domingo, outubro 30, 2022

Feliz


Há coisa melhor do que castanhas e uma ginjinha? Pode haver, mas quando se anda pela Baixa lisboeta, com o Outono a sentir-se no corpo, comprar uma dúzia de castanhas assadas, embrulhadas em cartuxo de jornal velho, ir medindo o passo até não sobrar mais nenhuma (com irritação breve, quando alguma sabe a “má”) e, por fim, coroar tudo numa ginjinha (com elas) no largo de S. Domingos é, para mim, a definição de tempo feliz. Mas será talvez defeito meu, que me contento sempre com pouco…

“A Mesa”

 


Quem estiver interessado em conhecer o restaurante de um novo hotel em Lisboa - “Restaurante de hotel? Que horror!”, já estou a ouvir - deve clicar aqui. Podem guardar o preconceito, porque é um sítio recomendável, a preços razoáveis. 

Como “brinde”, faço no texto um guia rápido da restauração que acho que vale a pena na zona Lapa / Estrela / Santos / Madragoa.

sábado, outubro 29, 2022

Mil Lulas

Depois do debate de ontem entre os dois candidatos presidenciais, é-me algo penoso escrever sobre o momento político no Brasil. Não tenho a mais leve dúvida de que a derrota de Bolsonaro é, a grande distância, o melhor que pode suceder. Contudo, o que se passou naquelas quase três horas foi um espetáculo político lastimável, ajudado pela incompetência que desenhou um modelo de debate feito por uma cobarde abstenção jornalística. Linguagem baixa, insultos, demagogia, populismo, mentiras repetidas e ausência total de novas ideias foi o que se ouviu e viu. Bolsonaro é o “grau zero” da política e é um susto (e também uma imensa tristeza) pensar que metade do Brasil parece disposta a dar-lhe uma oportunidade para renovar o mandato. Lula é um figura do passado, que apela incessantemente à memória dos anos dourados, em que uma muito diferente conjuntura económica e política lhe permitiu inegáveis brilharetes. Agora, parece cansado e sem trazer nada de novo. Mas não caiamos na tentação simplista de dizer “venha o diabo e escolha”. Não! Face ao patético ocupante atual do palácio do Panalto, apetece-me dizer como os maoístas: que mil Lulas floresçam!

sexta-feira, outubro 28, 2022

A Ana do Poço

Fala-se por aí bastante da “Ana dos Olivais”, que me dizem que saiu do Poço, deduzo que do Bispo. Não conheço. Mas, ali perto, recomendo muito a ”Delícia de Moscavide”. Aqui fica a lista de hoje.


António Costa

Faço parte das pessoas - e somos bastantes, a maioria, como se tem visto - que vivem muito confortáveis com o facto de António Costa estar hoje a liderar o governo. Não vislumbro, no “mercado” político doméstico, ninguém que junte em si mais qualidades para gerir o nosso país. 

Não esqueço, e agradecerei sempre, a serenidade firme com que nos conduziu durante a pandemia. O peso que tem vindo a ganhar no plano europeu - um prestígio cujos efeitos desejo que se esgotem exclusivamente no plano nacional - é a prova provada do seu êxito. 

Até na gestão do “tandem” que tem feito com o presidente da República, dossiê bastante mais complexo do que parece, António Costa tem revelado uma sábia habilidade. E faço parte de quantos valorizam bastante este último conceito.

Chegado a este ponto, os leitores devem estar à espera daquela frase com que os ingleses relativizam o que acabam de afirmar: “Having said that…” Ela aqui vai: não aprecio, mesmo nada, o tom que, crescentemente, António Costa tem vindo a adotar nas suas intervenções parlamentares. 

Era expectável que, com o reforço de dois partidos da direita radical nas últimas eleições, o parlamento entrasse em crescente crispação. Com ambos a apelar ao pior dos sentimentos dos portugueses - um pelo populismo mais baixo, outro pela arrogância a-social -, posso perceber que António Costa se sinta frequentemente irritado e propenso a uma reação vocal mais robusta. Mas é aqui que reside o seu erro. 

O primeiro-ministro de Portugal deve demonstrar, em todas as ocasiões, que se recusa a descer ao patamar dos preconceitos, rasteiros ou sobranceiros, com que aqueles grupos de representação ideológica extrema ali sustentam as suas intervenções. Fazê-lo é entrar numa chicana que só confere visibilidade e relevância a quem procura ganhar protagonismo à sua custa. 

Tratá-los com educada frieza de Estado, oferecendo-lhes os mínimos de tratamento democrático, deveria ser a posologia a adotar. É que, contrariamente ao que as Seleções do Reader’s Digest defendem, rir, mesmo que deles, nem sempre é o melhor remédio.

Esta é a minha opinião. E, pelo que vou ouvindo, não estou sozinho, mesmo em quantos, como eu, continuam a apreciar muito António Costa.

… mas faz!

Nas últimas horas, começa a ser estranha a ausência de um abaixo-assinado aplicando a Oeiras o velho lema de Ademar de Barros. Receio ver vários conhecidos a subscrevê-lo.

Brasil

Pergunto-me se alguns amigos que, no Brasil, tiveram a experiência de viver os oito anos em que Lula esteve no poder acreditam, com sinceridade, que uma eventual nova vitória deste vai descambar numa inevitável “venezuelização” do país. 

E pergunto-me, ainda mais, se acaso eles se sentem confortáveis com o facto de Bolsonaro poder vir a continuar a ser a ”cara” do seu país pelo mundo.

Nova China

O conteúdo, deliberadamente divulgado, da conversa telefónica entre os ministros dos Negócios Estrangeiros da Rússia e da China revela que o tom com que, no XX Congresso do PC chinês, o ocidente foi tratado está já a ter uma tradução concreta na política externa de Pequim. 

“À suivre!”

quinta-feira, outubro 27, 2022

“A Arte da Guerra”


Com o jornalista António Freitas de Sousa, em “A Arte da Guerra”, uma produção audiovisual do “Jornal Económico”, faço esta semana um balanço do congresso do Partido Comunista chinês, analisámos o governo de Giorgia Meloni em Itália e as escolhas de Rishi Sunak, o novo chefe do governo britânico.

Pode ver aqui.

Terapêutica experimental


Se a combinação experimental de Bushmills e Azitromicina que estou a fazer, para curar uma quase afonia, vier a dar resultado, inscrevo-me para o Nobel da medicina e para os World Whiskeys Awards...

Pontualidade


Há pouco, no Facebook, chegou-me um pedido de “amizade” de um velho amigo brasileiro, René de Mesquita Júnior. 

Sei lá bem porquê, lembrei-me de uma historieta antiga.

Era na Noruega, creio que em 1980. Um colega, diplomata brasileiro, ia regressar ao seu país. Havíamos decidido fazer-lhe, em nossa casa, uma festa de despedida, com colegas de outras nacionalidades, além de seus conhecidos locais. 

Acontece que ele era famoso pelos seus históricos atrasos, em todos os jantares e atos sociais para os quais era convidado. Numa certa “tradição” brasileira...

(Uma grande tolerância em matéria de horários, em ocasiões sociais, faz parte dos hábitos brasileiros. Aprende-se a viver com ela e, no Brasil, é essencial interiorizá-la, saber interpretá-la e segui-la. Recordo-me de, pouco tempo após a nossa chegada ao Brasil, termos sido convidados para uma festa de aniversário. Era uma sexta-feira ou um sábado, dias da semana em que a flexibilidade nos horários costuma ser ainda maior. O convite dizia 20.30. "Maçaricos" das práticas locais, chegámos cerca das 20.40. Entrámos na sala vazia, onde ficámos por cerca de dez minutos, sendo servidos de uma bebida pelos empregados. Chegaram entretanto outros convidados? Não, chegou o dono da casa, pedindo desculpa pela sua mulher, que ainda não estava "arrumada". Todos os convidados, vá lá!, antecedidos da pessoa aniversariante, chegaram bem depois das 21.00. Foi uma instrutiva lição!)

