, rainha incluída. Esta aproximou-se então de Carlos Paredes, para o felicitar. E pediu-lhe: “May I see your hands?”. Pegou nas mãos do guitarrista, olhou-lhe os dedos, e disse: “Extraordinary!”

Soares saiu com a rainha e a corte dos convidados. Eu fui cumprimentar Carlos Paredes, comentando com ele o inusitado gesto da rainha. E foi então que ouvi o compositor e genial intérprete a revelar aquela que era a sua proverbial modéstia: "O amigo acha que eu estive bem? É que não estava bem nos meus dias..."

Não tenho procuração

Não tenho procuração de Marcelo Rebelo de Sousa para o defender, a propósito das críticas de que foi objeto, por virtude de ter surgido ao lado de Jair Bolsonaro, na vergonhosa cena que foi a instrumentalização da cerimónia do dia da independência do Brasil, um ato que decorreu sem a dignidade protocolar que minimamente se impunha.

O chefe do Estado português foi convidado pelas autoridades brasileiras para representar o nosso país na ocasião em que se celebram 200 anos desde a data em que o Brasil se emancipou da tutela portuguesa, pelas mãos de um soberano que, anos depois, atravessaria o Atlântico para, por aqui, pôr cobro ao Antigo Regime e instaurar aquela que era a modernidade institucional de então.

Não foi o cidadão brasileiro Jair Bolsonaro quem convidou o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa. Foi o Estado brasileiro que formulou o convite ao chefe do Estado português para estar presente nesta data histórica, não apenas para o Brasil, mas também para Portugal.

Mas, dirão alguns, a chefia da nação brasileira é hoje titulada por uma figura que, um pouco por todo o mundo, é vista como não estando à altura do cargo que ocupa. Milhões de brasileiros sentem-se humilhados por serem representados por uma personalidade daquele jaez (embora muitos outros milhões pensem de maneira diferente, noto). Ao ir ao Brasil nesta ocasião, o presidente português acabou por ser cúmplice objetivo da utilização oportunista que Jair Bolsonaro fez do ato do 7 de setembro, nomeadamente em relação às eleições presidenciais, que terão lugar dentro de menos de um mês. Marcelo Rebelo de Sousa não devia ter-se sujeitado a este vexame.

Vamos ser realistas. Portugal, desde 7 de setembro de 1822, deixou de escolher quem governa o Brasil. Para quem não saiba, lembro que os portugueses costumam ser ainda vistos, por muitos brasileiros, como os culpados por muito daquilo que corre mal no seu país. 200 anos depois! Mas, por favor!, façam-nos a justiça de reconhecer que não fomos nós quem escolheu Bolsonaro para ser presidente do Brasil! Alguém foi, mas não fomos nós!

Era só o que faltava que um Estado multisecular como Portugal, apenas pelo facto do Brasil ser chefiado por quem conjunturalmente é, deixasse de estar presente num momento tão significativo para a história de ambos os países. Era só o que faltava que o presidente português cometesse o erro histórico de deixar que as relações luso-brasileiras, com todas as consequências nos momentos históricos comuns, como que devessem ser “suspensas” só pelo facto do Brasil ter o presidente que tem (e que, volto a lembrar, foi escolhido pelos brasileiros).

Não só não critico minimamente Marcelo Rebelo de Sousa por ter ido ao Brasil nesta ocasião, como estou solidário com o notável e óbvio esforço que fez, pelo interesse e prestígio do país que representa, para suportar aquela cerimónia, aquela companhia e aquela conjuntura.

Sei que está “na moda” criticar Marcelo Rebelo de Sousa, nomeadamente em alguns dos seus comportamentos. Às vezes, aqui entre nós, confesso que também o faço. Contudo, há uma coisa de que ninguém, repito, ninguém pode acusá-lo: de falta de sentido de Estado, na sua postura internacional.

Como profissional de relações externas, com algumas décadas de traquejo, quero deixar muito claro que tenho uma confiança plena, absoluta, no modo como Marcelo Rebelo de Sousa nos representa no estrangeiro, na forma como ele interpreta a responsabilidade de falar e agir em nome de Portugal. Como agora fez no Brasil.

Luís Figo


Uma noite, há pouco mais de vinte anos, à saída de um jantar em Teerão, num lugar que fora um velho caravanserai, um adolescente inquiriu de onde é que vinha o grupo em que eu estava. À minha resposta, abriu um imenso sorriso e disse: “Portugal? Figo!!!”.

O mundo teve quatro nomes quando, em matéria de futebol, se falava de Portugal. De início, foi Eusébio. Depois, foi Figo. Hoje, continua a ser Ronaldo. No banco, com um sucesso ímpar, José Mourinho.

Tenho uma imensa simpatia pela figura de Eusébio, grande admiração, como fã de bom futebol que sou, por Luís Figo, acho que Cristiano Ronaldo é o expoente máximo do profissionalismo e da genialidade. Por Mourinho, fala o seu palmarés.

