sábado, março 14, 2020

As mãos


Manuel Alegre tem um poema que, noutros tempos, muitos da minha geração sabíamos de cor.

Era “As Mãos”: “Com mãos se faz a paz, se faz a guerra / com mãos tudo se faz e se desfaz / com mãos se faz o poema - e são de terra / com mãos se faz a guerra - e são a paz”.

Nestes dias em que todos andamos preocupados com as mãos, que colocamos atrás das costas quando um conhecido se aproxima, imprudentemente, para uma “mãozada” das antigas, tenho-me lembrado muito desse texto, que também dizia: “Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra./ Não são de pedras estas casas, mas de mãos. / E estão no fruto e na palavra / as mãos que são o canto e são as armas”. 

Um velho amigo, que se foi afastando de mim, desde há uns anos, por razões, pelos vistos, ideológicas (imaginem!), um homem do Norte que verifico que tem vindo a “adolescer” com a idade no seu crescente radicalismo, mantinha, ao que me lembro, uma velha tese que nunca vi provada mas que sempre apoiei, por um corporativo tropismo regionalista: ”Nós, a malta da Norte, lavamos as mãos com muito mais frequência do que estes tipos do Sul, em especial os de Lisboa”. Assisti a gente a reagir, indignada, a esta teoria. Será verdadeira? Não quero abrir o debate, longe disso! Se ele se instalar nos comentários, “lavo daí as minhas mãos”...

Imagino que esse meu amigo, agora distante, hoje convertido a uma espécie de nacionalismo esquerdista, num regresso às origens onde acalentou “amanhãs” que ele deve achar que não cantaram suficientemente, o que até lhe acidulou a escrita, possa andar agora, como sabão e álcool, a desinfetar os seus dias e as suas mãos, até porque, tal como muitos de nós, “já não vai para novo”.

Como ele também andou por Coimbra, e como o mundo já deu muitas voltas, posso imaginar que, nesta fase da vida, ele goste da poesia de Manuel Alegre, de que aqui deixo as estrofes finais do soneto que acima fui transcrevendo: “E cravam-se no tempo como farpas / as mãos que vês nas coisas transformadas./ Folhas que vão no vento: verdes harpas. / De mãos é cada flor, cada cidade./ Ninguém pode vencer estas espadas:/ nas tuas mãos começa a liberdade.”

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