Só que nós não estávamos no Brasil. Estávamos na Noruega. E, na Noruega, os convidados costumam entrar nos jantares ao bater da badalada da hora que está escrita no convite. Nem um minuto mais tarde. E os restantes colegas diplomatas, se bem que sem o rigor local, iriam chegar, seguramente, dentro dos quinze minutos posteriores a essa hora.

Ao organizar a festa, começámos a preocupar-nos: se o nosso amigo brasileiro mantivesse os seus hábitos, isso quereria dizer que chegaria muito depois dos convidados para a sua festa, o que era um pouco desagradável, até para ele próprio. E dissemos-lhe isso mesmo. Ele assegurou que não, que dessa vez faria um esforço para vir a horas. Mas nós não acreditámos. "Old habits die hard". 

(De uma coisa tinhamos a certeza: aquele amigo iria chegar no seu carro, de um amarelo feiíssimo, como ele próprio reconhecia, ao ter atribuído à viatura o perfumado nome de “P…o”. Ele explicava porquê: “Só o dono é que gosta!”)

No dia da festa, o nosso amigo brasileiro chegou... com 20 minutos de atraso! Desfez-se em desculpas. Nós sorrimos: ainda ninguém tinha chegado! Nos convites enviados aos convidados tínhamos informado que os esperávamos... meia-hora depois daquela hora a que tínhamos dito ao nosso amigo brasileiro que a festa começaria.

Lembras-te, René? 

Um abraço aí para o Brasil! E vota bem, no domingo! Queres beber um copo, no Rio, no dia 6 ou 7 de novembro? Vou estar aí.

Clareza

Fernando Henrique Cardoso decidiu anunciar hoje o seu voto em Lula, na eleição do próximo domingo. Um estadista percebe bem a distinção entre o essencial e o acessório.

Os bois pelos nomes

Respeito muito quem, à direita, se afirma, sem disfarces, de direita, não se refugiando no “centro-direita”. Mas respeito ainda mais quem, estando à direita, trata, sem rebuços, a extrema-direita por esse nome: Trump, Bolsonaro, Meloni, Orbán, Ventura, Abascál, Le Pen.

Diversidade

Num programa humorístico americano, ouvi há pouco uma (provável) incómoda verdade: muitos britânicos votaram a favor do Brexit pelo seu horror a “descaraterização” do Reino Unido, provocada pela imigração. Agora, poucos anos depois, um “brown” (é o termo usado para si mesmos pelos próprios indianos do RU, sem o menor sentido pejorativo) surge como seu primeiro-ministro.

Atrás dos factos

As revistas semanais que assino, portuguesas e estrangeiras, contam cada vez menos para a informação sobre a atualidade, salvo através dos seus “sites”. Hoje, a sua eventual relevância assenta, essencialmente, na reflexão “não perecível” pelo tempo que nos consigam trazer, que vá para além da “espuma das semanas”. O excelente “The Economist”, que persiste bastante no acompanhamento do quotidiano, tem tido semanas de tragédia, correndo atrás dos factos.

quarta-feira, outubro 26, 2022

Quarta-feira santa

Não há quarta-feira santa? Passa a haver. Hoje, decidi nada colocar por aqui. É que há dias tão cheios, tão cheios, em que as tarefas se sucedem e se acumulam que acabamos por quase não ter tempo para uma coisa simples e sem a menor importância como é fazer um simples texto para um blogue. Criei hoje um feriado nesta dimensão lúdica da minha vida. Até amanhã.

terça-feira, outubro 25, 2022

O teatro do sorriso


A imagem de marca de Rishi Sunak era o seu sorriso. Mesmo nos tempos duros do Covid, quando por ele passaram as medidas com que o governo de Johnson tentou atenuar os efeitos negativos da pandemia na vida económica e social do Reini Unido, Sunak, para surpresa de muitos, manteve, em geral, um sorriso aberto, completado por um certo “boyish style”, até no modo desengonçado de andar.

No caminho político para Downing Street, nos últimos dias, Sunak não tinha abandonado o seu sorriso e esse seu estilo. 

Isso só veio a acontecer hoje. A coreografia da sua chegada ao nº 10 foi precisa, desenhada ao milímetro. Desde o momento em que saiu do carro até que entrou na porta negra, passando por todo o tempo do discurso, o seu registo facial endureceu. O passo perdeu a jovialidade quase adolescente. Sunak ganhou ”gravitas”. Era preciso transmitir ao país um ar de Estado. O sorriso aberto podia revelar ligeireza. Como a “profund economic crisis” a servir de pano de fundo à sua ação, Sunak pôs o sorriso de lado e tornou-se mais grave. Era expectável? Talvez. O contraste revela algum artificialismo, mas, também, um certo profissionalismo.

O teatro ao serviço da política.

Russos lá por casa


”Vou aí falar com os russos”. Quem me dizia isto, de Lisboa, pelo telefone, era o meu colega António Monteiro.

Eu estava então em Londres, na nossa embaixada, nessa primeira metade dos anos 90. A discreta conversa que ele ia ter com uma delegação russa, vinda expressamente de Moscovo, era sobre Angola, nesse tempo em que Portugal estava a ter um papel central nas tentativas para a paz naquele país, tarefa de que António Monteiro foi o grande obreiro negocial, no caminho para o Acordo de Bicesse.

“Tens de nos arranjar um lugar calmo para a conversa”, disse-me o António. A minha sugestão de que fosse na embaixada não lhe pareceu uma boa ideia. “Pensa numa outra solução!”

O António chegou no dia seguinte. “Então onde é que podemos reunir?” Em minha casa, sugeri, num pequeno almoço de trabalho. 

António Monteiro achou bem. Era preciso avisar os russos: lembro-me de termos ido deixar o meu endereço num hotel num “crescent” onde eles se instalavam, perto de Marble Arch.

Como a minha mulher estava em Portugal, fui eu quem deu as instruções práticas à nossa empregada para preparar as coisas para o pequeno almoço, no dia seguinte. Só que quando lhe disse que, além de três portugueses, ia haver na mesa três russos, foi o bom e o bonito! 

A Adelaide assustou-se: “Vêm russos?” Expliquei-lhe que os russos, ao contrário do que se dizia, não “comiam criancinhas” ao pequeno almoço, pelo que o menu ia ser mais ligeiro. Mas a Adelaide, em face do anúncio da presença dos “vermelhos”, os quais, por essa época, já tinham a sua cor muito desmaiada, mantinha ainda reflexos antigos. 

Na manhã seguinte, sempre desconfiada, lá serviu a reunião. Mas o olhar que deitava aos russos, quando passava o chá, o café ou o sumo de laranja, era digno dos ambientes da Guerra Fria, coisa que ela nem desconfiava que tinha acabado algum tempo antes.

Nos dias que correm, não tenho dúvidas que a boa da Adelaide, uma amiga que ficou em Londres e que nos telefona algumas vezes ao ano, de cujo filho Francisco sou padrinho, deve ser uma fã acrisolada de Zelensky e, lá por casa e para os amigos, deve dizer agora dos russos aquilo que não teve coragem de dizer alto há 30 anos.

Time to go?

 

Que futuro?

 

domingo, outubro 23, 2022

Na morte de um cavalheiro


Com 100 anos completados há pouco, desaparece hoje Adriano Moreira. 

O ISCSP editou, há semanas, um belo livro em sua homenagem: “Adriano Moreira - Para Além da Espuma do Tempo”. Nele se inclui o texto “Pedagogo Inquieto”, da autoria de Paulo Martins, para o qual, com outros antigos alunos de Adriano Moreira, prestei um depoimento que ajuda a recortar a sua figura de professor e dirigente universitário.