Luís Figo foi a primeira internacionalização de um futebolista português de primeira grandeza. Acompanhei o seu sucesso no Barcelona, segui e aplaudi os seus êxitos no Real de Madrid, assisti a muitos jogos quase só pelo prazer de o ver jogar. Uma bola nos pés de Luís Figo dava-me imensa confiança de que a jogada poderia vir a ter sucesso. Mais do que Eusébio, mesmo mais que Ronaldo - embora esse esteja bem acima de todos os outros.

Fiquei curioso com a saída de Figo do Barcelona para o seu maior rival. Apesar disso, o assunto não me interessou o suficiente para ler sobre ele. E como não olho para um jornal desportivo desde os meus 20 anos…

Ontem, reparei que a Netflix tinha um filme sobre Luís Figo. Durante uma hora e quarenta, assisti a testemunhos cruzados de todas as personagens envolvidas nessa famosa transferência, desde logo, e longamente, do próprio Luis Figo. A anotei pormenores desses dias e dessa verdadeira saga.

Não quero dizer mais do que isto: Luís Figo não sai nada bem dessa história, relatada no que me pareceu ser um trabalho equilibrado e “fair”. Tenho muita pena.

quarta-feira, setembro 07, 2022

Coração ao alto


Foi necessário ter vivido, em 2008, como embaixador português, o tempo das comemorações dos 200 anos da chegada da corte ao Brasil, para me aperceber da filigrana diplomática que sempre constitui, para o nosso país, o manejo das datas históricas que nos são comuns com uma antiga colónia que teve um dos mais atípicos processos de independência da História mundial.

Constituiu então uma bela lição observar o modo como a narrativa brasileira então tratou, em múltiplas ocasiões, uma figura como dom João VI, tentando equilibrar uma intravável apetência para a caricatura ridicularizante da corte lusitana, que ali tropicalizara os seus bizarros costumes europeus, com a constatação, que a verdade dos factos tornava impossível de contornar, de que acabou por ser essa estada da monarquia lisboeta, exilada pela ambição napoleónica, que deu corpo e acelerou a expressão da nacionalidade brasileira.

Das instituições à cultura, o Brasil sabe bem que a presença da corte foi muito mais do que as coxinhas de frango que o rei adorava, foi bem além das aventuras lúbricas dos príncipes, ou da espanhola que ornara o soberano pelas alcovas ou da rainha louca que acabou por se apagar por ali e, dessa forma, transformou o príncipe que chegara em 1808 no rei que iria um dia regressar às origens. Um pouco “à contre-coeur”, o Brasil sabe que tem obrigação de acarinhar, embora sempre muito lá no fundo, a memória desse rei dolente, um homem que afinal tinha uma sabedoria manhosa, a que o novo país talvez deva alguma coisa mais do que ainda hoje se permite confessar.

Alguns amigos brasileiros - e tenho muitos - não gostam de ouvir-me dizer que a lusofobia é a doença infantil da brasilidade. Mas é. E até é muito natural que assim seja, se olharmos a História com algum realismo.

Uma independência faz-se sempre contra algo ou contra alguém de quem se é dependia. Por vezes, como sucedeu em algumas colónias africanas de Portugal, foi necessária uma luta armada, ela própria eivada de longas e penosas contradições entre os protagonistas, algumas prolongadas até aos dias de hoje, com vista a forçar a mão a um poder colonial relutante em resignar-se às leis da História.

Ora não foi esse o caso do Brasil. Ali, foi o filho do rei português que acabou por corporizar o desejo do novo país de definir e seguir o seu próprio destino, deixando de ser uma muleta económica de um poder europeu decadente, já então quase só inchado de glórias de um tempo que já se fora.

Uns novos “Estados unidos” estavam ali a nascer. Mas não tinham lutado contra Lisboa. Uma nova classe, onde curiosamente estava o dedo letrado de Coimbra, afirmava uma vigorosa vontade nacional e, nesse discurso, era quase imperativo o surgimento de alguma “vingança” contra o antigo poder.

A tal lusofobia, que chegou a ter expressões muito fortes no século XIX, contra os que se quiseram prolongar na máquina do novo Estado, seria mais tarde corporizada na anedota “do português”, castigando o antigo poder através daqueles que ainda dele provinham, na procura do sustento. Era, no termo de contas, uma expressão, afinal benigna, desse inevitável contraste, a substituição, retórica e risonha, da luta armada que nunca teve lugar. Era a farsa, em lugar da tragédia.

É neste contexto que a posição de Portugal, como estranho parceiro nestas comemorações do bicentenário da independência do Brasil, se torna quase fascinante, como objeto diplomático.

