segunda-feira, março 30, 2020

A refeição imaginária


Nestes dias de confinamento, os “menus” caseiros dependem muito da criatividade culinária dos membros da família. Há quem seja mais dotado para a cozinha (e eu dou pleno direito a quem aplica com méritos esses predicados) e há quem pertença à muito estimável categoria dos que, não tendo tido a ventura de ser dotado de tais dotes, se distinguem, no entanto, pela importante tarefa de analisar aquilo que se degusta.

Faço parte desse último e distinto grupo. Todos os dias, lá vou dando a minha preciosa valoração: “Acho que esta tarte precisava de um bocadinho mais de apuro” ou “tens de ter mais cuidado com o demolho do bacalhau” ou “esta carne ganhava em estar mais ‘medium rare’ “. E, com estas judiciosas avaliações, sei que dou um contributo inestimável à vida da casa. E, claro, nunca me passou pela cabeça pedir para que alguém me agradeça estas observações, feitas com a sabedoria gustativa de muitos (vá lá, e bons!) anos. Temos de ser uns para os outros, não é?

Nestes estranhos dias, em que me apetecia sair de casa e não o faço, em que bem gostava de estar em almoçaradas com amigos, mas não estou, lembro-me de algumas belas refeições que tive. Mas também de outras que não pude ter.

Quando passei três sinistros meses no Curso de Oficiais Milicianos em Mafra, nos tempos da “outra senhora”, as refeições eram quase sempre péssimas, naquele espaço imenso do “refeitório dos frades”, dentro do convento. Cada pelotão tinha a sua mesa, onde, sob um chavascal de libertação de uma linguagem que não ia ao “exame prévio”, chegavam umas travessas metálicas, trazidas por uns “prontos” (nome dado aos soldados), para onde logo convergiam os apetites da maralha.

Lembro-me bem de que o Zé Maria Ribeiro da Cunha se queixava amargamente de que, nesses curtos mas longos meses, nunca conseguiu deitar ondente a um peito de frango, dada a rapidez glutona de alguns colegas, que já se sentavam estrategicamente onde sabiam, de ciência experiente, que iam assentar as vitualhas.

Mas, com esta conversa, quase me perdi. Não era sobre o que comíamos que eu queria falar. Era sobre o que não comíamos...

Antes do almoço, havia lugar a uma formatura. Relaxada, mas, mesmo assim, formatura. Era o momento em que nos chegavam as cartas da família e das namoradas (imagino que também dos namorados de alguns, mas essa não era uma conversa para esses tempos...). Aquilo durava aí uns dez minutos. Era então esse o período em que eu e o Carlos Seruya (não por caso, nos dias de hoje, ambos membros, por algum tempo não ativos, dos “trinta magníficos” da Academia Portuguesa de Gastronomia) levávamos à prática um jogo sádico, que irritava supinamente os restantes 28 membros do bando de verde escuro.

Ou eu ou o Carlos, aventávamos: “O que é que achas que vamos comer hoje?”. O outro respondia: “Disseram-me que é um bacalhau à Lagareiro. Mas, antes, vêm uns pasteis de massa tenra, com arroz de ervilhas. A sobremesa é que não agrada muito: é um pudim abade de Priscos, mas eles costumam não ter cuidado em dar-lhe o toque de toucinho necessário. É uma chatice! Um dia temos de dar uma palavra ao comandante de companhia” O pessoal do pelotão, que sabia que, minutos depois, ia afinal comer um rancho miserável, ficava furibundo com aquela nossa conversa e desatava a protestar: “Calem-se lá com essa conversa, p... Só abrem o apetite!” Mas nós insistíamos: “Pois a mim, o sargento de rancho garantiu-me que era um empadão de lebre. Antes, parece que são umas ameijoas à Bulhão Pato. Espero é que saibam pôr a dose certa de coentros! Mas, na sobremesa, eles não costumam fazer mal os papos de anjo, com um bom molho”. Por essa altura, já as ameaças à nossa integridade física surgiam de vários pontos da formatura, com o alferes Carvalho, que nos tinha sob tutela, a estranhar a nossa agitação.

Bons tempos? Bons tempos, uma ova! Se tivessem como perspetiva ir parar com os costados à guerra colonial, como aconteceu a muitos, não pensariam assim. Mas, se compararmos esse período com os dias cinzentos que atravessamos, com o vírus que pode surgir sabe-se lá onde, até eram uns tempos simpáticos!

Deixo aqui aqui um abraço amigo ao Carlos e ao Zé Maria, esperando que algum leitor, atento e amigo de ambos, lho transmita. Relembrando, aliás, que os três, com as “respetivas”, nos encontrámos há uns meses, com álcoois à medida, numa jantarada bem simpática nas Casas do Coro, em Marialva, para os lados de Foz Côa. É o que se leva desta vida, não é!

4 comentários:

jj.amarante disse...

É curioso como pensei no refeitório de Mafra e já lá vão dezenas de anos! Comida terrível e o nosso exército não era tão poderoso assim. Segundo o Asterix, quando se alistou como legionário, quanto mais poderosos são os exércitos pior é a comida, para manter os guerreiros furiosos.

APS disse...

Para ser justo e não totalmente ingrato, louvo a boa qualidade dos pequenos-almoços (exceptuando o café): magnífico leite, boa manteiga e pão muitíssimo razoável, "honestamente" fresco.

Anónimo disse...

Que prosa bem humorada nestes tempos de confinamento; fez-me regressar também aos 3 meses que passei em Mafra de Outubro a Dezembro de 1971, antes de ir para a Guiné. De vez em quando lá íamos à Ericeira para esquecer por momentos o refeitório dos frades.

Anónimo disse...

Senhor embaixador as histórias deliciosas que narra são um
bálsamo que ajudam a tornar menos tristes e penosos estes dias sem fim à vista. Bem haja,Ana Paula

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...