quarta-feira, março 25, 2020

Escrever na água


Com o mundo a mudar de forma tão rápida, sem que ainda saibamos quanto e para onde, alinhar ideias sobre o quotidiano é um exercício arriscado. Sinto-me a escrever na água. Mas é necessário ir refletindo sobre esta mudança.

Fala-se bastante, nos últimos dias, na possibilidade de uma alteração da relação geopolítica de forças à escala global, por virtude desta crise. Nessa leitura, o mundo ocidental, com os EUA em maior evidência, seria a principal vítima e a China o grande beneficiário.

A equação para análise desta questão tem duas variáveis essenciais: a economia e a política, esta como resultante do choque humano e social.

O primeiro é facilmente comparável. Daqui a uns meses, será mais claro o estado em que ficaram as grandes economias, embora não devamos esquecer que, numa escala global interdependente, a “saúde” de umas dependerá muito do estado das restantes.

A segunda variável é de uma mensurabilidade mais complexa. As ditaduras, como a da China, têm uma capacidade de contenção rápida dos efeitos políticos de uma tragédia. As democracias, porque tributárias da liberdade de opinião, acomodam de forma diversa essas consequências. Se parece evidente que a China não deve sofrer abalos políticos por virtude desta crise, no mundo ocidental tudo está em aberto. Trump será reeleito? A União Europeia continuará a ser digna do nome ou “balcanizar-se-á”, por falta de consenso (relembro, porque é feita de democracias)?

Devo dizer – e aqui entro na especulação – que a História nos mostrou que a natureza da economia americana, na crueldade do seu modelo de capitalismo, muito tributário da teoria da “destruição criativa” de que nos falava Schumpeter, sempre mostrou uma capacidade maior de reinvenção do que qualquer dos seus parceiros de sistema, talvez com exceção dos “tigres asiáticos”. Há uma flexibilidade no modelo americano que os faz sair mais cedo das crises. Mesmo daquelas em que foram os principais protagonistas, como em 1929 e 2008.

Por tudo isso, a menos que o fizessem por deliberada abdicação, na qual não acredito, estou em crer que os EUA, devendo sair enfraquecidos economicamente desta conjuntura, não vão ser afastados do seu papel de potência dominante. Como o caso russo hoje demonstra, numa escala menor, a economia não determina, por si só, a capacidade de expressão de poder de uma entidade internacional. Se isso assim acontecesse, a União Europeia, uma das grandes forças económicas do mundo, seria um formidável poder. E é o que é.

12 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Entre as duas ditaduras, a chinesa e a americana, há uma diferença fundamental: A chinesa exerce-se pela acção positiva, no seu próprio território, e os resultados demonstram a sua eficácia. E quando age fora do seu perímetro é para ajudar outros com a sua experiência.
O que supõe a existência de uma politica firme, liderada por homens ideologicamente, emocionalmente e espiritualmente equipados para lidar com uma ameaça planetária como o vírus. “Up to you” de lhe chamar uma ditadura.

É uma visão do mundo completamente diferente da ditadura americana, que, esta, impõe a sua vontade por todo o lado com a força militar, as armadas que navegam nos mares do globo, as 800 bases militares disseminadas no mundo, os embargos criminosos àqueles que não cooperam, as ameaças permanentes de toda a espécie, e a utilização duma moeda como arma de arremesso, é uma ditadura feroz. Que não poupa ninguém, nem os seus amigos e aliados.

Ditadura que, apesar deste poder enorme não tem respostas para a terrível situação que conhecemos. E que leva o país para o primeiro lugar da mórbida contabilidade mundial

Improvisação, depois de ter negado o vírus, constatação de falta de meios e de organização, aparecendo à superfície rapidamente a única preocupação latente desta ditadura, a ECONOMIA.

Do presidente dos EUA ao governador do Texas que dizem claramente o que muitos americanos pensam: que os idosos devem morrer para salvar a economia e o futuro dos filhos…E que, eventualmente, se a China for muito, impactada pelo vírus, seria bom para a competitividade dos EUA…

Senhor Embaixador: Entre as duas ditaduras, prefiro a Humanidade. Combater pela vida, como fizeram os Chineses, vale muito mais que o índice de Wall Street e o resultado das eleiçoes de Novembro para Donald Trump.

Não valem mais que o que disse no fim-de-semana Dominic Cummings, o ideólogo de Boris Johnson, responsável no adiamento da resposta do governo britânico ao Covid 19, pondo a
Grã-Bretanha na (errada) rota italiana de contágio e não na do (bom) exemplo sul-coreano.

