domingo, março 21, 2010

Espanha

O período da transição da ditadura para a democracia, no final do século passado, é um dos mais interessantes na história contemporânea de um país com tanta História como é Espanha. 

Muitas personalidades contribuiram, durante essa época, para ajudar a colocar um ponto final às "dos Españas", que se haviam confrontado nos anos 30 e que a violência da repressão franquista prolongou algumas por décadas mais, à sombra da absolvição prática de ditaduras na península ibérica pelo "mundo livre", no oportunismo da realpolitik da Guerra Fria . 

Mas houve, claramente, dois homens a quem, nesse contexto, a Espanha ficou a dever um serviço maior: o rei Juan Carlos e Adolfo Suarez.

Desde há muito, tenho lido tudo quanto posso sobre esse período, sobre o estertor do franquismo, sobre as tensões militares que o procuraram prolongar, sobre os difíceis passos para a reconstituição de um sistema político democrático - passos difíceis, até porque dados sob o cenário de fundo das pulsões autonómicas e da ameaça do terrorismo.

Há uns meses, numa livraria espanhola, comprei um livro de que já ouvira falar, do qual haviam sido publicadas já diversas edições: "Suárez y el Rey", uma obra de Abel Hernández, que foi prémio Espasa/Ensayo em 2009. Acabei de lê-lo há dias.

Trata-se de um relato interessantíssimo da relação entre aqueles dois homens a quem a Espanha muito deve, cujo entendimento permitiu garantir a fixação de um quadro institucional de vivência democrática em Espanha. O livro não é uma hagiografia de nenhuma daquelas personagens, deixa entrever a mutação de algumas circunstâncias, que não deixou de pesar nas relações entre ambos, na talvez inevitável contradição entre quem tem por ambição representar a continuidade do Estado e quem titulou um projeto específico para a sua gestão temporal, que as urnas viriam a rejeitar. Trata-se de um trabalho de grande seriedade, no delicado domínio da história contemporânea. Como disse, li muito sobre esse período, mas as pouco mais de 200 páginas deste livro deram-me chaves de compreensão que ainda não tinha.

A fotografia deste post, de 2008, que figura na capa de algumas das edições do livro, onde se vê o rei espanhol a acompanhar um Suárez já afetado pela doença neurológica que o debilitou sem remissão, é, a meu ver, uma imagem muito comovente. No fundo, é o retrato afetivo de uma cumplicidade patriótica que salvou a Espanha de uma tragédia.

10 comentários:

Anónimo disse...

No fundo, o Sr.Embaixador,um repu-blicano assumido e compulsivo,
compreende bem as vantagens da Monarquia.Neste ano em que a Embai-xada em Paris vai patrocinar um seminario sobre a Republica,nao seria desinteressante uma confe-rencia sobre as vantagens da Monar-quia em confronto com a Republi-ca,um confronto entre um projecto intemporal e outro temporal.

Alcipe disse...

Vantagens da Monarquia, não. Do Rei Juan Carlos ( e da Rainha Sofia, que tinha, através do irmão, a experiência de como caem as Monarquias...), sim. Um grande Rei não faz, por si só, vantajosa a Monarquia!

Anónimo disse...

Sei que vou comprar o livro...
A imagem é de facto enternecedora.
Isabel Seixas

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador este seu post comoveu-me. Ando a ficar piegas...
Comoveu-me, porque tendo sangue espanhol, escolhi ser portuguesa.
Mas, também por essa escolha, senti sempre a obrigação de conhecer tudo o que se relaciona com Espanha. Leio os seus diários de referência e acompanho, com o mesmo empenho, as duas realidades da Península Ibérica.
O livro que refere é, a muitos títulos, exemplar. E o seu post de hoje, também! Muito obrigada pela sua capacidade de tão bem entender o que é diferente. Mesmo daquilo que possamos pensar!

Anónimo disse...

Nos dias que correm bem que precisavamos em Portugal duma figura como o Rei Juan Carlos. Atingimos um (baixo) nível impensável e não temos uma única referência. Olhamos em Portugal para os que "lá estão" e sentimo-nos completamente desolados.

Precisavamos duma figura como a do Rei Juan Carlos nem que não fosse para mostrar que determinados valores perduram e que há um passado e um nome a preservar.

Anónimo disse...

Há e continuará a haver duas Espanhas não e sabe até quando, mas seguramente enquanto todos os crimes franquistas não forem trazidos para a praça pública, sem contemplações. Não foram quando deveriam ter sido, por culpa dos socialistas e agora...por culpa dos fascistas do PP.
Duas Espanhas...não compreendem a Catalunha, nem o País Basco, que não são Espanha.
Quanto ao papel do "Rey" na transicção ...e dos socialistas, ver "Anatomia de un instante", de Javier Cercas, livro do ano em Espanha.

Anónimo disse...

É bom relembrar o que vai sendo esquecido, pelo tempo: o papel, como aqui muito oportunamente refere FSC, de Juan Carlos e Adolfo Suarez na transição da Ditadura para a Democracia. Foi de facto primordial o desempenho de ambos, nesse sentido. Uma transição sem grandes turbulências, gradual, mas que deu resultados. Como se viu. E como aqui se diz, “cumplicidade patriótica entre ambos, que salvou a Espanha de uma tragédia”.
P.Rufino

margarida disse...

...de tudo isto o que mais me comoveu foi a menção ao "...já afectado pela doença neurológica que o debilitou sem remissão..."
As debilidades neurológicas são tremendas...; conviver com o progressivo alheamento, o apagar de quem se é, a noção do mundo é...devastador.
Foi isto.
É isto, helás.
Depois resta a esperança que a História faça justiça a quem foi grande.
Melhor.
Até a pequena história de cada um de nós; que nos faça a justiça de testemunhar que, pelo menos, tentámos.
De coração.

Helena Oneto disse...

Admiro as qualidades humanas e a coragem de (El Rey) e gosto de Juan Carlos pelas mesmas razões evocadas pelos Senhores Alcipe e Rufino.

Admiro-o caro (permite-me ?) Senhor Embaixador pela sua "clairvoyance"!

Anónimo disse...

Franco falece em Novembro de 1975 desencadeando a transferência da chefia de Estado ao Rei Juan Carlos tal como tinha sido estabelecido nas Cortes em 1969. Naquele momento crucial da história de Espanha, o novo Chefe de Estado escolhe, entre diversos candidatos, Adolfo Suárez como a pessoa idónea para liderar o novo governo e substituir Arias Navarro. Esta opção revelou-se crítica dado que Suárez sendo um "insider" do sistema franquista tinha firmes convicções democráticas, permitindo organizar a transição desde dentro do próprio regime. Nos anos seguintes Suárez legaliza os partidos políticos, incluíndo o Partido Comunista e vence as primeiras eleições democráticas e livres naquele país desde 1936 com a UCD. Anos mais tarde, em 1981, o Rei revelar-se-á novamente como um elemento providencial na consolidação da transição política ao conseguir abortar a tentativa de golpe de Estado de 23 de Fevereiro. É necessário e justo ter sempre presente a importância do papel desta dupla que protagonizou o desmantelamento de 40 anos de repressão franquista e abriu o caminho da democracia e posterior adesão europeia.
João Morais

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