Há um ano, já havia deixado aqui o meu testemunho sobre aquele que foi meu professor no final dos anos 60 e que, a partir de então, voltei a cruzar bastantes vezes. Tendo-lhe sido chamada a atenção para o meu escrito, Adriano Moreira teve a amabilidade de me telefonar, há cerca de dois meses, a agradecer a nota. Era já uma voz frágil, débil, aquela que me chegou, transportando palavras simpáticas. Depois de desligar, como muitas vezes nos acontece na vida, tive pena de não ter aproveitado para lhe dizer algumas coisas positivas que recolhera das vezes em que o tivera como interlocutor. E, em especial, de um episódio de que, muito provavelmente, ele próprio já nem se recordaria.

Foi em 1972. Adriano Moreira já havia sido afastado de diretor do Instituto que criara, a escola na Junqueira que tinha procurado converter, de centro de formação para quadros coloniais, numa faculdade de ciências sociais. A vingança política de Marcelo Caetano, pela mão de José Hermano Saraiva, tinha sido exercida sobre Adriano Moreira. Saraiva, como ministro da Educação, tambem não lhe tinha perdoado não ter dado asas às suas desmesuradas ambições académicas. 

Por esse tempo, eu vivia uma situação kafkiana, um impasse absoluto no meu curso, com um processo disciplinar às costas, movido pela sanha persecutória do sucessor de Adriano Moreira no cargo. Sem soluções e sem conhecimentos pessoais, atrevi-me a ir procurar Adriano Moreira. Fui vê-lo à Standard Elétrica, onde era administrador. 

Recebeu-me com muita simpatia. Perguntei-lhe se me podia ajudar. Estava bem informado do meu caso, que era público e notório na escola, reconhecia haver uma forte injustiça na questão que me envolvia, mas disse-me que nada podia fazer: a sua influência, no contexto que me importava, era nula. Percebi a sua posição. O que me aconselhava ele que eu fizesse? “Tente fazer a sua vida por outro lado, deixe que o tempo passe. Melhores dias acabarão por vir, vai ver”, disse-me. Isso coincidia com aquilo que pensava fazer. Empreguei-me, passei a estudante voluntário, o processo contra mim caducou, por falta de objeto, fui entretanto para a tropa e, por lá, apanhei o 25 de Abril. Melhor solução não poderia ter havido.

Tenho pena de nunca ter relembrado este episódio a Adriano Moreira.

Deixo agora o meu sincero pesar à família de Adriano Moreira, na pessoa da sua filha, Isabel Moreira.

sábado, outubro 22, 2022

Hare Krishna

 


Nos anos 60 e 70, os adeptos do movimento indu Hare Krishna apareciam com frequência pelas cidades europeias que eram então os destinos das nossas viagens de juventude. Em Amsterdão, paravam no Dam, em Paris, ocupavam passeios no cruzamento de St. Germain com St. Michel, em Londres, faziam parte do cenário comum em Leicester Square e em Oxford Street. Tentavam recolher apoio financeiro para as suas comunidades, chamando a atenção por uma música dolente e repetitiva, com sonoridade oriental, como suporte de um estilo de vida que se sabia moralista e espartano. Depois de serem a novidade, passaram a banalidade e a fazer parte da paisagem. Ao ponto de já me ter esquecido da sua existência. Mas ontem, lá estava um par deles, à entrada da Rua Augusta. Gosto desta Lisboa muito diversa.

sexta-feira, outubro 21, 2022

“O Padrinho”


Um artigo de Miguel Freitas da Costa, na revista Crítica XXI, dirigida por Jaime Nogueira Pinto e Rui Ramos, tinha-me aberto o apetite para rever “O Padrinho”, um clássico de 1972. Pela noite, o filme surgiu-me no AXN. Fiquei a vê-lo pela madrugada. Continua uma delícia, 50 anos depois. 

Tirei esta imagem com legenda irónica do filme. À direita, surge Marlon Brando. Em destaque, elegantemente penteado como quase sempre acontece no seu perfil de “character” cinematográfico, na figura de um chefe da Mafia, aparece Richard Conte. Ao vê-lo, lembrei-me de uma série televisiva muito antiga, os “Quatro homens justos”. Ainda alguém se recorda disso?

quinta-feira, outubro 20, 2022

Pérfida Albion


Como não será de estranhar, foi um francês, no século XVIII, quem crismou a Inglaterra como a “pérfida Albion”. Por cá, depois da humilhação do mapa cor-de-rosa, às loas ao “mais velho aliado”, que nos tinha poupado do “abraço do urso” de Castela e dos seus sucedâneos, a acidez face a Londres só podia crescer.

Muitos portugueses não sabem, mas quando berram, masoquistamente, “contra os canhões, marchar, marchar!”, estão a entoar uma patriótica corruptela. O texto original era “contra os bretões, marchar, marchar!”. Para os menos iniciados, esclareço que “bretões” não significava habitantes da Bretanha mas, simplesmente, os ingleses.

Não deve haver classe política mais “fria” e “pérfida” do que a britânica. 

Thatcher foi arrumada numa noite de conspiração, substituída por um genérico que dava aos conservadores esse bem essencial que era a continuidade no poder.

Depois de todas as confusões e equívocos de Cameron, com Theresa May de instável permeio, Boris Johnson assegurou, em 2019, uma muito confortável maioria ao seu partido. Mesmo assim, algumas trapalhadas e poucos anos depois, esse mesmo partido pô-lo com dono.

Pela primeira vez na história dos conservadores, o sentimento maioritário no grupo parlamentar, que fora responsável por afastar Johnson, tido como uma “liability” para uma futura eleição geral, não ia coincidir com o dos militantes do partido.

Os primeiros queriam um “safe pair of hands” e, conservativamente, escolheram Rishi Sunak. Os militantes, dessa estirpe de onde saiu o Brexit, preferiram Liz Truss, uma figura que já se revelava patética mas que iria ter os seus quinze minutos de fama (“I guess under this government everybody gets to be prime-minister for 15 minutes”, disse ontem, ironicamente, o líder da oposição, Keir Starmer, citando inviamente Andy Warhol) para ter oportunidade de mostrar, em pleno, o descalabro político que representava.

Pensando ter descoberto a pólvora, com propostas de um radicalismo liberal suicida, Truss acabou por descobrir a porta de saída, em escassas semanas, nem sequer lhe tendo valido o facto de ter presidido a um funeral nacional que lhe poderia ter dado uma unção para a chefia do país.

Os mercados, essa mão visível dos poderes fáticos do mundo, mostraram quem, na realidade, manda nestas coisas e, em especial, explicaram, com a libra a cair e os juros a subir, que, em política, só permanece quem eles entenderem que deve ficar.

Sócrates, por cá, já tinha experimentado a receita, num outro contexto. Truss iria ter um curso acelerado sobre o significado da expressão bíblica “the powers that be”.

Ontem, depois de dias de “facas longas” e de uma demissão artificial de uma ministra, que conseguiu desafiar os limites da deslealdade, a crueldade, associada ao bom senso, puseram Liz Truss fora do jogo.

Agora, temerosos da convocação de uma eleição geral que, tudo o indica, os arrasaria, face a um Partido Trabalhista que sabe que vai ser governo “só não sabe é quando”, como alguém um dia disse por aí, e que se limita a esperar o esboroar do outro lado, os conservadores britânicos vão fazer a sua escolha - desta vez, no seio do grupo parlamentar, porque um regresso à longa consulta da vontade das bases seria a receita para novo desastre.

Quem será o “John Major” de turno? Rishi Sunak, para voltar à “square one” da sua vontade? Penny Mordaunt, para uma mulher com qualidades e algum apelo nas bases, embora muito divisiva entre os seus pares nos Comuns? A opção mais à mão, o atual primeiro-ministro “de facto”, Jeremy Hunt? Ou o ministro da Defesa, Ben Wallace, um nome que reune algum consenso mas com pouco carisma?

