António de Spínola, primeiro presidente da República designado após o 25 de Abril, foi ontem homenageado, no centenário do seu nascimento, com a atribuição do seu nome a uma avenida de Lisboa.
Com o 25 de Abril, Spínola entrou para a nossa História. Militar conservador e tradicionalista, fez uma grande evolução no seu pensamento político, que o levou da participação, como jovem observador, na "Divisão Azul" hitleriana que atacou a URSS até a uma progressiva sedução pela liberalização da ditadura. Pelo meio, ficou o seu carisma de brilhante militar, que arregimentava prosélitos e que trazia ideias de evolução para a política colonial que o imobilismo do regime não deixou frutificar. O seu livro "Portugal e o Futuro", de 1973, é um ensaio de "gaullismo" requentado que chegava atrasado para salvar o regime mas ainda chegou a tempo para ser uma cartilha de união ambígua de todas as tendências militares, cuja conjugação foi essencial para o sucesso da Revolução de 1974.
Spínola foi alcandorado à chefia do Estado na noite dessa Revolução. Mais tarde, tentou instrumentalizá-la com uma espécie de "pronunciamento" que acabou por vitimar politicamente o primeiro-ministro que escolheu, Palma Carlos. Percebeu, entretanto, que a independência das colónias teria de ser quase incondicional, depois de ter tentado outras vias, com ligações que foram de Mobutu a Nixon. Após provocar até ao limite o Movimento das Forças Armadas, que o colocara no poder, não resistiu à tensão que ele próprio criou e potenciou até à rutura, demitindo-se na sequência do 28 de Setembro de 1974.
Voltou ao cenário político-militar como titular de um frustrado golpe de Estado - o 11 de Março - e, após essa data, exilou as suas esperanças através de um grupo de resistência conservadora externa - o MDLP, Movimento Democrático para a Libertação de Portugal - que tem uma história de cumplicidades internas (em áreas que hoje seria penoso estar a lembrar) que vai muito para além da caricatura que dele se fez. E convém não esquecer nunca: do 11 de Março ao MDLP, o percurso de António de Spínola ficou ainda marcado por algumas responsabilidades de que resultaram consequências sangrentas. Absolvê-las no altar da estabilização foi uma decisão implícita de um país que terá achado que elas eram a outra face do espelho de radicalismos de sinal contrário.
Com a institucionalização plena do novo sistema político português, e sempre graças à tolerância da nossa democracia, Spínola regressou a Portugal. Através de entendimentos que hoje já fazem parte das curiosidades do nosso regime, reganhou um estatuto público que as suas equívocas aventuras no exílio lhe haviam feito perder. E ascendeu a Marechal das nossas Forças Armadas.
Como atrás escrevi, Spínola ganhou legitimamente um lugar na nossa História. Era um patriota e foi um militar de grande coragem e valia. Faz parte das figuras que acabam por sofrer do facto de terem servido de charneira em tempos de transição. Prestar-lhe agora este reconhecimento é um ato de grandeza por parte de um regime para cuja implantação contribuiu, mas cujo curso poderia ter tido derivas indesejáveis se acaso, em certos momentos, tivesse seguido as linhas que ele pretendeu impor-lhe. Ainda assim, homenagear António Sebastião Ribeiro de Spínola é um gesto que o Portugal de Abril pode e deve fazer. Com conta, peso e medida histórica. Como ontem disse o presidente Cavaco Silva, "muito para além das homenagens dos homens, será o juízo do tempo que se encarregará de lhe reservar na História o lugar que merece".