Onde estamos, nesses festejos? A nossa posição, porque fomos simpaticamente convidados a participar - e não era imperativo que o fôssemos, vale a pena notar -, é quase a de um observador histórico, não encontrando eu outro qualificativo mais adequado.

Convocados para o exercício, revelamos, como país, silenciosa e discretamente, uma íntima satisfação por sermos chamados ao ato. O gesto brasileiro, em si mesmo, afaga o nosso ego de antiga potência declinante e, no fim de contas, como que dá razão póstuma ao rei que soube gizar um “phasing-out” inteligente, com uma gestão familiar da sua saída de cena.

Que acabe por ser uma relíquia morta, algo macabra, com diferente simbolismo para cada lado, o coração de dom Pedro - que é “primeiro” para uns e “quarto” para outros -, a ser elevado ao alto destas comemorações é algo que não deixa de ter alguma coisa de tocante. Como, afinal, o é a eterna relação luso-brasileira.

(Artigo publicado no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

“A Cidade Imaginária”


Deixei escapar a data! Em 4 de setembro do ano passado (Caramba! Já me parecia ter sido há muito mais tempo!), lancei, em Vila Real, o livro “A Cidade Imaginária - Duas ou Três Coisas sobre Vila Real” , com a chancela da respetiva Biblioteca Municipal. Na ocasião, bem concorrida, numa bela noite de Verão, fez a apresentação o diretor da biblioteca, Vitor Nogueira. 

O livro, com quase 500 páginas, recolhe cerca de duas centenas de textos publicados no meu blogue “Duas ou Três Coisas”, que têm em comum algumas referências à cidade onde nasci e onde vivi até 1966. São historietas leves, referências familiares ou de figuras que cruzei, memórias afetivas escritas ao correr da tecla, desde 2009.

As centenas de exemplares da publicação esgotaram em algumas semanas. Quem quiser ler o texto do livro, pode fazê-lo livremente através do blogue “… Ou Quatro Coisas”, clicando aqui.

terça-feira, setembro 06, 2022

Adriano Moreira


Uma inteligência serena é a definição que me ocorre sobre Adriano Moreira, neste dia em que comemora uma centena de anos de vida vivida com grande elegância.

Papa

Teve graça ouvir o papa Francisco dizer, na CNN Portugal, que o próximo papa poderia chamar-se João XXIV. Diz muito do atual chefe da igreja católica vê-lo citar o nome de alguém que, um dia, abriu as janelas do Vaticano. Por que será que não disse João Paulo III ou Bento XVII?

Brasil

A menos de um mês para a primeira volta das eleições presidenciais brasileiras (2 de outubro), Lula estabiliza a liderança (44%) face a um declinante Bolsonaro (31%), mas o cenário da sua vitória nessa mesma primeira volta parece cada vez menos provável. 

(A segunda volta só tem lugar 28 dias depois! E a posse do vencedor apenas acontece no dia 1° de janeiro de 2023.)

Ciro Gomes, com naturalidade, fixa o terceiro lugar, sem, pelo menos por ora, conseguir chegar aos dois dígitos (8%). A consciência de que, mais uma vez por culpa de Lula (mas, na realidade, muito por culpa própria), o seu velho sonho presidencial se esfuma, leva-o a um discurso que apenas favorece Bolsonaro.

Surpresa positiva na contenda, Simone Tebet, com discurso articulado, é vítima clara da bipolarização, matando assim (com 4%) as esperanças de uma “terceira via”. Pensar que as lideranças oficiais de partidos como o MDB e o PSDB vão ficar ligadas a um resultado deste tipo mostra bem como o Brasil mudou.

Albion

Liz Truss, a nova PM britânica, emana do mesmo caldo de cultura que deu o Brexit. O grupo parlamentar não a queria como líder, pelo que ela resulta de um eleitorado feito de medos e mitos. As expetativas são tão baixas que tudo o que fizer de bom será saudado como se fosse ótimo.

Angola

Tenho fundadas esperanças de que o bom senso acabe por prevalecer em Angola. Ainda não é desta que a Unita será poder mas, se tiver juízo e se o MPLA não tiver sabedoria, isso pode vir a acontecer. Escusado, em absoluto, foi a afirmação da força militar. Não havia necessidade…

segunda-feira, setembro 05, 2022

Bom, eles lá sabem…

Imagino que não deva ser fácil aos partidos da oposição acomodarem-se à ideia de que, irremediavelmente, vão ficar nesse mesmo lugar nos próximos quatro anos, em face da maioria absoluta existente. Mas não sei se será muito inteligente optarem por um discurso de bota-abaixo, numa noite em que o país teve notícias de que gostou. Por outro lado, no caso do PSD, ao afirmar que o governo está, no fundo, a tomar medidas que ele próprio preconizava, não deveria congratular-se com essas decisões? 

domingo, setembro 04, 2022

É assim

Não recordo ter-me acontecido antes. Vivo no crescente incómodo de me sentir acompanhado, em alguns sentimentos que o caso ucraniano me suscita, por gente cujas ideias abertamente detesto e que estão nos antípodas de tudo aquilo que eu penso.

sábado, setembro 03, 2022

Na Plaka


Final dos anos 70. Novembro. Tinha chegado a Atenas, ido de Benghazi, na Líbia. (Dois dias depois, ainda por lá estava, caiu uma chuva ”que deus a dava”, com inundações e mortos na cidade). 

