1975. Creio que foi em maio. Com a gravata então de regra e uma forte bigodeira, fui fazer as provas orais do concurso para entrada na diplomacia. Tinha ultrapassado as provas escritas e, pelo caminho, para as vagas existentes, já tinham caído algumas centenas de candidatos.
Posso não estar a ser totalmente rigoroso, mas creio que havia, num saco, 99 bolas numeradas, correspondentes a outros tantos temas: 33 de Direito Internacional, 33 de Economia Política e 33 de História Diplomática. Cada candidato metia a mão no saco e tirava uma bola. Saiu-me um tema de Economia Política. Era sobre o processo de construção europeia.
À época (noto que estávamos no início do “Verão Quente” de 1975), a ideia de Portugal poder vir a aderir às então designadas Comunidades Europeias nem sequer era objeto de discussão. Ninguém, que me recorde, falava sobre isso.
Eu tinha exatamente quatro horas para me preparar para conseguir fazer uma exposição de vinte minutos sobre o tema sorteado, após o que, ainda sobre o mesmo, seria interrogado durante mais vinte minutos. (Resta dizer que, ao final do dia, havia ainda uma segunda prova: dos 66 temas das outras duas categorias de temas, tínhamos de indicar um, sobre o qual éramos interrogados por mais vinte minutos).
Recordo haver colegas que tinham preparado pequenos dossiês sobre cada um dos 99 temas! Eu, que fazia o concurso no meio do meu serviço militar e com um emprego que me ocupava todas as manhãs, não levava uma única linha preparada sobre nada! Comigo apenas tinha um livro de Ramón Tamames sobre economia internacional, o clássico manual de Direito Internacional de André Gonçalves Pereira e dois pequenos volumes da “Larousse de poche” sobre História do século XX. Sobre a temática europeia, eu nada tinha à mão para consulta.
Cheguei à biblioteca do MNE e descobri um único livro relevante. Não consigo recordar o título (se alguém o encontrar, completarei esta nota), mas era um conjunto de estudos sobre a questão europeia. Assinava-os o professor Paulo Pitta e Cunha.
Eu pouco sabia sobre o assunto, que pouco me motivava, pelo que, naquelas quatro horas, absorvi daquele livro tanto quanto pude. Fui para essa prova oral com umas notas apontadas numa folha A4. E fiz o exame. O professor universitário, membro do júri, que me calhou em rifa, no fim desses difíceis quarenta minutos, considerou que eu era digno de ser aprovado. Como esse professor, como viria a constar, nunca tinha dúvidas e raramente se enganava, presumo que terá tomado a decisão certa.
Fiquei assim a dever a Paulo Pitta e Cunha a “ciência” que me valeu ser escolhido nessa prova decisiva para o acesso às Necessidades. Um dia, contei-lhe pessoalmente esta história. Ele, supreendido e risonho, exclamou: “Não me diga! Fico muito satisfeito por ter tido essa contribuição para o início da sua carreira”.
Há minutos, acabado de chegar a Lisboa, ao abrir uma revista, li a notícia da morte, há dias, do professor Paulo Pitta e Cunha. Deixo aqui esta nota singela de memória e de homenagem a um grande europeísta e insigne académico, com um abraço amigo de pesar ao seu filho Tiago.
5 comentários:
Ainda bem que o Sr. Embaixador conseguiu contar essa história ao Professor Paulo Pitta e Cunha. Seguramente depois de saber do seu falecimento ia ficar com um sentimento de "culpa" por nunca o ter feito antes.
Que descanse em Paz.
O que me foi lembrar, o Ramón Tamames, também o tenho em castelhano, numa edição de bolso ("Formación y desarrollo del Mercado Común Europeo. Iber-Amer, 1965).
Quando fôr aonde o tenho vou ter que, pelo menos, o folhear como boa memória, na altura não havia dinheiro para comprar muita coisa e aquilo andou comigo meses, lido e relido.
E como é evidente os "Larousse de poche", a pequena "enciclopédia" possível na altura para os que tinham tido a sorte de aprender francês (hoje ninguém quer aprender francês), uns por assim dizer manuais que abordavam todo o tipo de assuntos.
Também devo ter esses, eu gastava os poucos "cobres" que na altura tinha na Livraria Barata onde apareciam regularmente e o Sr. Barata me fazia 10% de desconto.
Tenho uma razoável quantidade de romances na "Livre de Poche" (religiosamente guardados) em que verifiquei há tempos que para aí na segunda metade dos anos 60 os simples custavam 14 escudos (5€ a preços actualizados) e os duplos 23 escudos (8€ a preços de hoje).
Uma fortuna para mim na altura, tinha que cortar nas bicas.
Dá para ficar a pensar, também nisto, como as estruturas de preços evoluíram nos últimos nos últimos 50 anos aqui na Europa.
Adenda
O livro a que se refere deve ser "Estrutura da Economia Internacional" editado entre nós pela D. Quixote.
Dadas as ideias políticas do autor quem mais o editaria entre nós nesses tempos?.
Mesmo em Espanha não era fácil, muito em especial porque aquilo teve um êxito imediato por lá, em parte por vir de quem vinha.
Tenho os dois em castelhano mas como não "o vejo" há uns 20 anos (última vez que arrumei aquela estante) havia alguma coisa que estava aqui a soar mal.
Não sei se assim vai acabar por soar melhor mas fica a tentativa.
O livro foi sendo actualizado à medida que saíam novas edições mas entretanto eu já estava noutra e não me "actualizei".
Nesta história só cai mal o professor que nunca se enganou e nunca teve dúvidas. Ninguém se lembrou de fazer um exame de cultura geral ao tal professor, antes de o sentarem mum júri onde se avaliava a cultura, o conhecimento histórico e tudo o mais que um diplomata tem que saber para bem desempenhar o seu papel?
Nunca pude com o tal senhor que nunca se enganou e raramente teve dúvidas.
Minha mulher então ainda menos!
Mas ele estaria lá dado o tema, como me parece evidente.
Mas achar que a maioria dos professores que se sentam nos júris são efectivamente cultos para além da sua "especialidade" (que é o que os leva aos júris) não é ingenuidade que me assista, por razões estritamente profissionais conheci e convivi com dezenas.
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