Ou, afinal, a “solução” pode ser bem mais simples: o regresso de Boris Johnson, querido das bases conservadoras e que, por vontade destas, nunca teria caído. Quando Johnson se despediu dos Comuns, deixou uma frase enigmática: “Hasta la vista, baby!”. A expressão era de um filme de Schwarzenegger. Poucos notaram que, na película, a ela se seguia outro dito: “I’ll be back!” Boris Johnson poderá querer testar o velho dito: “Atrás de mim virá quem de mim bom fará”.

Logo veremos. Uma grande frieza vai seguramente imperar, desta vez, na busca da melhor solução. Resta saber se quem aí vier terá ainda tempo para conseguir reverter a tendência, que todas as sondagens apontam, no sentido dos trabalhistas virem a mudar, daqui a tempos, para a bancada do governo na Câmara dos Comuns.

“A Arte da Guerra”


As últimas horas de Liz Truss como primeira-ministra britânica, o discurso de Xi Ji Ping no Congresso do Partido Comunista da China e os últimos desenvolvimentos da guerra na Ucrânia foram os temas escolhidos para a conversa que tive com o jornalista António Freitas de Sousa, no “A Arte da Guerra”, o podcast semanal do Jornal Económico sobre questões internacionais.

Pode ver e ouvir aqui

Alfácil


O Daily Star colocou, há dias, uma alface ao lado da fotografia de Liz Truss, lançando o desafio sobre qual aguentaria menos. Hoje confirmou-se: a alface sobreviveu a Truss.

Invernia

No “Ricardo III”, William Shakespeare usou a expressão “Winter of Discontent”. Um dia, ela passou a crismar os quatro meses de caos social, em 1978/79, no governo Callaghan. A partir de então, passou a ser uma bengala do jornalismo sem imaginação. Estejam atentos a este Inverno! Vai ser um fartote de uso da frase. Irra!

Brasil

As notícias que, cada vez mais, chegam do Brasil apontam para um crescimento do apoio a Bolsonaro até à data das eleições, não sendo assim implausível o cenário de uma sua vitória. Medidas económicas, eleitorado evangélico e algum desnorte na mensagem de Lula terão ajudado a isso.

Ronaldo

Cristiano Ronaldo está a dar cabo de uma história pessoal com imenso mérito, com comportamentos de “prima dona“ que acabarão por arruinar-lhe a imagem. Ninguém consegue fazer-lhe perceber isso?

quarta-feira, outubro 19, 2022

Perfídia

A ministra do Interior britânica, escreveu hoje uma carta à sua primeira-ministra e, confessando ter enviado por email um documento oficial, não tendo avaliado que isso era ilegal, pediu a demissão.

Na carta, aproveitou para dizer a Liz Truss o seguinte: “Pretending we haven't made mistakes, carrying on as if everyone can't see that we have made them, and hoping that things will magically come right is not serious politics. I have made a mistake; I accept responsibility; I resign”.

Se isto nada tivesse a ver com o facto de Truss, ontem, ter confessado, numa patética entrevista à BBC (pode vê-la clicando aqui) os seus recentes e imensos erros políticos e, nem por isso, se ter demitido, não seria uma perfídia. Mas, como tem, é, além de uma perfídia, uma imensa deslealdade.

Liberais

Truss criou um delicioso incómodo aos liberais. Depois de terem rejubilado com a ideia do “choque fiscal”, o clamoroso colapso da senhora leva-os agora a afastarem-se, como o diabo da cruz, dessas catastróficas medidas. Um destes dias, Truss vai ser acusada de ser “socialista”…

Adjetivos

Na guerra civil em Angola, a imprensa oficiosa algolana antecedia sempre o conceito de “sul- africano” do adjetivo “racista”. Um dia, um locutor de rádio falou mesmo de “aviões racistas sul-africanos”. Juro! Com a guerra da Ucrânia, há por aí adjetivos depreciativos em barda…

Sakarov

Zelensky recebe o Prémio Sakarov. As coisas andam por aí tão extremadas que não nos devemos admirar se acaso, na Ucrânia, houver quem não fique satisfeito pelo facto do prémio ter o nome de um russo.

terça-feira, outubro 18, 2022

Acabado de receber…

1. De Fátima Fernandes:

“Tenho visto os seus comentarios sobre a guerra e estou SIDERADA. O sr, como alguns generais-comentadores mostram à evidencia o grau de sedução e penetração do regime cleptocrata russo penetraram, nos ultimos anos, as chancelarias e os militares de topo. É ASSUSTADOR! Shame on you, Sr embaixador. Shame !!!! Para si e para o PS”

2. De Mário Daniel: 

“Devia ter vergonha por se prestar a ser na CNN um repetidor das mensagens da NATO e do seu patrão imperialista americano. Um diplomata deveria ser isento e não ajudar ao ódio à Rússia. Esperava de si isenção e não cumplicidade com os nazis ucranianos. Que desilusão, senhor Embaixador.”

Depois disto, dou por mim a pensar sobre se estamos todos a ver o mesmo filme.

E se falássemos do Brexit?

O “espetáculo” na Câmara dos Comuns britânica, na tarde desta segunda-feira, foi imperdível. O líder da oposição, tentando cavalgar a desorientação da primeira-ministra, tinha pedido um debate de urgência.

À hora marcada, a primeira-ministra Liz Truss não apareceu. Em seu lugar, surgiu a líder parlamentar conservadora, Penny Mordaunt, que teve de suportar um longo e ácido embate com toda a oposição, com os trabalhistas a serem acolitados pelos liberal-democratas e pelos deputados escoceses.

Mordaunt segurou a “barra” de infindáveis críticas, com grande firmeza e notável capacidade. Mais do que a chefe dos deputados, estava ali alguém que, nos últimos dias, muitos apontam como possível substituto de Truss, convindo lembrar que ela chegou, há poucos meses, ao penúltimo “round” na seleção da “short list” que iria ser submetida à escolha dos militantes, para a substituição de Boris Johnson, de onde Truss emergiu vitoriosa.

Mordaunt, ao longo do debate, foi dizendo, repetidas vezes, que Truss tinha ficado retida por motivos de última hora, o que provocava sempre largas risadas e galhofa. Disse também que o novo ministro das Finanças, Jeremy Hunt, iria apresentar, mais tarde nessa tarde, as suas ideias para a nova política económica.

Durante o fim de semana, Hunt já tinha dado indicações que iria reverter muitas das medidas que Truss e o seu efémero ministro dessa pasta, Kwasi Kwarteng, tinham anunciado ao país, e que tinha criado o caos nos mercados e a necessidade de uma intervenção de urgência do Banco de Inglaterra. Ao final da tarde de segunda-feira, deu-se conta, afinal, que, no programa do novo ministro, quase nada sobrava do pacote de reformas que a dupla Truss-Kwarteng tinha proposto, como chave milagrosa para a rápida recuperação do país. Um programa que, basicamente, cortava impostos e financiava essa redução da receita pela criação de dívida. Os mercados reagiram e toda essa “brilhante” ilusão liberal - o “choque fiscal”, com que, por cá alguns, em outros tempos, chegaram a sonhar - foi por água abaixo.

Foi então patético ver Truss, finalmente chegada ao parlamento, sentada, silenciosa como uma múmia, com ar aturdido e sorriso de atroz padecimento interior, ao lado do seu novo ministro, com este a “ditar” tudo o que iria fazer: exatamente o contrário daquilo que ela, com tanto ênfase e tanta arrogância, nas semanas anteriores anunciara ao país.

Agora, as horas de Truss parecem contadas. Boris Johnson deve estar a rir-se: alguém conseguiu fazer bem pior.

