domingo, março 28, 2010

Pavão

Aquele embaixador era conhecido por ser uma figura um tanto bizarra. Isso também se refletia na decoração, bem eclética, que espalhava por toda a sua residência oficial. A avaliar pela diversidade das peças, fruto de andanças por vários mundos, o nosso representante diplomático era um colecionador de recordações, muitas das quais de gosto muito mais do que discutível. O facto de ser solteiro, de não ter a seu lado uma sensibilidade feminina que o ajudasse a equilibrar o conjunto, resultava em óbvias e não felizes consequências no aspeto decorativo das suas salas.

Se havia um ponto dessa mesma decoração que se salientava como mais chocante esse era, sem dúvida, o colorido pavão, de "papier maché", adquirido no México, que ocupava um lugar central no salão de entrada, num pedestal colocado sobre um horrível tapete retangular, de cor bem forte e sentido estético bem fraco.

Um dia, o ministro-conselheiro, um tanto a medo, atreveu-se a dizer ao embaixador que, porventura, a colocação do pavão talvez fosse demasiado impositiva para o equilíbrio estético do salão. E adiantou, como sugestão, que podia ser interessante colocá-lo num canto da sala, num lugar mais discreto.

A resposta do embaixador desarmou-o: "Ó homem, você não percebe a razão por que tenho aqui o pavão? Eu sei que as pessoas podem sentir-se um pouco surpreendidas com esta peça, mas ela tem um função muito importante. Quando tenho um almoço ou um jantar, à medida que os convidados chegam, é sempre preciso encontrar um tópico para iniciar a conversa. Ora nada melhor do que este pavão para servir como "point for talk". Nem você imagina a quantidade de pessoas que, olhando para o pavão, começam logo a inquirir onde o comprei, de que é feito, etc. Ora isto é precioso: garantir um tema de arranque de uma conversa é muito importante, o que evita logo falar do clima, do tráfego ou outros temas artificiais de circunstância. E, do pavão, podemos logo passar às questões de arte, de geografia ou dos costumes. O pavão dá-me imenso jeito!".

O ministro-conselheiro ficou rendido ao argumento e mais valorou a "tática" do seu chefe quando este adiantou, com subtil e auto-flagelatória ironia: "E fique você a saber que não me preocupo nada pelo facto de algumas pessoas poderem, no seu regresso a Lisboa, falar do "pavão" do nosso embaixador..."

5 comentários:

Helena Oneto disse...

Uma delicia!!! Esta história faz-me lembrar um autêntico "pavão de diplomata" que tivemos na familia:)!

Anónimo disse...

Oh!
É só a constatação da não negação de uma dimensão que "alguns"(Eu Incluída) pretendem dissimulada...

Pode até chamar-se a bandeira da sinceridade acima de tudo... Ou do "Cá pra Nós é que é preciso isso?!!!"

Até algumas eleições, nem arrisco a dizer a maioria, desvendam a dimensão pavão dos eleitos.(Alguns nem se deixam enganar, até muitas vezes porque queriam Ser Eles,terão que esperar pela vez do derradeiro show off, pobre de quem tem que levar com Eles à falta de melhor)...
Está Bem...
Isabel Seixas

Anónimo disse...

Genial!
P.Rufino

Anónimo disse...

Mas que há muito pavão na carreira, é bem verdade. O ser diplomata exerce um fascínio muito especial em certas cabeças (menos pensantes e mais vaidosas), não percebendo o alcance desta nobre profissão que exercem e das suas responsabilidades (e exigências). Não é a pompa e circunstância que faz, ou distingue, o (bom) diplomata, mas o seu desempenho. Felizmente que há mais bons exemplos, que o oposto.
Mas esta história está bem engraçada. E na verdade, o “começo de conversa” é muita das vezes “doloroso”, havendo sempre essa confrangedora tentação de se iniciar com o trivial trânsito e tempo.
Num Posto onde servi, o Embaixador bem ensaiou com o primeiro convidado (que chegara pontualmente, para desespero do anfitrião, visto não ser conversador) um qualquer tema para se falar, mas o seu colega estrangeiro era imune e respondia apenas por monossílabos. Até que, já desesperado e com os outros atrasados (chovia e o trânsito estava um inferno), me sussurrou ao ouvido que ia desaparecer por uns momentos e pedindo-me para ficar a fazer a “despesa” da conversa. Não adiantou e ali ficámos os dois em profundo silêncio, bebericando um whisky. Quando começaram, finalmente, a chegar os restantes convidados, lembro-me de ter registado uma talvez excessiva alegria do Embaixador de cada vez que os recebia. Pudera, pelo menos chegava alguém que gostava de conversar e socializar.
Já foi proposto, oportunamente, neste Blogue, que o seu autor um dia se desse ao trabalho de publicar muitas das suas vivências e histórias que presenciou ao longo da sua carreira. Não poderia estar mais de acordo!
“Adido de Embaixada”

Helena Sacadura Cabral disse...

Ó Senhor Embaixador como não ler sofregamente este blogue, quando ele me dá excelentes ajudas?!
Andava eu, até hoje, a magicar um presente que tenho de dar a alguém cujas características não diferirão muito das do embaixador que refere no seu post, eis senão quando, após a sua leitura, exclamei Eureka!
Já sei. Caso não encontre um pavão - dava-me bastante geito -, se encontrar um papagaio já me dou por satisfeita.
Bem haja, meu caro Dr. Francisco Seixas da Costa, pela preciosa ajuda que me deu!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...