O conceito de “tio de churrasco” é brasileiro (lá diz-se mesmo “tiozão de churrasco”). Trata-se de qualificar aquele familiar, normalmente mais idoso, que um dia cai numa reunião de família e se sente à vontade para soltar opiniões inconvenientes, sob o alibi da “autoridade” da idade ou do seu estatuto, dizendo coisas que já nem pressente como desagradáveis, mas que deixam as pessoas presentes constrangidas, ideias que confrontam “l’air du temps” ou o mínimo de bom senso.
O risco de cada um de nós se tornar num “tio de churrasco” é elevadíssimo, pelo que me policio sempre a mim próprio, antes que me “interditem”, quanto mais não seja pela criação de um embaraçante e penoso silêncio à minha volta. Mas, um dia, arrisco-me a ter esse infortúnio.
Ontem, contudo, tive imensa sorte. Numa jovial reunião de família, alguém sugeriu que duas das pessoas mais velhas, uma das quais eu, entrassem num jogo de debates: eram-nos propostas teses radicais, absurdas pelo seu caráter imperativo, cabendo a cada um dos dois, respetivamente, defender essa tese e atacá-la. Depois, essas mesmas pessoas colocavam-se exatamente na posição contrária, arrasando aquilo que tinham acabado de defender, supostamente com argumentos diferentes dos que tinham sido usados pelo interlocutor.
O jogo foi divertido, a dialética soltou-se e cada um de nós dois teve a possibilidade de levar até ao absurdo algumas ideias que, num ambiente de conversa serena, nunca defenderíamos. A vintena de assistentes, entre as quais eu tinha uma dúzia de sobrinhos, “desculpou-nos” o extremismo das nossas doutrinas, tanto mais que, no minuto seguinte, nos ouviram dizer exatamente o contrário, com a mesma enfática “lata”.
Mas por que é que lhes estou a dizer isto, com evidente prazer? Porque, lá no fundo, de algumas das barbaridades que ontem por ali deixei ditas, transpareceu-me intimamente, sem que os auditores pudessem suspeitar, o “tio de churrasco” que já habita escondido em mim…