Nesse tempo, eu ainda reservava hotéis quando chegava aos aeroportos. Erro que há muito não cometo. Aquele que me indicaram estava num degrau antes de ser uma espelunca. 

O dia tinha sido longo. Saí para jantar. Sozinho. De mapa na mão, porque, nas coisas de lazer, sempre fui muito organizado. Tinha percebido que, na Atenas turística desse tempo, era de regra ir jantar à Plaka. A Plaka estava, para Atenas, como o Bairro Alto passou a estar para Lisboa, uns anos mais tarde. Sem fados mas, igualmente, comendo-se sustentadamente mal. 

(Está bem, já sei! Tenho de descontar o “Pap’Açorda” e o “ Casanostra” . E também o “Bota Alta”, a “Primavera do Jerónimo”, o “Farta-Brutos”, o “Antigo Primeiro de Maio” e o “Baralto”. Está bem! Pronto! Ressalvo ainda a “Adega das Mercês”, o “Último Tango”, a “Tasca do Manel” e o “Alfaia”. Fico-me por aqui, porque se me fenece a memória…)

Sentei-me num restaurante, numa praça, e pedi uma “moussaka”. Era tudo o que me lembrava de comida grega, desde um lugar sofrível com esse rótulo, a que tinha ido, meses antes, em Londres, com a Fernanda e o Bartolomeu Cid dos Santos, perto de Tottenham Court Road. Ou de um “soit-disant” grego que existiu ali perto dos pastéis de Belém (alguém ainda se lembra?). 

E para beber? “Quer vinho grego?”, perguntou o fâmulo, de mangas arregaçadas. Disse que sim, com a timidez inconsciente dos néscios. Veio meia garrafa de branco. Provei e chamei o empregado: “Não está bom!”. Não era que estivesse “bouchonné”, mas tinha um cheiro e um gosto estranho, amargo, desagradável. Sem protestos, chegou nova garrafa. Provei. Tinha exatamente o mesmo sabor. À vista da repetição do meu esgar, o homem - igual a nós, porque os gregos são a nossa cara chapada - olhava, divertido: “Já tinha provado ‘retsina’ antes?“, perguntou, num inglês macarrónico. Eu só vagamente tinha ouvido falar dessa tal “retsina”, uma palavra cuja similitude com resina, pela prova, ali aprendi, de vez, estar longe de ser casual. Na altura, senti o meu cosmopolitismo a esvair-se. “É que o sabor da ‘retsina’ é esse mesmo!”, disse ele. Com os anos, percebi que a “retsina”, afinal, pode ”ir bem” com alguns pratos gregos.

Já não sei com que é que acompanhei a “moussaka”. Imagino que tivesse sido cerveja, que é aquilo a que recorro sempre, em situações limite. 

(“Piva”, era o que eu pedia, em russo, várias vezes ao dia, nos intervalos da vodka, nas três semanas em que percorri os países da Ásia Central, pelas fronteiras da China, do Afeganistão e do Irão. E, até hoje, a minha Gama GT e os trigliceridos continuam normais, dizem).

E a “moussaka” lá marchou, “tant bien que mal”. No final, pedi um café. “Greek coffee?”, perguntou o rapaz. Disse que sim. Sou pouco dado a derivas “native”, mas, depois da experiência da “retsina”, não custava nada dar uma de Lévy-Strauss. Quando a mistela chegou, com uma imunda borra no fundo, reagi: “Mas isto é café turco!”

O que eu fui dizer! Qualificar, na Grécia, alguma coisa que eles tenham por boa como turca, é equivalente a dizer aos de Lever que a barragem ali ao lado é de Crestuma. O tipo abespinhou-se e, em grego, creio que disse coisas que, imagino, devem ter procurado ofender a minha mãe, lá por Vila Real. Emborquei a bebida até ao pó, paguei e desandei, “de fininho”. 