Curiosamente, porque a humildade é uma qualidade pouco britânica, ninguém assume o óbvio: o “disarray” que atravessa a vida económica do Reino Unido tem origem, em grande parte, no salto para o escuro que foi o Brexit.

segunda-feira, outubro 17, 2022

Brasil


Foi curioso assistir ao debate televisivo entre Lula e Bolsonaro. Será difícil encontrar duas personalidades mais contrastantes. O frente-a-frente é sempre um teste clarificador. 

Lula é um “animal” de debates, solta-se, tem traquejo para falar. Bolsonaro é “stiff” e pareceu, às vezes, aturdido. 

Lula parece cansado, com a idade a pesar, fala demasiado do passado, do seu governo, quase sai aos ombros de si mesmo com tantos auto-elogios. Praticamente só promete um “reset”, ignorando que aqueles seus anos no Planalto tiveram um cenário económico irrepetível.

Bolsonaro debita uma cassete de “character assassination”, agarrado a três ou quatro bengalas acusatórias, desqualificantes, sobre o adversário. Tentou um “número” demagógico para o Nordeste, mas terá feito um erro ao procurar negar o êxito das medidas sociais de Lula.

Quem ganhou o debate? O debate importou pouco para quem já tem o seu voto decidido. É implausível que alguém que tenha votado Lula na primeira volta, mude agora para Bolsonaro. E os bolsonaristas ”de carteirinha” não se deixaram, pela certa, impressionar pelo ex-presidente.

Tendo esgotado cedo o seu tempo na parte final do debate, Lula deu a Bolsonaro, em tempo “prime”, oportunidade para um longo monólogo, “moralista”, com uma agenda conservadora a tocar a corda religiosa do país. Nenhum trouxe nada de novo, nenhum “coelho da cartola” mobilizador.

Bolsonaro precisava de ganhar eleitores que não tinham votado nele nem em Lula. Tê-lo-á conseguido? Não sei. Mas faltam duas semanas para a eleição e não é de excluir que algumas medidas do governo, sentidas ou prometidas nos bolsos, possam fazer a diferença.

Os lulistas não devem estar de acordo comigo, mas acho que Bolsonaro, no final das contas, conseguiu não perder este debate, embora ele lhe tivesse começado por correr bastante mal.

domingo, outubro 16, 2022

Periscópio


Nas próximas eleições presidenciais, anotem bem!, o diabo veste farda. 

Se acaso algum militar viesse a surgir como candidato, toda a Europa se riria de nós. 

O último, creio, foi Jaruzelski.

Até tu, Brutus?!


Nada melhor que o “The Sunday Times”, um jornal conservador britânico, para se pronunciar sobre o não futuro da primeira-ministra do seu reino.

sábado, outubro 15, 2022

Liz


Há uma expressão inglesa que se aplica lindamente à atual situação da primeira-ministra Liz Truss: “She is in office, not in power”.

Liberais

Um dos efeitos colaterais muito positivos do desastre que foram os ensaios de política de Liz Truss é a possibilidade de passar a ser viável denunciar a irracionalidade fundamentalista das receitas liberais.

sexta-feira, outubro 14, 2022

Previsão

Ao ver a crise energética que atravessa a Europa, e o que aí virá nos próximos meses, dou-me conta de que Roberto Carlos há muito havia previsto esta angústia: “só quero que você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá p’ró inferno”.

quinta-feira, outubro 13, 2022

“A Arte da Guerra”


Esta semana, com o jornalismo António Freitas de Sousa, no podcast para o ”Jornal Económico”, abordo os mais recentes desenvolvimentos na guerra da Ucrânia, as tensões induzidas pelas decisões da OPEP + e o que se pode prever do 20° congresso do Partido Comunista Chinês.

Pode ver clicando aqui.

ONU

Não há diferenças muito substanciais entre o voto de condenação da Rússia na Assembleia Geral da ONU em Março (141 a condenar, 5 a defender e 34 abstenções) e a que ontem foi votada (143 - 5 - 35). 

Algumas curiosidades

1. A Eritreia, que tinha estado ao lado da Rússia em março, passou a abster-se; a Nicarágua, que se tinha abstido em março, votou contra a resolução; nestas condições, a Rússia manteve quatro países a seu lado: Coreia do Norte, Síria, Bielorrússia e agora Nicarágua, por troca com Eritreia.

2. Cinco países passaram da abstenção à condenação à Rússia: Angola, Bangladesh, Iraque, Madagascar e Senegal.

3. Países que tinham votado a favor e passaram para a abstenção: Honduras, Lesotho.

4. Países que não tinham votado em março e que passaram à abstenção: Eswatini, Etiópia, Guiné, Togo e Usebequistão. 

5. Países que se tinham abstido e faltaram: Irão e El Salvador.

6. País que tinha votado a favor e faltou: S. Tomé e Príncipe.

quarta-feira, outubro 12, 2022

Brasil

Na noite da primeira volta da eleição presidencial brasileira, e julgando conhecer um pouco “do que a casa gasta”, previ na CNN Portugal que o período entre turnos se tornaria numa campanha “suja”. Não me enganei: os dois lados enveredaram por linguagem e vídeos da maior baixeza.

Para inglês ver?

Parece uma evidência que as propostas russas de um encontro Putin-Biden e, agora, de um possível novo fornecimento de gás à Europa fazem parte de uma operação meramente formal de “relações públicas”. Moscovo sabe que ninguém vai aceitar, mas poderá sempre afirmar: “não digam que não propusemos!”

E o governo?

Quando um partido surge a pedir a demissão de um ministro, podemos deduzir que, no fundo, está em favor da manutençaão de todos os restantes nos lugares que ocupam? Não seria mais eficaz pedirem a demissão do primeiro-ministro e, depois, ”ia tudo a eito?”

“Ucrânia - é imperioso sair da caixa”


Fez ontem cinco meses, publiquei este artigo no “Expresso”. Algumas coisas estão datadas e ocorreu a alteração de certas circunstâncias, mas, mesmo assim, hoje apetece-me relembrá-lo, porque o essencial não mudou e continuo a pensar exatamente o mesmo:

”Esta guerra já não é apenas entre a Rússia e a Ucrânia. É cada vez maior o envolvimento, através de ajuda militar e de sanções, de muitos países que passaram a ser parte, embora por ora não beligerante, no conflito. Em moldes todavia nunca comparáveis ao sofrimento da população da Ucrânia, as respetivas sociedades estão a começar a sentir as consequências do prolongamento da guerra.

Parece não ter sentido que os países envolvidos no apoio à Ucrânia fiquem a aguardar o resultado, cada vez mais duvidoso, de um processo negocial, aparentemente suspenso, entre Kiev e Moscovo. Há dimensões do conflito, como fica evidente na questão das armas nucleares, que vão muito para além da situação concreta da Ucrânia, embora com ela interligada.

António Guterres disse hoje que não parece haver condições para um cessar-fogo bilateral. Porquê? Porque entende que a Rússia pretende estabilizar alguns dos seus ganhos e não completou o cerco de isolamento que pretende fazer à Ucrânia pelo sul. E também porque o secretário-geral da ONU pressente que a Ucrânia, forte do apoio militar crescente com que conta reverter a sorte do conflito, avalia que as próximas semanas lhe podem trazer vantagens. Um dos dois contendores está enganado na sorte que o relógio lhe pode trazer, mas só no final se saberá qual.

É imperioso sair do impasse da situação no terreno. Os países ocidentais, mantendo-se sempre firmes no apoio que dão à Ucrânia - essa é, alías, a expressão essencial do seu poder neste contexto - deveriam abrir uma frente negocial direta com Moscovo. Um conflito que pode escalar para proporções (in)imagináveis não pode ficar dependente exclusivamente dos eventuais resultados de uma diplomacia ucraniana acossada pela agressão e pela expectativa ansiosa da evolução da situação militar no seu terreno.

