segunda-feira, março 23, 2020

Perder cardeais


Como se sabe, Portugal “ganhou” há pouco um cardeal. E que cardeal! Uma figura intelectual muito interessante, que escreve lindamente e para cujo futuro na Cúria se olha com imensa atenção.

Não era sobre esses ganhos & perdas de cardeais, que hoje venho aqui falar, nesta nota leve, para amainar estes tempos terríveis.

Havia - desconheço se ainda há - uma velha tradição na Embaixada de Portugal junto da Santa Sé: sempre que um cardeal vinha jantar à Embaixada, dois empregados, fardados à antiga, deslocavam-se até ao portão de entrada, munidos de duas tochas ardentes, e acompanhavam os "príncipes da Igreja" até à escadaria do edifício. Posso imaginar que outras representações diplomáticas procedam de maneira idêntica.

A história que me chegou, já com bastantes anos, diz respeito a um desses jantares, a que dois cardeais iriam estar presentes, a convite de um nosso embaixador.

Presumo que tal evento constitua um momento especial, pelo que é sempre digno do maior cuidado protocolar. Porém, nessa noite, algo terá corrido menos bem e os arranjos coreográficos de recepção, com vista a garantir o acolhimento dos cardinalícios comensais pelos fâmulos de serviço, acabaram por não se conjugar de forma harmoniosa.

Por uma qualquer razão, quiçá devida a uma informação errada recebida ao portão, os cardeais, logo que entrados no jardim, e porque não tinham os tocheiros à sua espera, decidiram meter-se a caminho, em direcção à residência. Fizeram-no, porém, por um percurso ínvio que os acabaria por fazer entrar na casa por uma porta lateral e aceder a uma sala vazia, onde serena e discretamente se acomodaram, esperando que alguém os viesse receber.

Entretanto, o embaixador foi alertado pela portaria, embora com algum atraso, de que os cardeais tinham entrado no jardim. Logo partiram pelo jardim os fâmulos de libré, com as chamas das suas tochas ao vento, quais portadores de facho olímpico. Porém, chegados ao portão, são informados que as eminentíssimas visitas já teriam dado entrada no jardim.

O pânico criado pela "gaffe" do porteiro acelerou-lhes então o passo e, diz-se, o espectáculo seguinte foi digno de opereta: sob o olhar ansioso dos embaixadores e convidados, o breu do grande jardim da Embaixada passou a ser cruzado, durante minutos, por duas nervosas e lépidas tochas ardentes, que corriam atarantadas de um lado para o outro, espiando todos os escaninhos possíveis, na desesperada e cada vez mais angustiada e vã busca das figuras cardinalícias perdidas.

O resto da história não a conheço, mas podemos imaginar que, descobertos finalmente por alguém no aposento onde esperavam, com a infinita paciência que a sua instituição lhes incutiu, aos nossos cardeais tenha entretanto chegado um reconfortante Porto ou, pelo menos, um vero limoncello...

6 comentários:

Maria Isabel disse...

Como sempre, fabulosa história de tempos que já lá vão.
E como a descreve tão bem.
Adoro ler e imaginar a situação.
Boa semana em quarentena. Toca a todos.
Maria Isabel

Anónimo disse...


Sou um rústico nada dado a questões de protocolo ou de etiqueta.

Mas creio que as suas "reverendíssimas visitas" seriam melhor tratadas como "eminentíssimas visitas".

( em memória de Frei Bartolomeu dos Mártires)


Continuo fiel leitor, Sr. Embaixador.

Obrigado
antónio m fernandes

Francisco Seixas da Costa disse...

António M Fernandes tem toda a razão. Ainda há semanas escrevi uma carta ao Cardeal Tolentino e assim o tratei. Agradeço o alerta. Cumprimentos

Anónimo disse...

Uma história deliciosa com que nos brinda nestes dias sombrios. Bem haja senhor embaixador. Ana Paula

Portugalredecouvertes disse...

nos dias de hoje teriam certamente e rapidamente ligado pelos respetivos telemóveis
e teria havida menos azáfama das tochas ardentes?!

Anónimo disse...

se non è vero, è ben trovato.

O futuro