Andei e jantei pela Plaka, depois disso, um par de vezes, mas sempre à distância do local daquela primeira noite. Vinte e tal anos depois, com Joseph Stiglitz, e as nossas respetivas, depois de uma semana de debates, em Creta. num “think tank”, fomos os quatro jantar à Plaka. E não é que o economista, num impulso, deu ares de se decidir pelo mesmo restaurante daquela minha primeira experiência!? Ao que eu, com uma imensa autoridade gastronómica, expliquei: “Aí não se come bem!”. O Joe, que só iria ser prémio Nobel da Economia meses depois (se eu tivesse desconfiado, tinha pago o jantar, para pôr essa “franqueza” premonitória no currículo), deve ter pensado: “Este tipo conhece imenso os restaurantes, aqui em Atenas”. Na verdade, eu só estava a tentar evitar encontrar-me com o empregado a quem, nesse final dos anos 70, não tinha deixado a menor gorgeta, coisa que, na Grécia, só não é um “casus belli” porque a expressão é latina…

Por que é que me lembrei agora disto? Porque, ao passar os olhos por uma desarrumada estante, aqui em casa, há minutos, deparei com o “Globalization and its Discontents”, de Joseph Stiglitz, em cujo pré-lançamento estive, em Nova Iorque, na fabulosa casa da sua sogra, no Upper West Side. E agora, intimamente, pergunto-me: será que alguma vez li o livro até ao fim? Tive um súbito frémito de vergonha, mas já passou!

Não sou de modas!

Sei que se diz assim. Mas, quando ouço ”procedimento concursal”, aparece-me logo urticária. Mais do que o prurido dérmico que surge quando ouço “hodierno“, “alavancar”, ”empoderamento”, “resiliência”, “novas ferramentas”, “as geografias” e, claro, “experienciar”.

“Spectator”

Hoje, deu-me para comprar o “Spectator”. E lembrei- me de Boris Johnson. Pense-se o que dele se pensar, há uma diferença abissal entre Johnson e a futura primeira-ministra britânica, além da ridícula bravata jingoísta que os une. Truss nunca será diretora do “Spectator”.

Zaporizhia

Há muitos anos, seguindo a lógica corrente nos romances policiais, os franceses davam um conselho sábio para a descoberta do autor do delito: "Cherchez la femme!". Nos ataques a Zaporizhia, sigam essa mesma linha, perguntem-se a quem eles aproveitam. Claro que pode não convir...

Wiriamu

Devemos estar bem atentos às reações internas à declaração de António Costa sobre Wiriamu. A separação moral das águas faz-se por aqui.

sexta-feira, setembro 02, 2022

Voltei à feira


Há pouco, comprei mais quatro livros, na feira. Dois sobre a Pide (para compensar a miserável capa de um jornal de hoje, gente com evidentes saudades da dita), um sobre as nossas relações com a “pérfida Albion” e ainda outro com crónicas de Fernando Sabino. Depois de jantar, vou ter de passar pela FNAC das Amoreiras. É que me disseram que estão lá a vender tempo, em saldo. E, embora possa parecer que não, ando com imensa falta dele. Como tenho cartão FNAC, ainda ganho algum desconto. Isto, com a idade, é só vantagens, acreditem! Se quiserem.

quinta-feira, setembro 01, 2022

Onde é o fogo?


Em Vila Real, na minha meninice, as duas corporações de bombeiros voluntários mantinham (manterão ainda?) uma forte rivalidade entre si. 

Eu era “pelos” bombeiros “de cima”, cujo quartel ficava bastante perto de minha casa, mas, por uma qualquer razão, em dias sem escola, imagino que naqueles verões infernais, passava algum tempo a tagarelar ao fresco no dos “de baixo”, por onde andava muito o meu amigo João Leite Gomes, vizinho dali. Os quartéis, valha a verdade, não ficavam longe um do outro. Na Vila Real desse tempo, aliás, tudo ficava perto. 

Imagino que os dourados e o exotismo da maquinaria de combate aos incêndios devessem seduzir os meus oito ou nove anos, recordando-me bem de que nunca me aproximava das ambulâncias, que sempre me suscitavam maus presságios.

À época, os bombeiros “de baixo” tinham a mais inconcebível das geografias: ficavam a meio da estreita Rua Direita, a artéria que, nesse tempo, era o eixo comercial da cidade. 

Para fazer sair os carros de bombeiros daquele quartel, de um local onde hoje está um café, era preciso proceder a complexas manobras, que seguramente atrasavam o socorro, obrigando a uma tarefa insana por parte do motorista e quarteleiro, o Magalhães, que, creio, vivia com a família no andar sobre o quartel. Tudo era por ali: o comandante dos bombeiros, o senhor Neto, vivia quase em frente e recordo que tinha um carro com uma cor vermelha, num mimetismo óbvio com as viatura da corporação. 

O Magalhães era um homem grande, muito simpático, que me dava a confiança de ter comigo algumas conversas, sei lá bem sobre quê, quando eu por ali me “aquartelava”, nessas tardes de férias numa cidade onde nada de jeito havia para fazer. Conhecia a minha família e presumo que eu não lhe atrapalhasse o serviço de “afinação” das viaturas e da limpeza dos “amarelos”. Tinha o Magalhães por “um amigo”.