Miséria de miséria, estes são os dirigentes de grandes países - isto é, de grandes economias

dor em baixa disse...

Os europeus durante séculos fizeram guerras e tiraram delas o proveito. Até que um dia se guerrearam entre si e se destruiram. Deixaram no terreno o seu herdeiro que faz guerras como ninguém é em todo o lado. A China parece forte,mas que guerras fazem? Onde já atacaram?

Anónimo disse...

Caro Joaquim de Freitas,

Entre as duas ditaduras, económica ou humanitária, prefiro a última.
O bom exemplo da República da Coreia, até agora, foi ter conseguido um equilíbrio das duas.
Excetuando os estabelecimentos de ensino todos, não fecharam mais nada. E a população faz a sua vida normal.
Mas possuem os meios que nos faltam:
Realizam cerca de 200 mil testes por dia, testam todos os que estiveram em contato com alguém positivo, vão na sua pegada até à exaustão, através dos telemóveis, cartões de débito, etc.
Quarentena obrigatória para estes e assim foram controlando a propagação do vírus.
E porque o controlo por parte das autoridades sanitárias é enorme, é possível proteger os que ao serem atingidos morrem mais. Daí a baixa taxa de mortalidade.

Uso de máscaras por lá é obrigatório e fácil de perceber.

Em Portugal ainda desaconselham o seu uso, PORQUE NÃO HÁ NO MERCADO.
E porque também não há VENTILADORES,
Fico em casa, porque o posso fazer, com a minha família, para proteção de todos.
Saí TRÊS vezes, em duas semanas (comecei mais cedo) só o issencial para manter uma casa a funcionar. Não recebo visitas.
Quando muitos continuam a trabalhar desprotegidos e outros nos supermercados ou a passear desprotegidos, só podemos esperar o pior.

Itália e Espanha, dois exemplos a não seguir, exatamente o que estamos a fazer:

1-Falta de naterial de proteção
2-Falta de testes

Anónimo disse...

"Escrever na água" era o título de uma crónica que o meu conterrâneo vizinho Augusto Abelaira
escrevia no semanário "O Jornal".
Ai como eu tenho saudades da comunicação social desse tempo, muito em especial do citado jornal do qual era leitor assíduo! Agora, salvo algumas excepções, só se vê lixo, lixo, lixo...!
PCoelho

Francisco Seixas da Costa disse...

PCoelho. Hoje, num comentário para o JN, um leitor foi de uma grande agressividade e deselegância para comigo, por ter usado esse título para a crónica. Respondi-lhe assim: “O leitor, além de muito indelicado, por razões que desconheço mas presumo, é bastante precipitado, admito que por não saber algumas coisas. “In aqua scribere” é uma velha expressão latina, usada por Catulo, com um significado um pouco diverso, muito citada nos manuais jurídicos. Desde então, e pelos tempos, tem sido usada por muita gente, incluindo, claro, Augusto Abelaira, que tinha essa excelente coluna. Nos dias de hoje, há mesmo um programa da RDP África com esse nome, como poderá confirmar indo no site da RTP.”

Anónimo disse...

"... tem duas variáveis essenciais: a economia e a política, ..."
Os EUA são uma (a?) potência mundial. E sê-lo-ão enquanto tiverem poder para influenciar fontes de crude. Não será fácil retirar-lhe esse predomínio politico militar.
A Rússia mantém peso político e económico, não sendo dispiciendo o factor gaz e crude.
A China, por todas a razões -ao fim de 20 curiosos anos- é uma grande potência ... e procura influenciar fonte de crude.
A União Europeia nâo tem crude nem poder para influencar essas fontes. Apenas poderá manter alguma presença política como grande consumidor ...

Mas como sabemos a (insólita) realidade negocial dos "hidrocarbonetos" entre quem de direito e os consumos por via do vírus da China, reduziram ultimamente os preços de esses produtos.
Menos procura, muita oferta, tudo com um travo de poder político ... e, agora, o virus.
Como será o mundo, como serão os tempos, pós este virus?.
Será que a União Europeia estará a descobrir formas de reduzir a sua dependência de esse energético "king maker"?.
Interessante em Portugal tem sido a gestão de (todas) as fontes de energia. Pena os preços ao consumidor continuarem a ser o que são. Energia mais barata significaria uma fonte de riqueza produzida.