O envolvimento negocial ocidental deveria, como é óbvio, associar plenamente a Ucrânia e ter no centro os seus legítimos interesses de soberania, mas igualmente não poderia deixar de ponderar as consequências económicas, e em breve também sócio-políticas, decorrentes do efeito “boomerang” das sanções e dos previsíveis problemas decorrentes da situação dos muitos refugiados que não poderão ainda regressar à sua terra . Há que ter consciência, e aparentemente ela parece não existir, de que o momento ótimo de consenso entre os aliados vai começar a diluir-se, por virtude dos efeitos do inevitável desgaste de vontade, em vários paises europeus.

O mundo que Vladimir Putin conhece é o da força. Ora o ocidente tem hoje, nas suas mãos, dois instrumentos negociais que podem ser decisivos para qualquer compromisso: a sua capacidade e determinação em poder continuar a armar a Ucrânia, colocando-a em condições de ir “empatando” a guerra, e o fortíssimo pacote de sanções, que, recordo, foi posto em prática por virtude da agressão russa, pelo que parte do qual pode ser usado como moeda de troca na hipótese de um eventual compromisso.

Macron mantém o número de telefone de Moscovo. Draghi deu sinais, em Washington, de que favorece um caminho de um diálogo exigente, sempre sob uma posição comum. Berlim, nesta sua fase hesitante, conta bastante pouco para ousadias. O jingoísmo descabelado de Boris Johnson ecoará o que Washington ditar. É nos Estados Unidos que reside a chave de um eventual novo tempo neste processo, pelo que compete aos europeus lembrar-lhes que é só deste lado do Atlântico que, por agora, continua a guerra.

A História mostra que, para pôr termo a um conflito, ou se derrota totalmente o inimigo (e a Rússia não é derrotável, enquanto potência, como sabe quem sabe destas coisas) ou se fala com ele para ir aferindo das hipóteses de um acordo. Pensar que o tempo corre sempre a nosso favor é uma ingenuidade perigosa.

O óbvio

António Costa disse hoje, sobre as palavras criticadas de Marcelo Rebelo de Sousa, exatamente o que precisava ser dito. As pessoas, mesmo as que não gostam de Marcelo, acham que uma pessoa como ele desculpabilizaria abusos sexuais? Não vale tudo!

Os lamentos de Borrell

Josep Borrell deu um “arraso” público à máquina diplomática que a União Europeia alimenta pelo mundo, o chamado Serviço Europeu de Ação Externa. Para o responsável máximo pela diplomacia europeia, falta qualidade e prontidão ao “produto” das suas embaixadas pelo mundo. Estas declarações provocaram, ao que se sabe, um choque entre os funcionários do sistema, ao serem-lhes puxadas as orelhas da forma que o foram. Mas nada melhor que o seu chefe para credibilizar, com o seu testemunho, a ineficácia do SEAE. A suprema ironia desta avalição é o facto desta estrutura ter recursos materiais para a sua atividade bastante significativos, ter, também por essa via, um grande poder de influência junto dos países onde atua e dispor de gente qualificada. Se não funciona bem, de quem será a culpa? Talvez de quem orienta o sistema. 

terça-feira, outubro 11, 2022

O título


Um dia, numa conversa durante uma viagem de avião, comentei com António Guterres que estava furioso com a frase que um jornal tinha escolhido para título, de tudo o que eu tinha dito numa entrevista. Era redutora e distorcia por completo o que eu pensava. Guterres riu-se: “Aprenda, meu caro! Numa entrevista, a sua pior frase será sempre o título”.

Lembrei-me disto, ao ver a onda de críticas que hoje choveu sobre o presidente da República. Às vezes, basta uma frase menos feliz para ajudar à festa.

segunda-feira, outubro 10, 2022

O recado

Os ataques de hoje, e os que podem aí pode vir, inserem-se numa espécie de recado implícito de Moscovo a Kiev: parem de atacar territórios nas zonas que consideramos como nossas ou tornaremos a vossa vida num inferno.

“Fait divers”


Hoje, quando o ministro das Finanças entregava a “pen drive” com o texto do orçamento de Estado ao presidente da Assembleia da República, o envelope caiu ao chão. Foi logo um forrobodó de comentários nas redes sociais. “Much ado about nothing”, como diria o clássico.

É curioso observar esta inescapável tendência da comunicação social para agarrar o insólito, o imprevisto, mesmo sem o menor significado para o momento. Ninguém resiste a esta tentação. Então um escorregão de uma figura pública num passeio ou num degrau é logo um “prato de substância” para certa media!

Há uns anos, numa cerimónia pública a que eu assistia, no Brasil, o presidente Lula, que estava num palanque, deixou cair ao chão um copo de água, que se estilhaçou, com toda a gente à volta a procurar ajudar. Os fotógrafos logo "flasharam". Recordo-me de ter dito para o chefe de gabinete de Lula, que estava ao meu lado: "Vai ser curioso ver quantos jornais amanhã trarão a fotografia desta cena...". Sem excepção, todos, todos mesmo, trouxeram!

Já tenho pensado que um bom trabalho de "marketing" político poderia planear incidentes inocentes, feitos apenas para a fotografia, por forma a humanizar certas personagens políticas. A alguns, com um ar muito ”certinho”, bastante jeito dava…

Medina

Fernando Medina, que alguns apressados diziam ser um erro de “casting” de Costa para as Finanças, tem dado, ao longo destes últimos meses, sobejas provas de qualificação para o cargo.

Polícia mau

O antigo primeiro-ministro e presidente alternante da Rússia, Dmitri Medvedev, parece ter como função, no aparelho da diplomacia pública da Federação, a de “polícia mau”. Só que, neste caso, não parece muito evidente quem é o ”polícia bom”. Se esse é o papel de Putin, safa!

Precisão

Moscovo afirma que os mísseis hoje utilizados nos ataques a zonas urbanas são de extrema precisão. É bom saber. Isso significa que todos os alvos atingidos, por muito inverosímil que isso pareça, eram mesmo aqueles.

Pior, afinal, é possível

O dia de hoje provou que, como beligerante, a Rússia ainda tem margem para piorar a sua imagem e agravar o seu isolamento.

Previsível

A Rússia, no dia de hoje, foi tragicamente previsível: ataques, ao que parece um tanto discriminados, por áreas urbanas, um pouco por toda a Ucrânia. Vingar Kerch.

Outono



Em outubro, pode cheirar a setembro.

(A fotografia não é minha. Roubei-a por aqui)

Vamos para a rua?

Nesta coisa do acordo de concertação social sente-se um pouco discreto carinho em alguns comentadores, de inesperadas bandas, pela posição da CGTP, como a ressoar um “haja alguém que não amouxe!” No fundo é a “desilusão”, não é?: “Então as ‘nossas’ confederações portam-se assim?”

Do tempo do outro senhor

Declaração que os funcionários públicos eram obrigados a ler em voz alta, na ditadura, antes da posse: “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição política de 1933, com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”.

Fico com a sensação, ao ler muita gente aqui pelas redes sociais, que isto já os chocou mais do que os choca hoje.

domingo, outubro 09, 2022

Heterodoxias

Alguém notou que, quando o PSD está no poder, a comunicação social não recruta tantas figuras heterodoxas daquele partido para comentar a atualidade política como acontece com o PS. Será verdade? Ou o tempo PSD no poder já lá vai há muito e nós esquecemos?

Concertação

Nos comentadores do acordo de concertação social transpareceu uma espécie de “desconfiança” sobre o que teria levado certos parceiros a assiná-lo, não obstante as suas anteriores divergências face às posições do governo. Em vez de “desconfiarem”, por que não lhes perguntam?