Um dia, vinha eu com os meus pais ao longo da Rua Direita, imagino que num final de tarde, quando a sirene dos bombeiros alertou para um incêndio. A rua entrou em polvorosa, com os comerciantes a acorrerem às portas das lojas. Ao aproximarmo-nos do quartel dos bombeiros “de baixo”, a agitação aumentava. Ao volante do garrido carro de combate a fogos, que tinha bancos exteriores para os “voluntários”, que tinham saído a correr dos empregos e iam saltando para a viatura, depois de recolherem os capacetes com dourados a reluzir, lá vimos, afogueado, o Magalhães, tentando efetuar a complexa manobra de saída do quartel.

Durante décadas, o meu pai contava e recontava, entre risos de chacota, a historieta de que eu, no meio da tormentosa manobra que o Magalhães tinha em curso, com a barulheira do motor do carro de bombeiros em fundo, inconsciente da confusão que invadia todo o momento, terei lançado, do passeio, em direção ao condutor, um berro de catraio: “Magalhães! Ó Magalhães! Onde é o fogo?”. Não consta que o Magalhães tivesse respondido…

Porque é que me lembrei disto hoje? Porque acabo de sair da Presidência da República onde, exercendo a minha dupla qualidade de vila-realense e de membro do Conselho das Ordens honoríficas, fui testemunhar, ao final desta tarde, com imenso gosto, a entrega de uma comenda aos nossos fantásticos bombeiros “de baixo”, os voluntários da Cruz Branca, cujo magnífico trabalho merece um amplo reconhecimento de todos nós.

Ainda estive tentado a explicar ao presidente da República a bipolaridade bombeiral da minha terra. Mas desisti. Era difícil descrever que os “de baixo” já mudaram entretanto de quartel duas vezes e que o atual fica numa equidistância de dois restaurantes da “Bila” onde eu, um dia, o vou convidar para jantar, já que ele não almoça. 

De uma coisa tenho eu a certeza: Marcelo Rebelo de Sousa, que sabe tudo, não sabe quem foi o Magalhães, esse meu antigo amigo dos bombeiros “de baixo”, onde hoje mantenho alguns outros bons amigos. E que a comenda que a corporação hoje recebeu das suas mãos, pelos muitos anos da sua bela história, também acaba por ser dedicada ao meu amigo Magalhães, que já há muito terá saído do fogo da vida.

Perda de gás

O entusiasmo “va-t’en-guerre”, que conquistou os corações de uma Europa onde não chegou o cheiro da metralha, vai diluir-se muito com as primeiras faturas “gordas” da energia. Putin seria o destinatário natural dessa raiva, mas os governos nacionais estão mais à mão.

quarta-feira, agosto 31, 2022

A Arte da Guerra


Esta semana, falo com António Freitas de Sousa, no podcast “A Arte da Guerra”, Jornal Económico, sobre as eleições em Angola, a campanha presidencial no Brasil e tensão nos Estados Unidos, centrada na figura de Donald Trump. 

Pode ver aqui.

Vento leste

Na sua reação à morte de Mikhaïl Gorbachev, o PCP revela a superior qualidade de ser um partido que nunca nos surpreende.

Mesas de agosto - “Casas do Bragal” (Coimbra)


Coimbra, para mim, foi sempre um mistério em matéria de restauração recomendável - e deixo estas linhas expostas às balas de reação dos conimbricenses fanáticos. Por anos, e porque a abundante Bairrada era já ali perto, passávamos adiante. Nos tempos em que a sina rodoviária nos encafuava obrigatoriamente na EN 1, às vezes com longas filas para atravessar a cidade, um tio ensinou-me o “Pinto d’Ouro”, um clássico desaparecido há muito (os últimos anos foram de trágico declínio), à entrada da ponte. Do outro lado do Mondego, havia um restaurante simpático, cujo nome me escapa, logo à saída da Portagem, nos primeiros metros a caminho da estrada da Beira. Se com pressa, ia-se a uma espécie de snack-bar, cujo nome também esqueci, em frente à Auto-Industrial. Com mais tempo, numa de típico, fazia-se uma surtida ao Zé Manel, mas eu nunca fui muito de ossos. E que mais? A sério, havia o restaurante das piscinas e ainda há, mais p’ró fino e carote, mas muito bom, o “Arcadas da Capela”, na Quinta das Lágrimas. E uma ou outra coisa, como o restaurante do museu Machado de Castro, uma boa experiência. Mas tenho de me informar melhor sobre a atual oferta restaurativa em Coimbra.

Há já bastantes anos, tendo afazeres em Coimbra, telefonei a um oráculo de estimação, que sabe imenso sobre isto, perguntando por dicas. Foi ele quem me falou do “Casas do Bragal”, uma reconstrução como ideia, nas cercanias de Coimbra, de um restaurante que já tinha existido na Beira. Creio que ainda não tinha experimentado a casa, mas tinha boas referências, pelo que até lhe era útil uma “cobaia”. E lá fui. O “lá” é mais fácil de dizer do que de chegar. Não me vou pôr aqui com explicações. Metam o GPS ou telefonem, pedindo indicações. Fica a 10 minutos de carro do centro de Coimbra, embora esta seja uma cidade em que o conceito de centro é mais que discutível. 

