quinta-feira, setembro 15, 2022

Companhias aéreas


Estou a entrar num avião, de regresso a Lisboa, com Nova Iorque ao fundo.

As viagens aéreas são, para mim, momentos "sagrados", em que, quando não passo "pelas brasas", aproveito para ler coisas que tenho em atraso. Com esta última finalidade, levo sempre comigo quilos de jornais e revistas, dois ou três livros dentre a dezena que ando simultaneamente a ler. O que carrego para uma viagem, se acaso chegasse ao fim da respetiva leitura completa, equivaleria, no mínimo, ao tempo de três percursos. Mas é assim mesmo: sou um otimista da leitura.

Porque as viagens são isso - um incomparável tempo descansado para ler, sem ser interrompido por telemóveis ou conversas -, detesto diálogos com os parceiros do lado, a menos que, por uma qualquer razão, seja eu a ter a iniciativa de os encetar. Mal me sento (e luto pelos locais de janela, para poder "blindar-me"), evito reagir a qualquer casual comentário do viajante próximo, do tipo "está muito calor, não acha?" ou "cada vez há menos espaço entre as cadeiras" ou "será que ainda nos vamos atrasar muito?" ou outras vetustas "alavancas" análogas, usadas para iniciar uma troca de palavras. É que, se a minha resposta ultrapassar um seco monossílabo, a possibilidade de vir a ter de entabular uma conversa que afeta o meu tempo de leitura torna-se imensa. 

O período da refeição é, de longe, o mais perigoso, porque geralmente estamos desmunidos de peças de escrita, razão pela qual cuido sempre em deixar um pedaço de jornal a espreitar por debaixo do tabuleiro, fingindo que nele me concentro (assim evitando elaborar na resposta ao "que tal achou o tinto?"). Devo dizer que, com as "horas de voo" que tenho no currículo, considero-me já um "profissional" batido nesta matéria, conheço "de ginjeira" os truques todos e, quase sempre, tenho garantido sucesso neste meu (por vezes, artificialmente pouco simpático, reconheço) procedimento, conseguindo escapar aos palradores aéreos. 

Historicamente, tive um dia um azar que para sempre me ficou gravado na memória. Ia, precisamente ao contrário de hoje, de Lisboa para Nova Iorque e tinha preparado tudo para as minhas cinco horas e tal de viagem (ah! porque não durmo bem em aviões, eu também sou "aquele" passageiro incomodativo que leva sempre a luz de leitura aberta, mesmo no bréu coletivo da cabine, durante as noites, para grande raiva dos restantes viajantes): jornais, livros de vária espécie (recordo que havia poesia pelo meio) e até banda desenhada. Tinha também um "laptop" para escrever uma coisa em atraso e havia prometido a mim mesmo aproveitar para nele arrumar fotografias. Tudo estava preparado para uma bela viagem, no incomparável prazer da solidão aérea.

Acrescia a constatação feliz de que o lugar ao lado do meu iria ficar vago, o que me permitiria, desde logo, fazer nele um estendal da parafernália de leitura que transportava. Nessas ocasiões, devo confessar, passo minutos de angústia até confirmar o fecho da porta do avião, momento de alívio a partir do qual sei que ninguém mais virá ocupar esse espaço. E assim aconteceu, nessa ocasião. Como nesses tempos a classe executiva era de regra (há muito tempo que isso acabou!), até aceitei uma taça de champanhe, mais para brindar ao lugar vazio ao meu lado do que por devoção ao dito.

O avião descolou, recostei-me e comecei a sessão de leitura, saltitando entre o muito que trazia. De súbito, ouvi: "Meu caro, vi que você estava sentado aqui. Eu ia ali atrás. Importa-se que eu ocupe este lugar vago ao seu lado?". O que é que se responde a isto? "Importo, claro, desampare-me a loja, não me chateie"? Não é possível. 

Era um político português, um homem simpático mas um falador endémico, aquilo a que os brasileiros chamam "um chato de galocha", o qual, começou por me explicar que também ia para Nova Iorque (como se eu suspeitasse que fosse para Ulan Bator...) e que, praticamente durante as cinco horas da viagem, me atazanou os ouvidos com historietas, perguntas e comentários. De rastos ficou todo o plano de leituras que, com imenso critério, eu tinha premeditado para esse voo. Ainda hoje, muito tempo depois, não me recompus do trauma, como se vê.

7 comentários:

Flor disse...

A solução? É comprar dois bilhetes mas nem assim porque pode dar-se o caso de alguém lhe pedir licença para ocupar o lugar do lado. Não percebo o porquê de haver converseta com o vizinho do lado. A mim nunca me aconteceu. Será que não puxam conversa com as senhoras??
Desejo que tenha tido uma boa viagem de regresso.

Anónimo disse...

I've a feeling you're not in Kansas anymore.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A minha experiência de viajante em meio coletivo é mais nas Rápidas ou Expressos Caldas-Lisboa, pese embora não tenha assim grande aversão a conversas de vizinhos, prefiro a "minha" música e eventuais leituras.

Lúcio Ferro disse...

Belo post. Pessoalmente, odeio aviões e evito-os. Tudo está relacionado com uma experiência terrível que tive há muito num voo Lisboa Glasgow. Estava constipado nesse dia. Sofro muito dos ouvidos, também. Resumindo, mal saí do avião tive de ir consultar o médico do aeroporto e fiquei surdo durante uma semana. Desde então, sempre que tenho a desdita de entrar num avião vou munido de pastilhas elásticas, de rebuçados e... Benzo-me.

João Cabral disse...

Conclusão, deve ser muito chato viajar consigo, senhor embaixador.

manuel campos disse...


Uma coisa é viajar com um familiar, um amigo ou um colega.
Outra coisa é viajar com alguém que o azar nos pôs (e impôs) ao lado.

Se numa ida ao Porto ou até a Madrid nunca me importei de dar dois dedos de conversa, tudo o que fôsse mais longe não muito obrigado.
Tenho mais que fazer (e pensar) na vida do que responder durante horas e horas aos dramas existenciais de alguém que nunca tinha visto e nunca mais vou ver.
Isto tudo com o bónus adicional e espectacular de não ter fuga possível, de não haver desculpa nem escusa nenhuma que nos valha sem passarmos nós, que estávamos quietinhos no nosso canto sem chatear ninguém, por mal-educados.

A minha experiência destas coisas é de que, ainda por cima, a maior parte das pessoas que nos "impõem" a sua presença nestas circunstâncias o fazem porque vão "borradas" de medo e aquilo é um modo de não pensarem nisso.
Um dos meus "truques" (mauzinho!) era levar a conversa assim que possível para experiências minhas reais ou inventadas de viagens de avião terríveis
(também as tive).
Funcionava bem as vezes suficientes, muito em especial uma viagem de Londres para Paris que ainda hoje não percebi como chegámos inteiros.
Uma das tais viagens em que "não há um único ateu a bordo".

Joaquim de Freitas disse...


Senhor Embaixador, num voo, também para Nova Iorque, mas de Genebra, tive como vizinha do lado alguém que tenho a certeza o Senhor Embaixador gostaria de "conversar"...Géraldine Chaplin. Os seus olhos a lembrar-me o Pai ao longo da nossa conversa...

Outro voo, de Nairobi para Genebra: Peter Townsend, mesmo ao lado, mas, como o Senhor Embaixador, depois de algumas considerações sobre a altitude do aeroporto de Nairobi, que facilitava a descolagem, e mais meia dúzia de palavras amáveis, desapareceu no seu correio…Mas era “charmant” e as hospedeiras passavam frequentemente ao seu lado…

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