Mistério

Que diabo se terá passado neste blogue para que, neste sábado, tenha havido mais de 10.700 visitantes, quando a normalidade são l.200 / 1.400 leitores diários? Que se procurou por aqui? Ele há cada mistério…

sábado, outubro 08, 2022

Kerch

O argumento russo de que a danificação da ponte de Kerch é um ato de “terrorismo” é perfeitamente ridículo. A Rússia está em guerra com a Ucrânia, chame-lhe Moscovo o que lhe chamar. Destruir infraestruturas é um ato normal numa guerra. A Rússia não fez o mesmo na Ucrânia?

Fui à Revista!


Tenho a sensação de que o programa de ”ir ver uma Revista ao Parque” não surge, nos dias de hoje, como uma das primeiras ideias na cabeça dos lisboetas, quando pensam sair à noite.

Pois fazem mal! Ontem decidi ir ver, com amigos, uma revista ao Maria Vitória, um espetáculo que comemora os cem anos da abertura do Parque Mayer. Por isso se chama ”Parabéns, Parque Mayer!”.

Não nos arrependemos. A revista é divertida, enche quase duas horas de música, de graças e, claro, de coristas - porque gosto das revistas como gosto da ginginhas, isto é, com elas. 

Acho, além disso, que os lisboetas têm um dever de solidariedade com a companhia teatral que ali se mantém há vários anos, sem obter subsídios. 

O Parque Mayer tem um estacionamento muito fácil e por ali janta-se bem e a custo módico.

Ontem, recordei que foi precisamente no Maria Vitória que, em 1965, vi a minha primeira revista em Lisboa. Chamava-se “E viva o velho!”. Um jovem chamado António Mourão estreava ali o seu maior sucesso, o “Ó tempo volta p’ra trás”. Menos de uma década depois, felizmente, a História não lhe fez a vontade.

Ainda no ano anterior, com o Cine-Teatro Avenida, de Vila Real, a abarrotar, tinha assistido à revista ”De Biquini e Chapéu Alto”. Ainda hoje me interrogo como tive a lata de falsificar, nessa noite, com uma resura de tinta, o meu bilhete de identidade, porque só se entrava com 17 anos - e eu tinha 16…

Voltando à minha ida ao Maria Vitória, em 1965. Entrei, com uns primos, com um ”bilhete de claque”, comprado junto de uma figura conhecida de uma certa Lisboa, que parava, ao final da tarde, na porta da Estação do Rossio. A ”obrigação” decorrente da aquisição desse tipo de bilhetes, que custavam um quarto do preço regular, era a de bater palmas ao sinal do “claqueiro”, que se encostava à parede lateral do teatro. 

Não sei quando acabaram os “claqueiros”. Ontem, não precisei deles para bater bastantes palmas, durante toda a revista.

sexta-feira, outubro 07, 2022

Mahler ou Godinho?


Andava eu pelo liceu quando o meu tio Luís, que vivia em Lisboa, num Natal, ofereceu ao meu pai, conhecido na família como francófilo, um livro da escritora francesa Françoise Sagan. O livro chamava-se “Aimez-vous Brahms..” 

O meu pai agradeceu muito a gentileza do cunhado. Minutos depois,  fez uma observação, mais ou menos assim: “É curioso, o título deste livro. Desde logo porque tem dois pontos a seguir às palavras. Ora isso “não existe” em pontuação: ou é um ponto ou são três pontos, as reticências. Mas é ainda mais estranho por outra razão. Se o título quer afirmar, devia ser “Vous aimez” e não “Aimez-vous”. Se tem o “Aimez-vous”, se é uma questão, deveria ter um ponto de interrogação.” 

Fixei aquilo e, sempre que, nos anos seguintes, olhava para o livro, lembrava-me do “mistério” do título. Para quem for mais curioso, o “tio Google” explica que, ao longo dos tempos, não foi só o meu pai a ficar intrigado. A história é conhecida e há hoje títulos publicados da mesma obra para todos os gostos. Mas não é essa a questão de hoje.

Ontem, estava a assistir à interpretação de uma obra de Mahler e, de repente, lembrei-me da pergunta: “Você gosta de Mahler?” 

Quem colocou essa questão, em meados dos anos 90, dirigida a um candidato ao acesso ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, foi o embaixador Luís Navega, que representava o secretário-geral da casa no júri de um concurso para a seleção de futuros diplomatas. 

Tratava-se da prova então chamada  “de apresentação”, em que se procurava, em 20 minutos, perceber, de forma algo impressionista, se o candidato tinha conhecimentos culturais mínimos. Gostar de Mahler estava, claramente, fora desse âmbito. Eu, que também integrava esse painel, fiquei banzado com o rigor da questão. Recordo-me de ter trocado olhares com outros membros do júri. Já não sei o que o candidato respondeu. De uma coisa há a certeza: ele não reprovou por causa disso, porque, acabada a prova e fechada a porta, todos os restantes membros do júri manifestaram, em coro, a sua surpresa pela questão de Luís Navega. Tanto mais surpreendente quanto ele era sempre um homem muito sensato.

Como se diz no bilhar, fiquei com aquela de Mahler “à marca”. Minutos depois, na entrevista com o candidato seguinte, puxei a conversa para outro tipo de música e saí-me com esta: “Você gosta de Sérgio Godinho?”. Olhei de viés para o embaixador Navega. Como bom profissional, afivelava um sorriso “giocôndico”, o que era uma resposta ínvia à minha óbvia provocação. Para a pequena história: o candidato gostava muito de Sérgio Godinho. Não faço ideia sobre se entrou para as Necessidades.

quinta-feira, outubro 06, 2022

Nobel

Aquele meu amigo putinista (e trumpista, que gosta do Orbán e do Erdogan, que fala com entusiasmo do “André” e que prefere o Salvini à Meloni) enganou-se.

Ontem, quando lhe perguntei um prognóstico para o Nobel da Literatura, tinha-me dito: “Vai para o tipo que escreve os “power points” ao Zelensky, vais ver!”

“A Arte da Guerra”


Esta semana, no podcast “A Arte da Guerra”, o diálogo com o jornalista António Freitas de Sousa sobre temas da política internacional, feito para o “Jornal Económico”, analiso os resultados da primeira volta das eleições presidenciais brasileiras, as consequências, no plano europeu, do resultado das eleições legislativas na Bulgária e as dificuldades da nova primeira-ministra britânica para implementar a sua agenda liberal radical.

Pode ver aqui.

Requião

Numa intervenção pública que ontem fez, Lula da Silva referiu que uma das três personalidades politicas brasileiras que sempre apreciou, mesmo quando com elas tinha tido conflitos, era Roberto Requião.

Senador e, por três vezes, antigo governador do Estado do Paraná, Roberto Requião está, nos dias de hoje, para surpresa de muita gente, nas fileiras do PT. Concorreu e foi derrotado, no domingo passado, para um quarto mandato como governador do Estado. 

Mas nem sempre a sua relação com Lula foi assim foi. Ao tempo em que foi governador do Paraná, e era um militante bastante heterodoxo do então PMDB, Requião afirmava-se como uma figura bastante polémica. Autoritário e com “voz grossa” na vida pública, chegou a demitir em direto, durante uma reunião do governo estadual transmitida pela televisão, um seu governante. As suas relações com o governo central, em Brasília, foram muito difíceis e, de quando em vez, faziam títulos nos jornais os seus frequentes conflitos com os ministros de Lula.

Como embaixador, eu sempre olhei os confrontos entre políticos brasileiros como mero objeto de análise política, feita por um observador exterior. As minhas preocupações centravam-se então, no que ao governo do Paraná dizia respeito, na tentativa de defesa dos nossos interesses. E nesse âmbito, havia um sério problema: o governo de Requião recusava-se a cumprir os termos de um contrato assinado pelo Estado com uma empresa portuguesa. Porquê? Porque esse contrato tinha sido assinado pelo seu antecessor no cargo e ele não concordava com os respetivos termos.