O importante é que, em Coimbra, me “viciei” na cozinha da Manuela Cerca, com a sala sob o comando do Eugénio Martins. Um espaço interessantíssimo, numa moradia de bairro, em que os pratos são pedidos enquanto nos refastelamos com um gin numa zona de sofás, rodeados de livros e revistas, só partindo para a mesa mais tarde, quando por lá já estão as seis entradas e as vitualhas centrais se aprestam a chegar. A carta vai variando. Peçam ao Eugénio sugestões de vinhos: já me fez descobrir coisas interessantes. As sobremesas estão num lugar onde sempre vou petiscar várias doçarias, para crédito da minha taxa de glicémia. Os preços, bem, os preços estão na conta de um restaurante de qualidade.

Na noite de sexta-feira, enquanto me concentrava sobre o que ia dizer ao encontro do Bloco de Esquerda, na manhã seguinte, como orador exterior convidado para falar sobre um tema de política internacional, decidi ir recarregar as minhas baterias burguesas ao “Casas do Bragal”. 

Mikhaïl Gorbachev


Morreu ontem Mikhaïl Gorbachev, aos 91 anos. Foi o “notário” do fim da União Soviética, da sua implosão em 15 entidades nacionais diferentes, depois de ter sido secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e último presidente do país que fora criado pela Revolução de 1917. 

Como acontece com algumas figuras que são apanhadas na charneira da História, Gorbachev (ou Gorbachov, como é vulgar, entre nós, variar a grafia dos nomes russos) acabou por titular o encerramento de um período, ficando colado à abertura de outro, sem nele se firmar. 

Gorbachev repousa, irremediavelmente, nessa mesma História, como uma pessoa mal-amada no seu país. Mas, ao invés, passou a ser uma vedeta no mundo ocidental, por duas razões conjugadas. A primeira, por ter permitido a transição suave, sem violência, para esse mesmo espaço, das antigas “democracias populares” do Centro e Leste europeus, bem como a reunificação da Alemanha. O ocidente também nunca lhe negou uma imensa gratidão pelo facto da sua prática, como governante, ter culminado na dissolução da União Soviética, que era o seu maior adversário. Gorbachev assinou, na prática, a ata de derrota da URSS no fim da Guerra Fria. Verdade seja que, a não ser ele, outro o teria feito, no culminar do clamoroso falhanço do modelo.

Recordo ter lido algures que, nos ultimos anos, Gorbachev era uma figura que, na Rússia, merecia apenas 14% de apreciações positivas. Critico de Putin, como já o tinha sido de Yeltsin, Gorbachev, se acaso a sua voz tivesse sido ouvida, seria, com toda a certeza, um opositor da invasão da Ucrânia. Vai ter assim alguma graça observar como a Rússia oficial reagirá à sua morte.

Ainda antes de ter andado nas bocas do mundo, Gorbachev veio um dia a Portugal, a um congresso do PCP, creio que no Porto. Era então uma das figuras possíveis para sucessão de Chernenko. Recordo que nenhum dos nossos “kremlinólogos” o apontou como o homem seguinte. Mas, das fotografias que os jornais trouxeram, fixei-lhe a cara.

Um dia, já em Março de 2000, António Guterres convidou-me para um almoço com Gorbatchev, na residência oficial, em S. Bento. Estava também o ministro da Defesa, Júlio Castro Caldas e, claro, o intérprete de Gorbachev.

Gorbachev estava em Lisboa creio que para uma conferência. Acabei por jantar de novo com ele, talvez no dia seguinte, dessa vez também com uma sua filha, no forte de S. Julião da Barra, a convite de Castro Caldas, com umas largas dezenas de convidados. Não guardo a menor memória de coisas ditas nesse jantar - e eu tenho boa memória.

Mas recordo o tal almoço, para o qual, confesso, entrei com uma elevada expetativa. Na realidade, tratando-se de uma figura que atravessara um período riquíssimo da vida internacional, que protagonizara o fim do mundo soviético, que vivera a trágica convulsão interna dessa desagregação, que fora interlocutor estratégico privilegiado dos Estados Unidos e de personagens como Thatcher, Kohl ou Mitterrand - por todas essas e por outras razões mais, esperava ir ter um almoço memorável. Nunca comparei notas com António Guterres e Júlio Castro Caldas sobre esse repasto, mas devo dizer que saí dele um tanto desiludido com a figura que o justificou.

