terça-feira, outubro 18, 2022

E se falássemos do Brexit?

O “espetáculo” na Câmara dos Comuns britânica, na tarde desta segunda-feira, foi imperdível. O líder da oposição, tentando cavalgar a desorientação da primeira-ministra, tinha pedido um debate de urgência.

À hora marcada, a primeira-ministra Liz Truss não apareceu. Em seu lugar, surgiu a líder parlamentar conservadora, Penny Mordaunt, que teve de suportar um longo e ácido embate com toda a oposição, com os trabalhistas a serem acolitados pelos liberal-democratas e pelos deputados escoceses.

Mordaunt segurou a “barra” de infindáveis críticas, com grande firmeza e notável capacidade. Mais do que a chefe dos deputados, estava ali alguém que, nos últimos dias, muitos apontam como possível substituto de Truss, convindo lembrar que ela chegou, há poucos meses, ao penúltimo “round” na seleção da “short list” que iria ser submetida à escolha dos militantes, para a substituição de Boris Johnson, de onde Truss emergiu vitoriosa.

Mordaunt, ao longo do debate, foi dizendo, repetidas vezes, que Truss tinha ficado retida por motivos de última hora, o que provocava sempre largas risadas e galhofa. Disse também que o novo ministro das Finanças, Jeremy Hunt, iria apresentar, mais tarde nessa tarde, as suas ideias para a nova política económica.

Durante o fim de semana, Hunt já tinha dado indicações que iria reverter muitas das medidas que Truss e o seu efémero ministro dessa pasta, Kwasi Kwarteng, tinham anunciado ao país, e que tinha criado o caos nos mercados e a necessidade de uma intervenção de urgência do Banco de Inglaterra. Ao final da tarde de segunda-feira, deu-se conta, afinal, que, no programa do novo ministro, quase nada sobrava do pacote de reformas que a dupla Truss-Kwarteng tinha proposto, como chave milagrosa para a rápida recuperação do país. Um programa que, basicamente, cortava impostos e financiava essa redução da receita pela criação de dívida. Os mercados reagiram e toda essa “brilhante” ilusão liberal - o “choque fiscal”, com que, por cá alguns, em outros tempos, chegaram a sonhar - foi por água abaixo.

Foi então patético ver Truss, finalmente chegada ao parlamento, sentada, silenciosa como uma múmia, com ar aturdido e sorriso de atroz padecimento interior, ao lado do seu novo ministro, com este a “ditar” tudo o que iria fazer: exatamente o contrário daquilo que ela, com tanto ênfase e tanta arrogância, nas semanas anteriores anunciara ao país.

Agora, as horas de Truss parecem contadas. Boris Johnson deve estar a rir-se: alguém conseguiu fazer bem pior.

Curiosamente, porque a humildade é uma qualidade pouco britânica, ninguém assume o óbvio: o “disarray” que atravessa a vida económica do Reino Unido tem origem, em grande parte, no salto para o escuro que foi o Brexit.

11 comentários:

Luís Lavoura disse...

Em 2011 chamavam-nos os PIGS.
Agora o PIG são eles.

Unknown disse...

Acho extraordinário esta narrativa de colar os liberais e apelidar de liberal, as ideias suicidas de Truss e Kwarteng. Digam-me, por favor, onde encontram um liberal que defenda, em simultâneo, o corte de receita e o aumento, ainda por cima brutal, de despesa pública, com o inevitável recurso a dívida e, consequentemente, mais impostos no futuro!

manuel campos disse...


Um salto para o escuro que remonta aos traumas do tempo de De Gaulle.

Por isso os idosos votaram como votaram e os jovens votaram como votaram.

O resultado está à vista e há uns bons tempos que se reflecte no dia-a-dia.

E quem se lixa em grande, como sempre, é quem cá ficar mais anos.

Anónimo disse...

Não é um comentário, mas um mero reparo, que faço em atenção à fluência e elegância dos seus textos: «ênfase» é um substantivo do género feminino.

Luís Lavoura disse...

Unknown,

há, infelizmente, alguns liberais que são adeptos de uma teoria do tipo "starve the beast", na qual se diz que o Estado deve ser morto à fome, isto é, por falta de dinheiro. Nessa teoria, os cidadãos devem forçar o Estado a coletar cada vez menos impostos, mesmo que as suas despesas permaneçam constantes.

Há outros liberais, mais moderados, que defendem que o Estado deve cortar as taxas dos impostos mesmo sem cortar despesa, pois, segundo a esperança desses liberais, o corte na taxa dos impostos induzirá um aumento de produção que fará que, mesmo com menores taxas, o Estado arrecade mais dinheiro.

Felizmente, nem todos os liberais são das duas variedades enunciadas acima. Há liberais que defendem, a meu ver corretamente, que o Estado só deve descer a taxa de impostos se e quando for capaz de reduzir também as suas despesas.

Nuno Figueiredo disse...

final countdown. Mordaunt (2)

Miguel disse...

«o corte na taxa dos impostos induzirá um aumento de produção»

Caso isso fosse verdade, com o "quantitative easing" em força há anos, a finança que não paga impostos dignos desse nome, o Ocidente devia já ter sido tomado por um tsunami de investimento e as dívidas soberanas já se teriam volatilizado. Se o Voltaire fosse vivo, publicava uma edição actualizada de "Candide" com um renovado personagem, Pangloss-ó-liberal.

A.Teixeira disse...

«Há liberais que defendem, a meu ver correctamente, que o Estado só deve descer a taxa de impostos se e quando for capaz de reduzir também as suas despesas.»

O que o bom do Luís Lavoura se esqueceu de nos dizer é que aquela sua terceira categoria de liberais virtuosos, nunca se tem coragem política para especificar concretamente que despesas é que se devem reduzir e quem devem ser os sacrificados.

...é sempre complicado assumir o ónus de obrigar o velhinho reformado a ir arranjar o jantar ao caixote do lixo, não é?!...




manuel campos disse...


"Agora, as horas de Truss parecem contadas."

E as de "TRUTH" também.

Luís Lavoura disse...

o “disarray” que atravessa a vida económica do Reino Unido tem origem, em grande parte, no salto para o escuro que foi o Brexit

É certo que o Brexit foi deletério, mas ele não é o culpado de o Reino Unido estar com as finanças muito mal e, portanto, à mercê dos mercados financeiros.

Se as finanças do Reino Unido estão depauperadas, isso não é devido ao Brexit, e sim devido
(1) a durante a pandemia ter-se andado a distribuir dinheiro a rodos à população para ela ficar em casa sem fazer nada;
(2) a estar-se a fazer uma guerra económica à Rússia que perturba todos os circuitos de abastecimento e por isso inflaciona muitos produtos.
É claro que, se o Estado decide dar dinheiro às pessoas para as compensar por ficarem em casa sem fazerem nada, o Estado vai ficar crivado de dívidas. É também claro que, se o Estado decide pagar às pessoas o combustível por este ter ficado muito mais caro devido à guerra económica que esse próprio Estado promoveu, mais uma vez o Estado vai ficar depauperado.

Nuno Figueiredo disse...

would go further.

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