Decidi ir ver Roberto Requião a Curitiba. Surpreendentemente, em lugar de me receber em audiência no palácio do governo, convidou-me para almoçar na sua “chácara”, nos arredores da capital. Levei isso à conta da simpatia que teria pela importante comunidade portuguesa no Paraná, um Estado que tem uma população igual à de Portugal.

Fui ao almoço com a Cônsul de Portugal, Patrícia Gaspar. A conversa, a anteceder o repasto, depois de eu ter sintetizado ao que ia, não começou muito bem. Requião fez uma diatribe sobre a atividade da nossa empresa, insinuando ter havido arranjos financeiros, por debaixo da mesa, aquando da assinatura do polémico contrato. Sem dar para isso a menor prova, claro. Por isso, disse-me, não iria cumprir os termos do contrato. 

Nesse caso, e constatando estar esgotada toda a possibilidade de solução negociada, só restava à empresa o recurso aos tribunais, concluí eu.

Requião respondeu-me: “Só aceitarei decisões dos tribunais do Estado, daqui do Paraná. Não confio nos tribunais federais, lá de Brasília. Nunca respeitarei uma decisão que venha deles”. Aí, provoquei-o: “E se os tribunais do Paraná não lhe derem razão? ”. Deu uma gargalhada: “Dão, pode ter a certeza de que dão…”, deixando intuir o óbvio.

Nesse ponto da conversa, agravei o tom: “Nos últimos anos, senhor governador, o Estado português tem estimulado muito o investimento privado no Brasil. Um dos argumentos que temos dado aos empresários portugueses é que o Brasil é um Estado de direito, que aqui há um sistema judicial fiável, que existe uma segurança jurídica que permite investir e, quando há problemas, a lei protege os direitos do investidor. O que o senhor governador me está a dizer agora é que o Paraná se isenta dessa obrigação, que faz uma justiça ao seu jeito. Isso quer dizer - e lamento ter de o constatar - que o Brasil, enquanto entidade internacional de bem, passa a ter, no Paraná, uma espécie de “buraco negro”. Quero dizer-lhe que isto me surpreende muito!”

Roberto Requião olhou-me com um ar furioso. Fisicamente, ele era imenso, ao meu lado. Por um instante, temi o pior. Um ano antes, num confronto do mesmo género com o embaixador espanhol, Requião tê-lo-á ameaçado de prisão! 

Decidi não insistir no ponto. Consegui distender a conversa e, um quarto de hora depois, já após a análise de outros assuntos menos contenciosos, convidou-me a ir com ele à sua adega, para escolhermos um bom vinho francês para a nossa refeição. Disse-me que, todos os anos, fazia “expedições” com o filho a França, onde se enchiam de ostras e ele comprava ótimos vinhos.

O almoço acabou por ser simpático, embora com ainda com uma pequena picardia, quando Requião considerou o Vinho do Porto um “melaço imprestável”, o que levou a uma leve indignação da nossa parte. 

No tocante ao motivo central do encontro, Requião tinha feito o seu ponto e eu tinha feito o meu. O assunto seguiu para a justiça e, creio, só se resolveu depois da minha saída do Brasil.

Fui do Brasil para França. Nunca me cruzei com Requião em nenhum restaurante de ostras ou numa qualquer cave de vinhos franceses. Gosto pouco de ostras e, na minha casa em Paris, só se bebiam vinhos portugueses. E Vinho do Porto, claro.

quarta-feira, outubro 05, 2022

“Cícero”


Cícero Dias foi um excelente pintor pernambucano, da época do modernismo. Alguém decidiu homenageá-lo em Lisboa, criando um restaurante-bistrot em Campo de Ourique, chamado “Cícero”. Fica na rua Saraiva de Carvalho, no local onde esta artéria cruza com a Tomás da Anunciação. Os proprietários, recheados de bom gosto estético, criaram, num espaço limitado, quatro áreas diferenciadas. A obra de Cícero Dias é evocada por lá.

(Imagino que os proprietários do restaurante não façam a menor ideia de que a casa onde se instalaram alojou, por muitos anos, uma empresa brasileira, a Dimep, criada pelo português Dimas de Melo Pimenta, dedicada ao fabrico de relógios industriais. Por que sei isto? Porque a Dimep foi objeto de uma intervenção estatal, em 1975, no auge da Revolução portuguesa. E porque tive como tarefa, como jovem diplomata, dois anos mais tarde, secretariar uma comissão inter-ministerial luso-brasileira que teve de tratar de essa e de outras questões similares. E guardei para sempre o nome da Dimep (e do Pão de Açúcar) como uma delas.)

Voltando ao restaurante. A lista não é muito longa, mas está bem construída, com criatividade e muito saber. Se consultar o site, pode ficar a saber bastante, do menu aos preços: https://cicerobistrot.pt . Mas só ficará a conhecer mais se passar mesmo por lá, como eu fiz hoje, para almoçar, depois de ontem um amigo me ter falado do “Cícero”. Comi bem e gostei do serviço, muito profissional. Só posso desejar sorte à gente do “Cícero”.

Luís Moita


Quando revemos aquele fantástico filme da saída dos últimos presos de Caxias, surge por ali a cara sorridente e confiante de um homem alto, com ar determinado, a caminhar para a liberdade por que tanto tinha lutado. É o Luís Moita.

Há muito que, à distância, eu sabia quem era aquela figura que, saída do catolicismo crítico, enveredara, entre outras, pela tarefa difícil, mas essencial, de ajudar à luta anti-colonial na terra do colonizador. A repressão, que bem conhecia a sua determinação, não o poupou.

Imediatamente após Abril, cruzei o Luís em algumas noites agitadas desses dias sem par. Mas, com a minha itinerância, os nossos destinos perderam-se, por algum tempo.

O Luís, com uma admirável coerência e grande dignidade, fez, a partir daí, o percurso cívico que a consciência lhe ditou, ligando-se, sempre com aquele contagiante entusiasmo juvenil que é o seu, a algumas causas que entendeu como nobres e necessárias.

Sempre do lado certo da História, com aquele sorriso bom e o seu modo suave e amável de estar com os outros, o que o torna apreciado e respeitado em insuspeitados quadrantes, o Luís foi fazendo o seu caminho, envolvendo-se em áreas da dinamização da sociedade civil, ao mesmo tempo que ia construindo uma carreira académica de sucesso.

Foi em alguma limitada ligação minha ao mundo universitário, a seu convite, na última década, que me aproximei mais do Luís. E em que desenvolvi com ele a forte relação de amizade que hoje nos une. Tenho, além disso, pelo Luís Moita, uma consideração e uma admiração que dedico a muitas poucas pessoas - e digo isto com grande sinceridade.

Durante anos, eu achava que o Luís “não tinha idade”. A sua vitalidade e capacidade de trabalho projetavam nele um “boyish style” que quase me levou a não acreditar quando, um dia, ele me convidou para a festa dos seus 80 anos.

A saúde pregou, entretanto, algumas partidas recentes ao Luís. O seu quotidiano futuro vai ter algumas limitações, o dia a dia já não vai poder ser aquilo que, até há pouco, foi e em que ele se sentia confortável. A universidade já não poderá contar com aquela sua generosa e proverbial disponibilidade. Mas, como canta o nosso amigo Fausto, “atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir”.

O espírito do Luís mantém-se, felizmente, inalterado: “O 5 de outubro não é só a proclamação da República, é também o dia do meu regresso a casa”, disse ele, há dias, aos amigos, numa SMS.

Bem regressado, Luís! A vida continua e os teus amigos estão muito felizes por te verem de regresso às lides. E, neste dia, em que te mando um forte abraço e um beijo amigo à Ana, sei que estás comigo num viva à nossa bela República!

Estados de alma

Há uns anos, tivemos por cá uma amostra paroquial de um governo que detestava o Estado a dirigir esse mesmo Estado. Era a lógica de "me...