Mikhaïl Gorbatchev não deixava de ser uma personalidade interessante, mas, quando o avalio à luz daquelas horas em que o ouvi, está muito longe de ser uma figura fascinante. Falou imenso, mas deu-me a sensação de ter criado e ensaiado um discurso feito à medida daquilo que os seus interlocutores dele esperariam, auto-justificativo, muito óbvio, com ideias que, como dizia o outro, quando eram originais não eram boas e que quando eram boas não eram originais. Mais tarde, ao ler alguns textos seus, voltei a não encontrar razões para mudar de opinião.

Dito isto, que fique bem claro: Mikhaïl Gorbatchev é uma das figuras que ficará na história contemporânea, olhado contudo com mais ou menos apreço, consoante as geografias de onde essa sua imagem é observada.

terça-feira, agosto 30, 2022

Respeito e gratidão


Tenho um imenso respeito por Marta Temido, pela coragem, dedicação e competência que revelou durante um dos períodos mais complexos da saúde pública em Portugal. Deixo-lhe expresso, como cidadão português, o meu profundo agradecimento.

segunda-feira, agosto 29, 2022

O sorriso do Duarte

Agosto de 1975. Palácio das Necessidades. Eu, acabado de tomar posse como diplomata, mas ainda nos últimos dias de tropa, com farta bigodeira e cabelo “Verão quente”, de camisola de gola alta, teimando em não usar gravata. Ele, impecável no seu blazer azul, imagino que com o lencinho a pingar do bolso, calça clara, já diplomata “por uma pinta”.

- “Tás” bom?! Já não nos víamos há muito tempo? Que é feito de ti?

- Desculpe. Deve estar a confundir-me com o meu irmão, com o Tó. 

Era isso. Ele era o Duarte Ramalho Ortigão. Eu tinha sido colega de ano e de curso do irmão, António Ramalho Ortigão. Ambos eram muito parecidos.

Passou, entretanto, década e meia. A vida profissional, como é de regra, deu-nos destinos diferentes. Mas, a partir de 1990, por mais de quatro anos, haveríamos de coincidir em Londres, ele como cônsul-geral, eu como ministro-conselheiro da embaixada.

Quantas belas noitadas, em família e com amigos, nós então tivemos! Restaurantes (eu, já então, “pesquisador” de locais bizarros), idas aos cavalos a Ascot, às regatas de Henley, às receções de Buckingham.

Em uma dessas receções, a princesa Diana aproximou-se da delegação portuguesa e, vendo pingar dos pescoços, meu e do Duarte, que estávamos impantes nas nossas casacas, a insígnia da Cruz de Cristo, sopesou com a mão, atrevida, a insígnia do Duarte (e não a minha, vá-se lá saber o porquê da discriminação!), e inquiriu junto do embaixador António Vaz Pereira, que chefiava o nosso grupo: "Ambassador, you don't have it?". Vaz Pereira, que tinha ao peito outras condecorações bem importantes, mas não tinha a Cruz de Cristo, respondeu, diplomático: "I'm working for it, Your Highness!".

Nesses anos de Londres, ambos construímos então uma bela amizade, com ele e com a Binha, feita de expedições familiares a Portobello Road (eu baldava-me bastante e fazia-me “representar”, valha a verdade, porque aproveitava essas manhãs de sábado para pôr em dia o sono das noites da semana), onde ele era o maior “expert” em antiguidades e descobridor de velharias que valiam a pena.

O Duarte era extrema “boa onda”, era muito boa pessoa. Tinha um riso saudável, uma gargalhada muito franca. Mantinha um ambiente familiar de imenso equilíbrio, com uma prole de que, ele e a Binha, cuidavam ao pormenor, numa harmonia que todos admirávamos.

Entre algumas outras ocasiões, lembro-me de um agradável jantar ao ar livre, no Pireu, numa viagem nossa a Atenas, creio que idos de Nova Iorque, ao tempo em que ele era embaixador na Grécia. Nunca esqueci, também, que, em 2009, à nossa chegada a Paris, estando ele a horas de sair de embaixador na Unesco, insistiu em oferecer-nos um jantar de boas-vindas. Entre nós, a conversa fluia sempre, bem disposta, como se nos tivéssemos deixado na véspera. 

Num dos períodos mais complexos da pandemia, telefonei a saber da sua saúde, que tinha ecos de ter atravessado momentos complexos. Estava com um excelente espírito, falámos em organizar uma jantarada, “quando sairmos desta”. 

Afinal, já não vai ser possível. Há pouco, disseram-me que o Duarte saiu ontem de cena, vítima dessa tal pandemia que, afinal, continua a andar por aí.

Deixo um beijo de imenso pesar à Binha e ao filhos, bem como um abraço ao Tó. Não vamos poder contar com o sorriso bom do Duarte. Cada vez mais, esta vida anda pela hora da morte.

Olhar os dias em quinze notas

1. As palavras têm um peso, mas as mesmas palavras não querem dizer exatamente o mesmo. Biden defendeu hoje a independência da Ucrânia. Puti...