Joaquim de Freitas disse...

Anonimo de 25 de Março: Permita que lhe responda : Conheço bem a capacidade dos coreanos quando é preciso afronter um inimigo. Conheço bastante bem o país.

A Coreia do Sul "agiu de forma rápida e bem".

O número total de testes quotidianos realizados foi de 220.000. O país tem 500 clínicas autorizadas a efectuar as mesmas, incluindo cerca de quarenta clínicas móveis, de forma a minimizar o contacto entre potenciais doentes e profissionais de saúde.

De facto, a Coreia do Sul aprendeu com os seus próprios erros, incluindo a falta de testes disponíveis durante a Crise da Síndrome Respiratória do Médio Oriente (Mers) de 2015. Que lhes custou muito caro.

Assim, acelerou os procedimentos de teste, e algumas semanas após o aparecimento do coronavírus na China, Seul deu luz verde à disponibilização de um novo teste de diagnóstico Covid-19 em seis horas.

O isolamento foi tão severo como na China. As autoridades lançaram uma campanha de "distância social", instando as pessoas a ficarem em casa, a evitarem reuniões e a minimizarem o contacto. Como resultado, geralmente bairros habitualmente lotados esvaziaram-se. Muitos eventos desportivos ou culturais foram cancelados e o uso da máscara tornou-se generalizado., como impôs o governo, que pôde contar com uma população que respeitava particularmente as orientações.

A Coreia do Sul "agiu de forma rápida e bem".

Além disso, a população infectada tem um perfil único, uma vez que a maioria dos infectados são mulheres, e quase metade tem menos de 40 anos de idade. As autoridades explicam-no pelo facto de mais de 60% dos casos de contaminação estarem ligados à Igreja de Shincheonji de Jesus, uma organização religiosa frequentemente acusada de ser uma seita. A maioria dos seus membros são mulheres, muitas na casa dos 20 ou 30 anos. No entanto, sabe-se que a taxa de casos de coronavírus aumenta com a idade e os mais de 80 anos - e especialmente os homens - estão mais em risco.

Anónimo disse...

Sr. Embaixador
Não tenho nada contra pelo facto de ter usado esse título na sua crónica no JN, antes pelo contrário, mas lembrei-me logo de Augusto Abelaira e do semanário "O Jornal"!
Sou leitor diário do seu blog e gosto muito de o visitar.
PCoelho

Anónimo disse...

Caro Joaquim de Freitas,

Foi ao Google.

É um facto a MERS em 2015 ensinou os a responder prontamente.

O senhor conhece bastante bem o país, mas, eu sei que não houve isolamento da população como na China. O uso da máscara é normal no dia a dia, há muito. Especialmente quando há risco para a população. Por lá não há roturas de stocks.
Repito só foram encerrados os estabelecimentos de ensino, todos.
Lojas, supermercados, restaurantes, cinemas, teatros, etc, tudo aberto ao público...eles são coreanos...obedecem ao bom senso.

As autoridades sanitárias continuam a utilizar a geolocalização do telemóvel para rastrear infetados. A estes quarentena obrigatória, a maioria em casa, muito controlados e medicamente assistidos. Persistem os testes em massa.

Testar, testar e testar para ser possível dar resposta, sem surpresas de um número de infetados, impossível de gerir.

Joaquim de Freitas disse...

Leio o « Le Monde » Ásia Pacifico, caro anónimo, no qual um correspondente francês, permanente, nos informa.

Tem razão que a Coreia do Sul não foi completamente isolada, excepto a cidade de Taegu, onde começou a contaminação, como o foi Wuhan, isolada também. E foi numa seita evangelista, dezenas de pessoas, “dando-se as mãos” durante a oração, que a contaminação explodiu.
De qualquer maneira, não se gera uma crise destas num país de 1 400 milhões de habitantes, como noutro de 50 milhões! Enfim, creio !

Anónimo disse...


Obrigado Joaquim Freitas. O 1º dos seus comentários é uma lição sobre essa coisa das ditaduras... Espero que o Sr. Embaixador venha, um dia, a aderir àquele entendimento. Deixe-me felicitá-lo.

João Pedro

Joaquim de Freitas disse...

Obrigado João Pedro. Quando o mundo começar a sarar as feridas desta crise sanitária, muitas contas deverão ser feitas. E uma delas será com certas "democracias" que enganam os povos sobre a verdadeira natureza das suas instituições e os seus objectivos no mundo.

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